sexta-feira, agosto 17, 2007

"Visita"

Faz Depressa

Aqui se chama Faz Depressa
porque depressa se desfaz a casa feita
num relâmpago em chão incerto, deslizante.
Tudo aqui se faz depressa. Até o amor. Até o fumo.
Até, mais depressa, a morte. Ainda mesmo se não se apressa,
a morte é sempre uma promessa
de decisão geral expressa.

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Urbaniza-se? Remove-se?

800 mil favelados ou já passa de um milhão?
Enquanto se contam, ama-se em barraco e a céu aberto
Novos seres se encomendam ou nascem à revelia

Os que mudam, os que somem, os que são mortos a tiro são logos substituídos.
Onde haja terreno vago, onde ainda não se ergueu um caixotão de cimento
esguio (mas vai-se erguer)

Que fazer com tanta gente brotando do chão, formigas de formigueiro infinito?
Ensinar-lhes paciência, conformidade, renúncia?
Cadastrá-los e fichá-los para fins eleitorais?
Prometer-lhes a sonhada, mirífica, róseo-futura distribuição (oh!) de renda?
Deixar tudo como está para ver como é que fica

Um som de samba interrompe tão séria cogitações (...)
Gente que nem a gente desejante, suspirante, ofegante, lancinante.
O mandamento da vida explode em riso e ferida.


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Lembrete

Se procurar bem, você acaba encontrando
não a explicação (duvidosa) da vida,
mas a poesia (inexplicável) da vida.

Jamais poema algum se desprenderia da ambição de poema.

Mas a vida não é o avesso da vida.
É o avesso absoluto se tentamos codificá-la.

Perder, aprendi, também é melodioso.

A pouca ciência da vida não esclarece os fatos inexistenes, muito mais poderosos que a história do homem em fascículos.

Não serei mais eu, nenhum fervor ou mágoa me percorrendo.

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Eu, Etiqueta.

Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro, minha gravata e cinto e escova e pente, meu corpo, minha xícara, minha toalha de banho e sabonete,
meu isso, meu aquilo, desde a cabeça ao bico dos sapatos,
são mensagens, letras falantes, gritos visuais,
ordens de uso, abuso, reincidência, constume, hábito, premência, indispensabilidade,
e fazem de mim homem-anúncio itinerante, escravo da matéria anunciada.

Não sou- vê lá- anúncio contratado. Eu é que mimosamene pago para anunciar,
para vender em bares festas praias pérgulas piscinas,
e bem à vista exibo esta etiqueta global no corpo que desiste
de ser veste e sandália de uma essência, tão viva, independente,
que moda ou subordo algum a compromete.

Da vitrine me tiram, recolocam, objeto pulsante mas objeto
que se oferece como signo de outros objetos estáticos, tarifados.
Meu nome novo é coisa. Eu sou coisa, coisamente.

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O Seu Santo Nome

Não facilite a palavra amor. Não a jogue no espaço, bolha de sabão.
Não se inebrie com seu enganalado som.
Não a empregue sem razão acima de toda razão (e é raro).
Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão
de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra que é toda sigilo e nudez,
perfeição e exílio na Terra.
Não a pronuncie.

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As Sem-Razões do Amor


Não há falta na ausência. Porque ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim.

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Amor e Seus Contratos

Tanto nas juras mais vivas como nos beijos mais longos
em que perduram salivas de outras paixões ainda ativas...
Por mais que no teu falar brilhe a promessa incessante de um afeto a perdurar
Amarga-me o pensamento de serem pactos fingidos.

As nulidades tamanhas que te invalidam o trato
não sei se provêm de manhas ou de visitas mais estranhas
Senão talvez teu retrato gravado em vento ou em sonho.
São todas- digo tristonho- feitas de sonho e de vento.

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O Minuto Depois

Nudez, último véu da alma que ainda assim prossegue absconsa.
A linguagem fértil do corpo não a detecta nem decifra.
Mas além da pele, dos músculos, dos nervos, do sangue, dos ossos
Recusa o íntimo contato(...)
Ai de nós, mendigos famintos: pressentimos só as migalhas (...)
E por isso a volúpia é triste um minuto depois do êxtase.

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Corpo- Carlos Drummond de Andrade