segunda-feira, setembro 24, 2007

Apego

"Ele gosta de coisas que sejam macias e que façam cócegas", disse o morcego.
"Gosta de coisas quentes para segurar em seus braços quando adormece.
Gosta que brinquem com ele.
Gosta de todas essas coisas."


Quando um bebê macaquinho criado com um modelo de pano não lactante se alarma,
ele busca imediatamente esse modelo e agarra-se a ele.
Depois de um tempo, chega até a explorar o objeto que havia o assustado.

Quando um experimento como esse é realizado com um bebê com um modelo "lactante" de arame, o seu comportamento é muito diferente,
ele não busca ao modelo e, ao contrário, fica apavorado e não realiza explorações.

Tanto nesses experimentos como nos ambientes cotidianos,
a estimulação social considerada efizar na promoção de comportamentos de apego
engloba um misto de estimulação visual, auditiva e tátil, e também, usualmente, cinestésica e olfativa.
Assim as questões formuladas são: qual desses modos de interação é indispensável, supondo-se que algum o seja, para que o apego se desenvolva?
E qual é o mais poderoso para esse fim?

Quando o bebê tem mais de uma figura de apego, poderia-se supor que sua ligação com a figura principal fosse fraca e,
inversamente, quando existisse uma ligação com uma única figura, essa seria especialmente intenso (...).

O bebê que mostra apego intenso a uma figura principal é significativamente mais propenso a dirigir seu comportamento social para outras figuras discriminadas,
ao passo que um bebê fracamente apegado pode confinar todo o seu comportamento social
a uma só figura.

Sempre que o objeto "natural" de ligação é inacessível, o comportamento pode passar a ser dirigido para algum objeto substituto.
Embora inanimado, tal objeto parece frequentemente capaz de preencher o papel de uma importante, ainda que subsidiária,
"figura" de apego.

Uma criança com menos de seis meses, esforçava-se muito pouco para ajustar o que diz, ou o modo como diz, às necessidades do ouvinte.
Ela parece supor que todo e qualquer ouvinte tem um conhecimento tão completo quanto ela do contexto e dos protagonistas,
em qualquer incidente que deseja relatar, e que somentes os detalhes que parecem interessantes e são novidades para ela precisam ser descritos.

Consequentemente, sempre que o ouvinte não estiver familiriarizado com o contexto e os personagens, a descrição corre o risco de ser incompreensível.

Como no experimento em que crianças de 3 anos, ao escolher um presente para a mãe, escolhiam um caminhãozinho ao invés de um batom.

Durante o final do primeiro ano, e os segundos e terceiros anos, quando adquire o poderoso e extraordinário dom da linguagem,
a criança atarefa-se na construção de modelos funcionais, de como pode-se esperar que o mundo físico se comporte e cada um interaja com os outros.
Dentro do quadro de referência desses modelos funcionais, a criança avalia sua situação e traça seus planos.

Apego- John Bowlby

sábado, setembro 22, 2007

Armadilhas

E então você não quis nada disso.
E parou com a possibilidade de dor, o que nunca se faz impunemente.
Apenas parou e nada encontrou além disso.
Eu não digo que eu tenha muito, mas tenho ainda a procura intensa e uma esperança violenta.

Mas olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós
e a isso considerado vitória nossa de cada dia.

Não temos amado, acima de todas as coisas.
Não temos aceito o que não se entende porque não queremos passar por tolos.
Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro.
Não temos nenhuma alegria que já não tenha sido catalogada.
Temos construído catedrais e ficado do lado de fora pois
as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas.


Não nos temos entregue a nós mesmos,
pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos.

Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença,
sabendo que a nossa indiferença é angústia disfarçada.


Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior
e por isso nunca falamos no que realmente importa.

Falar no que realmente importa é considerado uma gafe.

Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos.
Temos chamado de fraqueza a nossa candura.
Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo.
E a tudo isto consideramos a vitória nossa de cada dia...

Clarice Lispector
(Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres)

sexta-feira, setembro 21, 2007

em cada beijo que não sai da boca

Essa alegria de criar, que é tua
explanação maior e mais tocante,
fica girando no ar, enquanto avulta
em sensação de perda, teu semblante.

Já não destila mágoa nem furor
fruto de aceitação da natureza
essa alvura de morte lembra amor.

Uma necessidade urgente e rouca
de no amor nos amarmos se desola
em cada beijo que não sai da boca.

Por que Deus se diverte castigando?
Por que degrada o amor sem destruí-lo?

Por mais que amor transite ou que se negue
é canto (não é ave) sua essência.

Carlos Drummond de Andrade

Complicado e incontrolável...

Imaginamos que Eros, por ocasionar uma combinação de consequencias cada vez mais amplas das partículas em que a substância viva se acha dispersa,
visa a complicar a vida e, ao mesmo tempo, naturalmente, a preservá-la.

O ego tem o hábito de tranformar em ação a vontade do id, como se fosse a sua própria.

(...) George Groddeck, o qual nunca se cansa de insistir que aquilo que chamamos de nosso ego comporta-se essencialmente de modo passivo na vida e que, como ele o expressa, nós somos "vividos" por forças desconhecidas e incontroláveis.

Em muitos criminosos, especialmente nos principiantes, é possível detectar um sentimento de culpa muito poderoso, que existia antes do crime, e, portanto, não é o seu resultado, mas sim o seu motivo.
É como se fosse um alívio ligar esse sentimnto inconsciente de culpa a algo real e imediato.

"Como uma coisa se torna consciente?"
seria assim mais vantajosamente anunciada:
"Como uma coisa se torna pré-consciente?"
E a resposta seria : 'vinculando-se às representações verbais que lhe são correspondentes.'
Essas representações verbais são resíduos de lembranças; foram antes percepções (...).

Os conflitos entre o ego e o ideal, como agora estamos preparados para descobrir, em última análise refletirão o contraste entre o que é real e o que é psíquico.

(...) como a Batalha dos Hunos na pintura de Kaulbach. (os guerreiros mortos são representados como continuando sua luta nos céus acima do campo de batalha) .

O Ego e o Id

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Fermento...

Combinamos que não era amor.
Escapou ali um abraço no meio do escuro.
ali foi sono, não sei o que foi aquilo.
E a orelha ouviu uma sacanagem qualquer, e a mão se encaixou ali no meio das minhas pernas.

Mas a gente combinou que não era amor.
Mas ainda assim, não somos íntimos.

Nada disso.
Só estamos aqui, reunidos nesse momento, porque temos duas coisas muito simples em comum:
nada melhor pra fazer e vontade de fazer sexo.

Tô super bem com tudo isso.
Nossa, nunca estive melhor.

Não deixa eu assim, deslizando pelas paredes do chuveiro de tanto rir
porque seu cabelo fica ridículo molhado.
Não transforma assim o mundo em um lugar mais fácil e melhor de se viver.

Porque quando você está aqui, ou até mesmo na sua ausência,
o resto todo vira uma grande comédia.

E aquele cara mais novo, e aquele outro mais velho,
e aquele outro que escreve, e aquele outro que faz filme,
e aquele outro divertido,
e aquele outro da festa, e aquele outro amigo daquele outro.
E todos aqueles outros viram formiguinhas de nariz vermelho.

Adoro como o mundo fica coitado, fica quase, fica de mentira, quando não é você.

Pra me lembrar o quão sagrado é não querer tomar banho depois.
O quão sagrado é ser absurdamente feliz mesmo sabendo a dor que vem depois.
O quão sagrado é ver pureza em tudo o que você faz,
ainda que você faça tudo sendo um grande safado.

O quão sagrado é abrir mão de evoluir só porque andar pra trás é poder cruzar
com você de novo.

Não é amor não. É mais que isso, é mais que amor.
Porque pra ter você por perto um pouco,
eu tive que não querer mais ter você por perto pra sempre.

E eu soquei meu coração até ele diminuir.
Só pra você nunca se assustar com o tamanho.

===
Não jogarei sementes em cima do seu cimento
===


E a vida poderia estar realmente maravilhosa.
E o que isso tem de triste?
Sei lá, mas eu fiquei triste pra cacete.

Me deprime tanto que eu gostaria que assassinato não desse cadeia.
Eu gostaria de explodir todos eles.
E depois dormir em paz.
Mas eu não durmo em paz nunca, mesmo quando estou dormindo em paz.
Eu acordo e penso “olha, estou dormindo em paz”.
Isso definitivamente não é dormir em paz!

Fazendo curvas, dando setas, entrando em lugares, me despedindo, saindo do banho,
dando a descarga, abrindo a geladeira, mudando o canal.
Sempre de pé.

O chefe arrogante, a empregada burra, o vizinho barulhento, a telemarketing robótica, o moço da feira, a menina da unha.

E eu também já não sofro mais e nem me culpo.
E tudo passa por um tempo e vamos sorrir, vamos ao cinema, vamos dormir depois do almoço do domingo.
E daqui uns dias vamos caminhar por aí, com a nossa dor sem motivos.
E, principalmente por isso, uma dor filha da puta.
E vamos em frente.
Eretos com nossa tristeza.

Sobre a nossa cabeça.
Tirando sarro da nossa ilusão.
E o único jeito de ser mais malandro que a tristeza é sendo cínico.
E lá vai a garota.
Comprar pão quente com seu cinismo.
Amar com seu cinismo.
Porque só o cinismo vence a tristeza.
Porque só o cinismo é mais triste do que a tristeza.

Afinal, seria um pecado não ser absolutamente feliz, com tanta gente pior por aí, não é mesmo?
Não sei. Mas todas as vezes que eu lembro disso.
Da humilhação que foi ouvir isso tão de perto e tão de propósito para doer.
Eu não consigo simplesmente deixar morrer e nascer de novo.

E nós saímos para trabalhar, comprar pão ou sonhar em explodir o prédio do pagode.
Sempre de pé.
Somos dois animais de pé.
Um ao lado do outro. Dentro do outro. Em cima do outro.
Mas sempre juntos.

E eu não estava naquele avião e nem naquele buraco.
E nem tem terremotos na minha cidade.
Mas nem por isso eu me sinto voando.
Mas nem por isso eu deixo de sentir a terra em cima da minha cabeça.
Tudo a minha volta treme e chacoalha mais que aquele brinquedo Samba no parquinho.

Talvez porque isso seja viver, para quem é de verdade, para quem pensa um pouco, para quem sente um pouco, para quem lê jornal de manhã.
Talvez apenas porque é meio dia.

Tati Bernardi

terça-feira, setembro 18, 2007

Contato... (sobre sexualidade hoje)

Mulheres e homens ensaiam outras possibilidades de ficarem amorosamente,
para além das formas tradicionais de relacionamento, como o namoro,
o noivado, o casamento e/ou o adultério.

Certamente isto não significa uma erradicação total dos antigos códigos da sexualidade, já que,
ao mesmo tempo,
coexistem ou mesmo agravam-se antigos problemas de dominação, de violência e desencontro que caracterizaram as relações entre os sexos.

(...) que as formas de relacionamento afetivo e sexual se tornam mais flexíveis e negociáveis, que as questões são debatidas abertamente?

Note-se que apesar de toda a engenharia tecnológica que facilita a comunicação e a interação social entre os indivíduos, grupos e povos,

apesar de todo o desenvolvimento da psicologia e da psicanálise,
que nos mune com incríveis arsenais de entendimento e cura das crises existenciais e conjugais,

apesar de todas as discussões que temos tido em relação à necessidade de abertura para a diferença e para as diversidades culturais,
apesar de tudo e infelizmente,
não temos vivido num mundo mais amoroso e solidário,
nem mais aconchegante.

Chama a atenção, aliás, o crescimento da intolerância em vários níveis.


(...) vive-se uma profunda dessexualização da vida cotidiana,
ou banalização do sexo.
Na verdade, eu poderia avançar:
dessexualização ou re-sexualização?

Trata-se de uma diminuição no nível da sexualização, dos jogos de sedução,
do interesse pelo erótico e pornográfico,
ou de uma re-significação das práticas sexuais?

Estaria havendo uma redefinição dos códigos da sexualidade e do próprio imaginário sexual, ou uma perda radical do erotismo, do tesão e da sensualidade, por um mundo mais racional, frio, técnico e mecanizado?

A transparência total das práticas sociais e sexuais exigidas no mundo atual esvaziaram, ao mesmo tempo, o sentido dessas próprias práticas.

Assim, mesmo que a bunda se torne um elemento muito rentável,
pelo sucesso que alcança no imaginário masculino brasileiro,
já não pertence à "boazuda" do passado, mas a uma loira jovem e magra,
que está mais para professora de aeróbica do que para sedutora.

Ao mesmo tempo, uma pesquisa recente nos Estados Unidos afirma que
a família ideal é hoje formada por um solitário,
um animal de estimação e um computador multimídia, plugado na Internet.

Todos querem e não querem se ver ou conhecer.

Se a esfera pública é vista como ameaçadora e devoradora,
é preciso que as pessoas se protejam de mil maneiras,
especialmente refugiando-se num espaço interno, psicológico, afetivo,
que cada vez mais se amplia, com o desejo de privacidade e de intimidade.


(...)não está havendo uma perda do interesse pelo sexo,
mas uma mudança na maneira pela qual ele é representado e experimentado e,
ao contrário,
assiste-se a uma intensificação da busca pelo prazer sexual,
pelo sensual e pelo erótico.

Quanto ao prazer, afirma-se cada vez mais freqüentemente a importância de gostar do que se faz, de trabalhar, estudar, viver com prazer, com tesão; reclama-se a importância da elevação da auto-estima, de se amar, de gostar do próprio corpo.

Aqui, então, estaria ocorrendo não um movimento de dessexualização, mas, ao contrário, uma redefinição do campo sexual, não mais confinado ao espaço das relações sexuais específicas. Nem o orgasmo hoje é pensado apenas como um momento circunstanciado em que uma parte do corpo vibra.

O desejo a ser pensado enquanto energia positiva que deve ser gasta e não acumulada,
diante do medo do desperdício como no passado,
deve ser utilizada para revitalizar,
para "energizar", como se lê nas páginas da revista Nova.

(...)

Margareth Rago
http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/mar2001/pagina4a7-Ju159.html

segunda-feira, setembro 17, 2007

Contato...

Um grupo de porco-espinhos apinhou-se apertadamente em certo dia frio de inverno, de maneira a aproveitarem o calor um dos outros e assim salvarem-se da morte por congelamento.

Logo, porém, sentiram os espinhos uns dos outros, coisa que os levou a separarem-se novamente.

E depois, quando a necessidade de aquecimento os aproximou mais uma vez, o segundo mal surgiu novamente.

Dessa maneira foram impulsionados, para frente e para trás, de um problema para o outro, até descobrirem uma distância intermediária,

na qual podiam mais toleravelmente coexistir.

Schopenhauer

domingo, setembro 16, 2007

É preciso um bocado de tristeza...

A vida não é de brincadeira, amigo
A vida é arte do encontro
Embora haja tanto desencontro pela vida

Há sempre uma mulher à sua espera
Com os olhos cheios de carinho
E as mãos cheias de perdão

Ponha um pouco de amor na sua vida
Como no seu samba


Vinícius de Moraes

sexta-feira, setembro 14, 2007

O Incompleto

A propensão de tudo que é belo e perfeito à decadência,
pode, como sabemos, dar margem a dois impulsos diferentes na mente.
Um leva ao penoso desalento sentido pelo jovem poeta,
ao passo que o outro conduz à rebelião contra o fato consumado.

Não! É impossível que toda essa beleza da Natureza e da Arte,
do mundo de nossas sensações e do mundo externo,
realmente venha a se desfazer em nada.
Seria por demais insensato, por demais pretensioso acreditar nisso.

De uma maneira ou de outra essa beleza deve ser capaz de persistir e de escapar a todos os poderes de destruição.

Não deixei, porém, de discutir o ponto de vista pessimista do poeta de que a transitoriedade do que é belo implica uma perda de seu valor.

Pelo contrário, implica um aumento!
O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo.
A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição.

Era incompreensível, declarei, que o pensamento sobre a transitoriedade da beleza interferisse na alegria que dela derivamos.

(...) visto, contudo, que o valor de toda essa beleza e perfeição é determinado somente por sua significação para nossa própria vida emocional, não precisa sobreviver a nós, independendo, portanto, da duração absoluta.

SOBRE A TRANSITORIEDADE
(Vergänglichkeit)
Sigmund Freud

Luto e Melancolia

um desânimo profundamente penoso,
a cessação de interesse pelo mundo externo,
a perda da capacidade de amar,
a inibição de toda e qualquer atividade,
e uma diminuição dos sentimentos de auto-estima
a ponto de encontrar expressão em auto-recriminação e auto-envilecimento,
culminando numa expectativa delirante de punição.

--

Isso, realmente, talvez ocorra dessa forma,
mesmo que o paciente esteja cônscio da perda que deu origem à sua melancolia,
mas apenas no sentido de que sabe quem ele perdeu,
mas não o que perdeu nesse alguém.


A diferença consiste em que a inibição do melancólico nos parece enigmática porque não podemos ver o que é que o está absorvendo tão completamente.

--

Quando, em sua exacerbada auto-crítica,
ele se descreve como mesquinho, egoísta, desonesto, carente de independência,
alguém cujo único objetivo tem sido ocultar as fraquezas de sua própria natureza,
pode ser, até onde sabemos,
que tenha chegado bem perto de se compreender a si mesmo;

ficamos imaginando, tão-somente,
por que um homem precisa adoecer para ter acesso a uma verdade dessa espécie.

Por fim, deve ocorrer-nos que, afinal de contas,
o melancólico não se comporta da mesma maneira que uma pessoa esmagada,
de uma forma normal, pelo remorso e pela auto-recriminação.

Sentimentos de vergonha diante de outras pessoas que, mais do que qualquer outra coisa, caracterizariam essa última condição,
faltam ao melancólico ou, pelo menos,
não são proeminentes nele.

Poder-se-ia ressaltar a presença nele de um traço quase oposto, de uma insistente comunicabilidade, que encontra satisfação no desmascaramento de si mesmo.

O ponto essencial, portanto, não consiste em saber se a auto-difamação aflitiva do melancólico é correta,
no sentido de que sua auto-crítica esteja de acordo com a opinião de outras pessoas.

Se se ouvir pacientemente as muitas e variadas auto-acusações de um melancólico,
não se poderá evitar, no fim, a impressão de que freqüentemente as mais violentas delas dificilmente se aplicam ao próprio paciente,
mas que, com ligeiras modificações,
se ajustam realmente a outrém, a alguém que o paciente ama, amou ou deveria amar.

Toda vez que se examinam os fatos, essa conjectura é confirmada.
A mulher que lamenta em altos brados o fato de o marido estar preso a uma esposa incapaz como ela, na verdade está acusando o marido de ser incapaz,
não importando o sentido que ela possa atribuir a isso.

Eles não se envergonham, nem se ocultam,
já que tudo de desairoso que dizem sobre eles próprios refere-se,
no fundo, à outra pessoa.

Além disso, estão longe de demonstrar perante aqueles que o cercam uma atitude de humildade e submissão única que caberia a pessoas tão desprezíveis.

Pelo contrário, tornam-se as pessoas mais maçantes, dando sempre a impressão de que se sentem desconsideradas e de que foram tratadas com grande injustiça.

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Dessa forma, refugiando-se no ego, o amor escapa à extinção.


Luto e Melancolia- Freud

quinta-feira, setembro 13, 2007

Ímpar... (sobre fidelidade)

Fala-se, atualmente, muito em relacionamento e pouco em amor.

O amor, evidente, em uma de suas formas, pode prescindir do relacionamento.
A diferença é simples, o amor é inexplicável e não se planta onde se quer, ele nasce e existe alheio aos nossos planos.
O relacionamento é fruto do resultado de nossas experiências, em destaque a última:
se tivemos alguém que era temperamental fazemos questão de alguém que seja calmo, por creditarmos o fim do relacionamento ao gênio desmedido.
Isso é apenas um exemplo entre milhões possíveis.

O relacionamento é uma forma e não um conteúdo,
é um conjunto de regras e de negociações que podem ser positivas ou não.

Relacionamento é a estrutura social.

Por isso muitos relacionamentos começam e às vezes acabam sem que o amor lhes faça visita.
Estar com alguém é aprender algo sobre o amor, mesmo quando não seja amor.

Mas, voltando ao início, há no amor um encantamento.
E o relacionamento é sempre o culpado quando esse encantamento se quebra.

Vencer é muito mais difícil que perder.
Cansa mais e dá mais trabalho.
Ser feliz é muito mais cansativo do que ser triste!
E é esquisito, uma vez que relacionamentos difíceis e infelicidade moderada são a condição, o estado basal de quem não tem um verdadeiro amor.

Leo Jaime
blonicas.zip.net

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Em relação à parceira, Schopenhauer diz que o amor do homem diminui sensivelmente a partir do momento em que obteve satisfação; quase qualquer outra mulher o excita mais do que aquela que já possui: ele anseia pela variedade.

A mulher tem que produzir manobras, se transformar em mil personagens eróticos para não ser traída. Um objeto sexual em metamorfose para agradar, estimular e capturar o apetite do macho.
As revistas populares femininas estão sempre repletas de “novas” e picantes sugestões para esse fim.

A inclusão de apetrechos, jogos, encenações, vídeos pornográficos ou um terceiro elemento, é porque o casal não tem ou perdeu o élan da relação.
Agora, nada mais resta do que um amontoado de corpos tentando fabricar sensações.

A união de duas pessoas desejosas é um universo particular de infinitas possibilidades, ou seja, se bastam na privacidade para se deliciarem da fluidez desse encontro.

Em razão disto, como dizem Cuschnir e Mardegan Jr. é que a máscara permite que o homem tenha diversas experiências na vida, porque ela poderá deixá-lo menos vulnerável internamente em determinadas situações, funcionando como uma espécie de “amortecedor”.
Por tudo isto, não é um contra-senso criticar o homem por não ter sensibilidade?

As pessoas assumem compromisso trabalhista, parceria comercial, e tentam cumprir essa promessa.
Assim sendo, aceitam pagar multa quando quebram, por vontade própria ou por motivo de “força maior”, esse contrato.

Já a perda afetiva, da parte que não desejava a separação, raramente é “ressarcida”, nem que seja com um mínimo de consideração.
Nenhum envolvimento com uma nova pessoa justifica que não se possa ter um cuidado com o outro preterido ou que está sendo “largado”.

Do mesmo modo a pós-mulher, a exemplo de M. Dowd, colunista do New York Times, que afirma ser muito difícil para as mulheres decifrar o que os homens querem com ela.

As mulheres são “escravas” do estético, e “se transformam naquilo que são na mente dos homens”(NIETZSCHE).

Comumente, macho nenhum expõe seus reais sentimentos para mulher alguma, ou, talvez, para ninguém, pelo menos pelas vias diretas. (...)
Uma vez que, na sua cabeça “abrir-se” pode ser traduzido como fraqueza. Mas tem mulher que, diferente da vontade de um diálogo espontâneo e troca de idéias, pretende se apossar da cartografia mental do outro.

Talvez, o fato de considerar as emoções, sexo e amor integrados, não sejam tão inatos assim, mas produto dessa dominação.

Ou seja, mesmo com profissão definida e independência econômica, muita mulher mantém o desejo secreto de proteção, “a menina assustada” sob a capa da auto-suficiência e que por isso acata, de uma forma ou de outra, o domínio do macho.

Para Nietzsche, através da idealização do amor, elas aumentam seu poder e se apresentam mais desejáveis aos olhos dos homens.

A favor da dominação masculina, se forjou os mitos da mulher frágil e de seu apetite sexual brando.
A fêmea tem o mesmo desejo sexual que o macho.

Como já foi dito, a traição machuca, sendo desrespeitosa para qualquer dos gêneros que a pratique.

Algumas mulheres para comprovar seu amor,
entregam o que considero “chicote ou forca”,
deixam explicito ou subentendido para o parceiro sua aguerrida fidelidade canina,
e a disposição de restringir a sua liberdade pela relação.
Nessa jura de amor incondicional, os elegem como absolutos,
e os colocam no “palco” da sua existência sob os “holofotes” de suas emoções e dedicação exclusivas.

No entender de Bauman em nossa época líquida-moderna,
em que o indivíduo livremente flutuante, desimpedido,
é o herói popular,
“estar fixo” - ser “identificado” de modo inflexível e sem alternativa –
é algo cada vez malvisto.

Por isso, recentemente surgiu nos Estados Unidos,
um projeto de contratos de casamento renováveis, a cada dois anos, que atrai o público.

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Na maioria das vezes não somos santos nem heróis e sustentamos com dificuldade a necessidade de afirmação requerida pelo pensamento trágico,
tendendo no mais das vezes à um pensamento prenhe de evasivas,
lamentações e ressentimentos.

Sabemos pela psicanálise que não somos senhores de nós mesmos
e a biologia vem colocando questões que cada vez mais parecem colocar em cheque nossos anseios de livre arbítrio.

A determinação biológica surge, por vezes, como um atenuante para nossas im-possibilidades éticas e pode situar-se de forma alternada entre a maldição e a salvação.

Entre a Lei e o desejo,
se alguma conciliação for possível,
na psicanálise freudiana ela será sempre produto de um equilíbrio instável e provisório,
passível de perturbações que não chegam a ser indesejáveis,
mas, ao contrário, fruto de um movimento que testemunha a presença da vida.

Para uma leitura que aproxime a psicanálise e o pensamento trágico, o conflito será sempre inextirpável e a tensão decorrente daí,
motor que movimenta a vida.

Lacan irá formular uma Ética para a psicanálise que identifica o Desejo ao Dever Kantiano.
Age de tal forma que tu possas querer que a máxima de sua vontade se transforme em regra universal.

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"Não posso me tornar eu mesmo a não ser pagando o preço do amor que me mutila"
Guitta

terça-feira, setembro 11, 2007

Ímpar

Para mim, o dentro do homem era uma doença incurável.
A subjetividade, um ilusão de ótica e de acústica.
A alma, apenas o subproduto de uma pessoa ficar sozinha.
Para mim não tinha nada lá dentro, entende?


No fundo, toda diferença é insuportável. O ímpar.
A gente quer tudo par.

Numa dessas vezes, entendi que eu não era louco.
Tudo era muito louco.

- Se fosse minha?, ela disse quase gargalhando.
Mas essa casa é toda minha.
As pessoas que estão lá dentro são meus brinquedos.
Alguns eu inventei. Alguns meu pai comprou.

Vai pelos esquemas das histórias de deslumbramento que você vai mais longe.

O coração é um imbecil.
Quem não sabe fazer sofrer, não sabe ensinar.
Várias vezes, quando a gente se encontrou, eu sabia que ela sabia e ela sabia que eu sabia
que estávamos procurando um jeito para sufocar uma coisa que nem bem tinha começado.

A primeira coisa é parar de tentar mudar os fatos com palavras.
Depois virão as outras.

O narrador é um fantasma, ele mal-assombra as histórias, elas poderia passar muito bem sem ele.
As histórias se fazem sozinhas, por geração espontânea, gracinha, sem precisar de intervenção humana.

Insuportável é que elas não tenham uma tela de TV na testa para a gente poder ver o que está comprando,
tudo o que ela me dissesse já era uma interpretação,
uma seleção olímpica de frases e palavras militarmente escolhidas para provocar determinado efeito sobre mim.

Mas tudo só mudava do parado para o parado.
A gente se via, até fizemos algumas coisas, mas nada podia disfarçar aquele cheiro de queimado,
a gente cultivando aquela falta entre nós, duas pessoas cuidando juntas da mesma planta carnívora.

Agora é Que São Elas- Paulo Leminski

segunda-feira, setembro 10, 2007

Pensar-Pulsar

~~~~~~

Ação pura e simples, desprovida de discurso legitimador.

No agir expressa-se a intencionalidade, a vontade, excluídas de todas as formas de manipulação contidas no verbo, que é a encenação, a máscara, rituais.

Ao mesmo tempo em que se tem a sensação de tédio, se tem a fascinação.
Jameson (1984) realça a agitação, o comportamento frenético e a euforia como marcas do presente, que tentam combater o tédio, mas acabam por reafirmá-lo.
Excita e frustra, agita e deprime, instiga e paralisa, estimula e desalenta.

A angústia, vivida como um estado de vulnerabilidade,
é sempre marcada por uma disposição interior de recuo em relação à realidade exterior, tomada como adversa,
e por um excesso de subjetivização diante dela, que produz a sensação de que toda a vida social se esgota no interior do indivíduo.

A vida torna-se uma sucessão dinâmica de acontecimentos, pelos quais se passa de forma ligeira. As pessoas como que colecionam diversas atividades e realizam-nas em tempo recorde, num tipo de compulsão de fazer sempre mais, pelo prazer de fazer. É o princípio do movimento pelo movimento.

O mal-estar causado por esse hiperdimensionamento e pela alta comutabilidade da esfera íntima, subjetiva, não é de todo estranho à experimentação do encobrimento do outro na esfera pública.
O ser factral é mais do que fragmentado, ele é estilhaçado.

Hoje a comunicação seria a "repetição impertubável do mesmo".
A visão de mundo é a do curto-circuito da representação-expressão.

Lyotard: "a expansão da ciência não se faz graças ao positivismo da eficiência. É o contrário: trabalhar na prova é pesquisar e inventar o contra-exemplo, isto é, o ininteligível; trabalhar na argumentação é pesquisar o 'paradoxo' e legitimá-lo com novas regras do jogo e do raciocínio. O cientista é, em princípio, alguém que conta histórias, cabendo-lhe simplesmente verificá-las."

(...) nos postamos face ao mundo como um grande texto a ser interpretado e tecido: onde tateamos indícios, sobre os quais levantamos hipóteses, com as quais a ele retornamos, procurando confirmações.
Entretando, nesse exercício, dando as coordenadas pelas quais esse mundo se submete a uma compreensibilidade, estamos ao mesmo tempo instituindo-o de uma maneira particular, como objeto do nosso agir, segundo algumas intenções e disposições.

Para Baudrillard, a realidade não pode ser apreendida, uma vez que trabalha com fatos que não têm lei, mas astúcia. A ordem, segundo ele, existe para ser desrespeitada. As estratégias irônicas são superiores ao sonho do homem. Este, deve ser dotado de certa malícia, esperteza e astúcia para conviver com isso.

Nietzsche: "Tudo o que é reto mente. Toda a verdade é curva, o próprio tempo é um círculo".

Se no passado, viver era lembrar- como diziam os poetas- na era tecnológica, por motivos de sobrevivência, é mais do que necessário, esquecer.

Pensar-Pulsar
coordenado por Ciro Marcondes Filho

Ilha Solteira

Desde que o samba é samba
Caetano Veloso


Solidão apavora
Tudo demorando em ser tão ruim
Mas alguma coisa acontece
no quando agora em mim
Cantando eu mando a tristeza embora

O samba é o pai do prazer
O samba é o filho da dor
O grande poder transformador


Samba da benção
(Vinícius de Moraes)


É melhor ser alegre que ser triste
Alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coração
Mas pra fazer um samba um samba com beleza
É preciso um bocado de tristeza
Senão não se faz um samba, não

Senão é como amar uma mulher só linda; e daí?
Uma mulher tem que ter qualquer coisa além da beleza
Qualquer coisa de triste, qualquer coisa que chora
Qualquer coisa que sente saudade
Um molejo de amor machucado,
Uma beleza que vem da tristeza de se saber mulher,
Feita apenas para amar, para sofrer pelo seu amor
E para ser só perdão

Fazer samba não é contar piada
Quem faz samba assim não é de nada
O bom samba é uma forma de oração
Porque o samba é a tristeza que balança
E a tristeza tem sempre uma esperança
De um dia não ser mais triste não...


Ponha um pouco de amor numa cadência
E vai ver que ninguém no mundo vence
A beleza que tem um samba não
Porque o samba nasceu lá na Bahia
E se hoje ele é branco na poesia
Se hoje ele é branco na poesia
Ele é negro demais no coração

Codinome Beija-flor
Cazuza


Pra que mentir
Fingir que perdoou
Tentar ficar amigos sem rancor
A emoção acabou
Que coincidência é o amor
A nossa música nunca mais tocou...

Pra que usar de tanta educação
Pra destilar terceiras intenções
Desperdiçando o meu mel
Devagarzinho, flor em flor
Entre os meus inimigos, beija-flor

Eu protegi o teu nome por amor
Que só eu que podia
Dentro da tua orelha fria
Dizer segredos de liquidificador

Você sonhava acordada
Um jeito de não sentir dor
Prendia o choro e aguava o bom do amor
Prendia o choro e aguava o bom do amor

terça-feira, setembro 04, 2007

Intersecção

Em cada minuto somos esmagados pela ideia e a sensação do tempo. E apenas existem dois meios para escapar a tal pesadelo, para esquecê-lo: o prazer e o trabalho. O prazer gasta-nos. O trabalho fortifica-nos. Escolhamos.
Quanto mais nos servimos de um destes meios, mais o outro nos inspira repugnância.

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«As ilusões», dizia-me o meu amigo, «talvez sejam em tão grande número quanto as relações dos homens entre si ou entre os homens e as coisas. E, quando a ilusão desaparece, ou seja, quando vemos o ser ou o facto tal como existe fora de nós, experimentamos um sentimento bizarro, metade dele complicada pela lástima da fantasia desaparecida, metade pela surpresa agradável diante da novidade, diante do facto real».

Charles Baudelaire

domingo, setembro 02, 2007

Performance

Eu penso mais na tua pele e na tua língua
Do que na alma que teu olho me mostrou
É sem teu corpo que minha'alma fica à míngua
É no teu seio que conserto o que quebrou
- É a escolha entre ser calma e ser feliz -

É muito quadro pr'uma parede
É muita tinta pr'um só pincel
É pouca água pra muita sede
Muita cabeça pr'um só chapéu

Nem todo beijo é ardido, toda paixão é fatal
Nem todo corpo se encaixa, todo afeto é moral
Nem todo mundo se alegra, todo mundo se esfrega
Nem todo amante se entrega, etc e tal
Nem toda ação é coragem, nem todo aviso é sermão
Nem toda moça é sozinha, nem todo mundo é de um só
Nem todo amigo é vizinho, nem todo amor vira pó
Nem toda escola te ensina, nem todo acerto valeu
Nem toda história termina quando o começo morreu
...Nem um ponto de vista vai ser ponto final

E logo a tua boca grande vai chegando perto
O desejo nunca pede permissão para cutucar
Se essa velocidade causa descarrilamento
Não bota o pé no freio que é pro trem não capotar
Não vale fazer gol se o cara tava em impedimento
O dia nunca pede permissão pra te acordar...

Oswaldo Montenegro

Quebrando a casca...

“porque quem ama nunca sabe o que ama / nem sabe por que ama, nem o que é amar”.
(Fernando Pessoa)

Estes versos interagem com a concepção de que tanto o amor quanto a verdade têm uma estrutura de ficção:
ambos existem como artifícios cuja função é a de criar uma tela protetora diante dos enigmas sem decifração.
Nesse sentido, tanto verdade quanto amor são apenas metáforas.

O significado que falta em ambas as situações levou Slavoj Zizek a encontrar uma “metáfora da metáfora” em um popular produto europeu chamado Kinder Surprise – no Brasil, “Kinder Ovo”.
Trata-se de ovos ocos feitos de chocolate e embrulhados em papel colorido: depois de desembrulhar o ovo, quebra-se a casca e se descobre no interior um pequeno brinquedo plástico, ou pequenas partes com as quais se monta um brinquedo. A criança que desembrulha esse ovo quebra-o sem se importar em comer o chocolate, mais interessada no brinquedo.
O vazio material no centro do ovo representa a lacuna estrutural por conta da qual nenhum bem é “realmente aquilo”:
nenhum produto satisfaz a expectativa que desperta.

(...)

Camões:
“mas como causar pode seu favor / nos corações humanos amizade / se tão contrário a si é o mesmo Amor?”.

Resenha do livro de Nádia Ferreira:
"A teoria do amor na psicanálise."
Publicado na Revista Matraga nº 16 - dezembro de 2004.

O Banquete

-Quem é o pai e quem é a mãe? - perguntou Sócrates à Diotima.

-A história é um tanto longa - respondeu ela - contudo, vou contá-la.

No dia em que Afrodite nasceu, os deuses davam um banquete. Achava-se entre eles o filho de Astúcia, que é Engenho.

Acabado o banquete, chegou Penúria, para mendigar, visto que havia mesa farta, e parou à porta.

Entretanto, Engenho, ébrio de néctar - o vinho ainda não existia - saiu para o jardim de Zeus e caiu num sono pesado.

Penúria, eternamente em dificuldades, entendeu de ter um filho de Engenho; deitou-se com ele e concebeu o Amor.

(...)

Filho, pois, de Engenho e Penúria, o Amor teve esta sina:

primeiro, é um eterno mendigo, longe de ser um ente mimoso e bonito, como pensa a maioria;
ao contrário, é aturado, poento, descalço, sem teto, sempre deitado no chão, sobre terra nua, dormindo ao relento nas soleiras e nos caminhos, porque herdou a natureza da mãe e passa a vida na indigência.

Mas, puxando pelo pai, vive espreitando o que é belo e bom, porque é viril, acometedor, têso, um caçador exímio, sempre a urdir suas malhas, ávido de inventivas e talentoso, passando a vida a filosofar, um mago extraordinário, um feiticeiro, um sofista.

(...)

- Quanto ao que imaginavas fosse o Amor, nada de admirar no teu engano; crias, segundo depreendo de tuas palavras, que o Amor fosse o objeto amado e não o amante; daí, penso, veres no Amor uma suprema beleza. Na realidade, o ente amável é que é belo, mimoso, perfeito e merecedor da felicidade; o amante, esse tem outra figura, a que te descrevi.

O Banquete- Platão