segunda-feira, março 21, 2011

Passamos o tempo a sonhar, não sonhamos apenas quando dormimos. O inconsciente é exatamente a hipótese de que não sonhamos apenas quando dormimos. (Lacan)

quinta-feira, março 17, 2011

O Tempo e o Cão

O indivíduo e uma flor de estufa gerada e criada por uma instituição bastante recente, a família nuclear moderna.

Centrado na razão à custa da eterna vigilância da consciência moral, obrigado a tornar-se senhor de seus impulsos e da imagem oferecida ao Outro, vivendo em permanente estado de alerta diante da feroz concorrência da economia capitalista emergente, o indivíduo estava fadado a sofrer as consequências sintomáticas do recalque que sustentava suas pretensões.

O Outro, na teoria lacaniana, diz respeito à dimensão simbólica que está na origem da divisão do sujeito. A face simbólica do Outro pode ser resumida como a existência necessária da linguagem que determina e precede a existência dos sujeitos. Mas o campo simbólico é sustentado subjetivamente por representações imaginárias, o imaginário provê consistência ao simbólico e à Lei que ele determina. A face imaginária do Outro repousa sobre as formas- estas sim, contingentes- através das quais, em cada cultura, a Lei simbólica se apresenta aos homens. A mãe e o pai, que introduzem o infans na linguagem, constituem as primeiras formações imaginárias do Outro, substituídas após o atravessamento do Édipo por figuras que exercem, no espaço público, alguma forma de autoridade. O professor, o líder político, o monarca, Deus, o parceiro amoroso, são os exemplos mais frequentes das diversas representações daquele a quem o sujeito neurótico dirige a pergunta: O que deseja de mim?

As sociedades modernas, caracterizadas pela mobilidade social e pela crescente liberdade nas escolhas individuais, tornaram as condições da inclusão e as regras de convívio cada vez mais abstratas. A complexidade das estruturas simbólicas, a partir do primórdios do capitalismo, tornou o campo do Outro inacessível ao saber (consciente) dos sujeitos sociais.

Em sociedades em que havia forte coesão entre as representações coletivas da função paterna, as pessoas estariam dispensadas de construir uma resposta neurótica ao conflito entre a satisfação pulsional e a Lei.

Lévi-Strauss- “Essa forma moderna da técnica xamanística, que é a psicanálise, tira, pois, seus caracteres particulares do fato de que, na civilização mecânica, não há mais lugar para o tempo mítico, senão no próprio homem”. Na modernidade o mito não desaparece, mas seu estatuto se transforma, de uma tradição coletiva para um “tesouro individual”.

Uma das características de nossa evolução consiste na transformação paulatina da coerção externa em coerção interna, pela ação de uma instância psíquica especial do homem, o supereu, que vai acolhendo a coerção externa entre seus mandamentos.

O neurótico em psicanálise é aquele que se esforça para submeter-se às exigências do supereu, como se com isso lhe fosse possível reverter a perda subjetiva que se consuma pela passagem pelo Édipo e recuperar a unidade (impossível) com o Outro.

Na modernidade que o Outro se torna inconsciente.

A mania seria um triunfo passageiro sobre a melancolia; a luta inconsciente entre eu e supereu, com vitórias parciais de um lado e de outro do campo de batalha, faz dos estados maníacos e melancólicos duas faces indissociáveis da mesma estrutura psíquica.

Depressão é o nome contemporâneo para os sofrimentos decorrentes da perda do lugar dos sujeitos junto a versão imaginária do Outro.

Não é possível precisar se todos esses crescimentos estatísticos revelam um aumento epidêmico das depressões (assim como dos transtornos bipolares e da hiperatividade infantil), um aperfeiçoamento de métodos diagnósticos, uma consequência da expansão da indústria farmacêutica ou, na pior das hipóteses, uma atuação conjunta de todos esses fatores.

As novas estratégias de venda dos laboratórios farmacêuticos já não se limitam à divulgação dos remédios lançados no mercado. A ênfase dos panfletos distribuídos nos consultórios de médicos e psiquiatras recai sobe os novos critérios de diagnóstico das depressões, de modo a incluir um número crescente de manifestações de tristeza, luto, irritabilidade e outras expressões de conflito subjetivo entre “transtornos” indicativos de depressão a serem tratados por emprego de medicamentos.
Assistimos, assim, a uma patologização generalizada da vida subjetiva, cujo efeito paradoxal é a produção de um horizonte cada vez mais depressivo.

O projeto pseudocientífico de subtrair o sujeito- sujeito de desejo, de conflito, de dor, de falta- a fim de proporcionar ao cliente uma vida sem perturbações que acaba por produzir exatamente o contrário: vidas vazias de sentido, de criatividade, de valor. Vidas em que a exclusão medicamentosa das expressões da dor de viver acaba por inibir, ou tornar supérflua, a riqueza do trabalho psíquico- o único capaz de tornar suportável e conferir algum sentido à dor inevitável diante a finitude, do desamparo e da solidão humana.

A maior parte dos lucros da indústria farmacêutica depende de alguns poucos remédios para os quais sempre se buscam novos usos. Se tais novos usos não surgem por meio de experimentos, recorre-se à publicidade de certos males- ou seja- a convencer as massas de que alguns de seus estados de ânimo são, na verdade, doenças que requerem tratamento.

Nos congressos internacionais de psiquiatria, mais do que a propaganda de produtos lançados no mercado, o que e divulgam são novos métodos diagnósticos capazes de detectar os menores sinais de distúrbios depressivos.
À aparente eficiência dos tratamentos medicamentosos soma-se a paixão pela segurança que caracteriza a sociedade contemporânea para a qual a ideia de que a vida seja um percurso pontuado por riscos inevitáveis parece um escândalo.
A aliança entre os ideais de precisão científica e de eficiência econômica produz uma visão fantasiosa da vida humana como um investimento no mercado de futuros, cujo sentido depende de se conseguir garantir, de antemão, os ganhos que tal investimento deverá render. É evidente que, e acordo com a lógica subjacente a esse projeto, o campo incerto da subjetividade, tributário do movimento errante do desejo inconsciente, deve ser reduzido à sua dimensão mais insignificante a fim de que nenhum rodeio inútil se interponha entre cada projeto de vida e sua meta final. Tal desvalorização dos meios (e dos rodeios, dos descaminhos, da errância e de todas as formas de digressão que permitem certo usufruto desinteressado do tempo) em prol de uma finalidade urgente e inquestionável favorece o sentimento genuinamente depressivo de desvalorização da vida.

O mais recente “avanço” da psiquiatia consiste em substituir, pontualmente, comportamentos indesejados por outros mais adequados. Dessa forma, não há razão para não se oferecer medicamentos também às pessoas consideradas “normais”, de forma a eliminar um ou outro comportamento indesejado, um ou outro estado de humor desagradável, e assim possibilitar a conquista de um estado de ânimo estável e sem conflitos, uma saúde mental “melhor que bem”.

Encontramos com frequência, entre os depressivos, transtornos na percepção temporal revelador por aqueles que sentem que o tempo cotidiano, sem a sustentação de uma fantasia a respeito do futuro, tornou-se um tempo estagnado, um tempo que não passa.

O desejo, em psicanálise, é por definição inconsciente- e seu objeto, perdido. A posição do sujeito ante o objeto (perdido) de seu desejo determina seu lugar no fantasma, de onde ele ensaia sua versão inconsciente a respeito do que o Outro quer dele. Dessa posição, sobre a qual se sustenta a estrutura, o neurótico, forçosamente, deverá cair- se não na vida, certamente ao longo de uma análise.

É quando as tradições perdem a força de determinar os destinos das novas gerações, quando a verdade deixa de ser entendida como revelação divina e se multiplica em saberes especializados, quando o Outro deixa de estar representado imaginariamente, por uma única e incontestável figura de autoridade, que o indivíduo é obrigado a se afirmar como centro de suas referências e a se responsabilizar por estabelecer alguma concordância entre a verdade do ser e o Bem, entendido como convicção coletiva estabilizadora do laço social.

O que varia da passagem das sociedades tradicionais para a modernidade é, por um lado, o estatuto imaginário do Outro, que se fragmenta em inúmeras representações; por outro lado, o aumento da responsabilidade do eu- que se individualiza- por suas escolhas, o que favorece a culpa neurótica.
A vergonha é um afeto causado quando um homem é ferido em sua imagem pública, enquanto o tormento da culpa é uma questão de foro íntimo, provocada pela (auto) condenação da consciência moral. Em um sociedade guerreira, em que o valor do homem se estabelece em ato diante de todos os seus companheiros, o sentido público da vergonha é mais determinante do que a culpa.
Do século XV em diante, foi o campo do Outro que se desarticulou e perdeu a unidade mantida durante séculos sob a hegemonia da Igreja católica.

A racionalidade aparentemente infinita do capitalismo consiste em fazer com que as resistências, conscientes ou inconscientes, trabalhem a seu favor, incluindo até mesmo as representações recalcadas do mal-estar entre os valores agregados às mercadorias.
A desconflitualização do psíquico é concomitante, se não tributária, da desconflitualização do campo social.
A constituição do psiquismo é tributaria do Outro, tanto no sentido simbólico do campo (aberto) da linguagem quanto em sua face imaginária, ancorada em personagens- aos quais o sujeito atribui, na vida social ou na esfera das relações amorosas, alguma forma de poder- que substituem os primeiros seres de amor da vida infantil, como porta-vozes dos significantes mestres que organizam o laço social.
Do ponto de vista da constituição dos sujeitos, sabemos que a separação entre a criança e o Outro materno produz a perda de um objeto (dito objeto a, inaugurador de toda a série de objetos aos quais o desejo há de dirigir seu impulso) que, por sua própria natureza, é impossível de ser reencontrado. Esse objeto perdido passa a funcionar então como causa do desejo. Não confundir com o suposto “objeto do desejo”, promessa e/ou fantasia com a qual estamos sempre a nos iludir; o desejo não tem objeto que o satisfaça, é puro impulso em busca do reencontro impossível com um objeto perdido. A rigor, todos os objetos podem satisfazê-lo de maneira fugaz, e nenhum há de satisfazê-lo antes da morte, único objeto total ao alcance do humano.
Para não ter de suportar tal destino de desejar o que já não há e arcar com a falta, o sujeito inventa o que Lacan chamou de fantasma: um modo de negociar o objeto a, em sua função de causa do desejo, em troca da demanda do Outro. O neurótico se defende da castração “ao transportar para o Outro a função do a”. Negocia o desejo pela demanda, e tenta trocar a (in)satisfação pela esperança de gozo. Já não é ele quem deseja, é o Outro que o demanda. Atender a essa demanda é um modo de fazer-se objeto para o gozo do Outro; operação tentadora, mas impossível.

A instância do supereu, herdeira das interdições e das moções de gozo que caracterizam o complexo de Édipo, também pode ser considerada uma representante da realidade social no psiquismo, a operar através da imposição de ideais de eu e da regulação da oferta de modalidades de gozo. O supereu exige que o sujeito goze, ao mesmo tempo que o proíbe de gozar. A solução de compromissos entre esses dois mandatos impossível se dá via da adesão do eu aos ideais que, em última instância, são formações imaginárias organizadoras do campo social, variáveis de cultura para cultura. Os ideais de eu nunca são puramente individuais, eles se formam pela via das identificações que incluem necessariamente o Outro, os Outros.

Nas sociedades industriais, ou superindustriais, do século XXI, a face imaginária do Outro vem sendo positivada constantemente por obra da indústria do espetáculo, cuja oferta de imagens recobre quase toda a face do planeta. A essa grande dispersão das representações imaginárias do Outro, ao corresponder, necessariamente, igual multiplicidade de mandatos e de enunciados. Uma das características mais paradoxais da chamada sociedade do espetáculo é justamente essa combinação entre uma grande variedade de imagens que se oferecem à identificação e à repetição praticamente idêntica dos enunciados que elas veiculam.

É possível que, no atual estágio do capitalismo, a condição de desamparo do sujeito moderno ante o descentramento e a multiplicação das formações imaginárias que, dessa forma, impossibilitam uma representação estável e socialmente compartilhada do Outro esteja em vias de superação.

O avanço das técnicas de sondagem das “motivações inconscientes” do chamado público consumidor joga um papel decisivo nesse quadro, o que torna possível afirmar que uma série de enunciados que dizem respeito às representações recalcadas deixaram de ser inconscientes. Eles participam da constituição da realidade social através de seus principais arautos: as mensagens publicitárias emitidas não apenas pelos outdoors, o rádio e a televisão, mas também pela internet, pelos aparelhos de celular, ou embutidas na forma de merchandising na teledramaturgia e no cinema, assim como em algumas notícias de jornais.

Vale ressaltar que, em Guy Debord, a ideia de “sociedade do espetáculo” não se reduz à mera constatação de que somos permanentemente assediados por uma abundante oferta de imagens. O conceito de espetáculo não se resume a um conjunto de imagens, mas é uma relação social entre indivíduos mediada por imagens.
As imagens, por sua própria condição, se oferecem como resposta ao enigma do inconsciente pela via de produção de sentido, que é a mesma via da produção de identificações. Dessa forma, o movimento errático do desejo cede lugar ao gozo promovido pelo encontro com a imagem que encobre a falta de objeto.

De certa forma, é como se a réplica do fantasma, que situa o sujeito do inconsciente diante da demanda de gozo do Outro, se apresentasse aos sujeitos e a partir de um outro lugar, socialmente compartilhado e alheio ao inconsciente.

A face imaginária do Outro, na vida contemporânea vem coincidir com os mais primitivos mandatos do supereu, prometendo atender aos anseios recalcados ao longo da travessia edípica: anseio de abrir mão da vida do desejo em troca de uma oferta (imaginária) de gozo.

A aparência de multiplicidade de imagens ofertadas, com a consequente pulverização das demandas do Outro, na vida contemporânea, é enganosa. Sob as mais variadas imagens e os mais diversos enunciados, a versão imaginária do desejo do Outro, hoje, tem tanta consistência como na Idade Média quando a hegemonia da Igreja católica ainda não fora abalada pelas teses de Lutero. O que o Ouro exige do sujeito contemporâneo é sempre que ele goze. Muito. Que essa seja uma das faces contraditórias do imperativo superegoico – “goze!/não goze!”- só faz tornar essa exigência, promovida a condição organizadora do laço social, ainda mais angustiante e opressiva para os sujeitos.

Ao contrário do que pode parecer, uma cultura regida por imperativos de gozo não produz necessariamente sujeitos mais independentes da crueldade superegoica.
A culpa neurótica em relação ao supereu tora-se ainda mais impagável sob tais condições, em que os ideais parecem não exigir das pessoas mais do que disposição de usufruir dos prazeres do presente, de cultivar o corpo e entregar-se às fantasias associadas aos apelos do consumo. O sujeito culpado não leva em conta, porque não sabe disso, a impossibilidade de responder ao gozo ao qual é convidado ou, do ponto de vista do supereu, lhe é exigido. O sentimento de insuficiência, o medo de perder o amor dessa instância que representa, no psiquismo, a esperança de recuperar a fatia e narcisismo e a porção de gozo perdidas torna os neuróticos candidatos à depressão.


Não cabe ao psicanalista proibir as pessoas de gozar. Mas ele pode ser o porta voz da autorização para não gozar. É importante que se possa dizer, publicamente: “Vocês podem não gozar”.

É preciso levar em consideração ainda, o modo como o imperativo do gozo se articula aos ideais de eficácia econômica. Tal articulação subverteu os ideais de renuncia pulsional que oprimiam os contemporâneos de Freud. Na sociedade contemporânea, o gozo fálico não se obtém mais apenas nos breves intervalos de tempo roubados ao trabalho alienado. Na passagem do capitalismo produtivo ao capitalismo consumista, a porção subjetiva cedida pelos cidadãos, trabalhadores ou não, à acumulação do capital não diminuiu, embora em muitas profissões as jornadas de trabalho tenham até sido encurtadas. O capitalismo contemporâneo apropria-se e alimenta-se de algo mais íntimo do que a força do trabalho, o capitalismo alimenta-se do mais-de-gozar.

É fácil perceber os efeitos de vazio subjetivo produzidos por tal apropriação, a despeito de todas as engenhocas que o mercado oferece para compensar os sujeitos dessa expropriação do que lhe é mais genuíno: a invenção singular dos destinos da pulsão.

O que esse trabalho produz? Nada mais nada menos que os sujeitos de que o atual estágio do capitalismo necessita: sujeitos esvaziados do que lhes é mais próprio, mais íntimo, portanto disponíveis para responder aos objetos e imagens que os convocam; sujeitos ligados ao puro “aqui e agora” de um presente veloz, incapazes de imaginar um devir que não seja apenas a reprodução da temporalidade encurtada característica do capitalismo contemporâneo.

Isso gira no vazio, na mesma velocidade com que se produzem as concentrações do capital virtual na bolsa de valores: um dinheiro a que não corresponde nenhuma produção de riquezas. Custa-nos entender o óbvio, lembrado por Marx em o capital: a produção de riquezas, em uma sociedade, não é idêntica ao acúmulo de dinheiro. O dinheiro, como mercadoria circulante universal, só equivale à riqueza nos casos em que possibilita a intensificação das trocas, não só materiais, mas também simbólicas. Riqueza, em Marx, significa intensificação e circulação de capacidades, de necessidades, de invenções, de potencial humano. Uma economia que apenas concentre capital não produz uma sociedade rica, do mesmo modo que as razões do mercado estão longe de produzir uma sociedade justa ou razoável.
Acima das trocas humanas de riqueza, uma nova forma abstrata de poder, chamada mercado financeiro, regula a vida social, sustentada pela crença globalmente compartilhada que faz equivaler acumulação de dinheiro à riqueza. Em consequência, os desígnios do capital financeiro, sempre fora do alcance do homem comum, não podem ser contrariados.

Ao apropriar-se dos signos de gozo circulantes no imaginário social, os valores da eficiência econômica estendem-se a todos os âmbitos da vida, numa escala sem precedentes na história.
Uma sociedade governada pelo vale-tudo das razões de mercado torna-se ingovernável, além de produzir uma descrença generalizada na potência dos homens como agentes de transformação política, descrença esta que remete ao abatimento fatalista dos depressivos.

Marx já previa a dimensão de fantasia necessária para sustentar o feitiche da mercadoria, mas não poderia prever a dimensão superindustrial da produção dessa mercadoria inefável, cujo valor é todo sustentado pela fantasia: a mercadoria imagem.
A fantasia, antes uma mera pressuposição, tornou-se dominante na relação do sujeito com a mercadoria.

Ora, fazer sumir a falta significa fazer sumir o sujeito do desejo, daí decorre que a angústia participa inevitavelmente desse circuito, empurrando os sujeitos ainda mais, ora em direção às compensações do gozo imaginário, ora em direção aos efeitos anestesiantes das drogas e psicofármacos.

As mercadorias deslizam pelo oceano imaginário como objetos a mais, sempre portadoras de apelos mais intensos, por entre sujeitos que deslizam como mercadorias.

O sujeito da cultura do espetáculo observa o mundo como se fosse um eterno álbum familiar preenchido não pelas imagens de seus parentes, mas pelos acontecimentos do mundo das celebridades.

Assim, se produzem os sujeitos expropriados da experiência do inconsciente e do desejo, ávidos pelo consumo de imagens que lhe indiquem quem eles são.

Pois o que distingue a sociedade do consumo não é o fato que eles comprem incessantemente os bens em oferta, acessíveis a poucos, mas que todos estejam de acordo com a ideia de que tanto o sentido da vida social como o valor dos sujeitos sejam dados pelo consumo. Embora poucos possuam recursos para consumir os bens em oferta, as imagens que ocupam a esfera pública são acessíveis a todos.

O que se considera ação humana aqui são ações capazes de produzir alterações no campo do simbólico. Escolher a marca de cerveja, exibir o tênis de grife ou o carro do ano, malhar o corpo na academia e outras tantas modalidades dessa agitação que preenche todo o tempo não ocupado pelo trabalho ficam excluídas dessa categoria.

É difícil, até mesmo para os críticos e para os descontentes, imaginar as condições de superação de uma ordem social sustentada bem menos por estratégias de interdição do que por técnicas de sedução.

O aspecto do sintoma, que é o de ser uma tentativa (ainda que mal-sucedida) de cura.

O depressivo é aquele que se retira da festa para a qual é insistentemente convidado.

Os depressivos, cujo número parece aumentar na proporção direta dos imperativos de felicidade, são incômodos na medida em que questionam esse projeto.

A dolorosa consciência de sua inadaptação é confirmada pelo empenho da indústria farmacêutica em devolver os depressivos ao convívio regular com o coro dos contentes.

A diferença é que, se nos primeiros séculos do capitalismo industrial era importante curar o neurótico de suas inibições para fazê-lo produzir, hoje as neurociências se empenham em animar os depressivos para torna-los aptos a consumir. Ou, pelo menos, a desejar consumir, a estar de acordo com as demandas de consumo- essa forma avançada de poder disciplinar que normaliza a vida social.

Winnicott em O brincar e a realidade, relaciona a falta de criatividade ao fatalismo:

É através da apercepção criativa, mais do que qualquer outra coisa, que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida. Em contraste, existe um relacionamento de submissão com a realidade externa, em que o mundo em todos os seus pormenores é reconhecido apenas como algo a que ajustar-se ou a exigir adaptação.
A submissão traz consigo um sentido de inutilidade e está associada à idéia de que nada importa e que não vale a pena viver a vida.
O depressivo, em sua estranha recusa a acreditar nos semblante da felicidade, está muito mais próximo de sua vida desejante do que ele imagina.

O tempo é o tecido da nossa vida. (Antônio Cândido)

O psiquismo se instaura a partir do trabalho de representação do objeto de satisfação esperado, na tentativa de anular o angustiante intervalo de tempo vazio.

O tempo é instituído, para cada sujeito, no intervalo entre a tensão de necessidade e a satisfação; mas como, para o filhote humano, a satisfação de necessidades depende inteiramente de que um Outro queira se ocupar dele, tal intervalo logo se apresenta a ele como o tempo que separa a demanda do Outro a possibilidade de o sujeito responder a ela. Dito de outra maneira: o sujeito do desejo, em psicanálise, é um intervalo sempre em aberto, eu pulsa entre o tempo próprio da pulsão e o tempo urgente da demanda do Outro.

“Apressa-te lentamente”: essa máxima latina foi adotada na juventude por Italo Cavino por representar “ a intensidade e a constância do trabalho intelectual.

A apologia da rapidez não exclui “os prazeres do retardamento”, que na literatura são finamente representados pelas digressões.

Freud em “A interpretação dos sonhos”, nos faz entender que o tempo ocioso que antecede as descobertas criativas, os “achados” aparentemente espontâneos que nos ocorrem independentemente dos processos conscientes de cálculos e raciocínios é o tempo do pensamento inconsciente. O instante do Eureka! Na criação artística, na pesquisa intelectual, no setting analítico etc; depende de um tempo interior, singular para cada sujeito e impossível de se determinar.

“Aproveitar bem o tempo” é um dos imperativos da vida contemporânea que corresponde a uma série de possibilidades que de fato se abriam para o desfrute da vida privada nas sociedades liberais. O indivíduo, sob o capitalismo liberal, dispõe de uma enorme variedade de escolhas quanto ao desfrute de seu tempo livre, não mais regulado pelos ritos e pelas proibições da vida religiosa nem limitado pelas horas de luz do dia ou pelo maior ou menor rigor das estações. Por outro lado, a marcação que caracteriza o tempo do trabalho (de forma desproporcional à oferta efetiva de oportunidades de trabalho) invade cada vez mais a experiência da temporalidade, mesmo nas horas ditas de lazer. Não me refiro ao ócio, essa forma de passar o tempo tão desmoralizada em nossos dias, mas às atividades de lazer, marcadas pela compulsão incansável de produzir resultados, comprovações, efeitos de diversão, que ornam a experiência do tempo de lazer tão cansativa e vazia quanto a do tempo da produção.
Nada causa tanto escândalo, em nosso tempo, quanto o tempo vazio. É preciso aproveitar o tempo, fazer render a vida, sem preguiça e sem descanso.

É poderosa a pregnância imaginária dos acontecimentos que se desenrolam com no tempo. A esse registro chamamos memória, lembrança, rememoração. A memória obedece às leis que regem o imaginário. É ela quem no dá alguma medida, tanto individual quanto coletiva, do fio do tempo, e estabelece uma consistente impressão de continuidade entre os infinitos instantes que compões uma vida. Arrisco propor que o passado, cuja inscrição psíquica se dá através da memória, conserva o tempo em sua versão imaginária. É a memória que confere uma permanência imaginária a essa forma negativa do tempo, que é o passado. A função da memória, participante do mesmo registro psíquico do corpo e do narcisismo, é essencial para manter nosso sentimento imaginário de identidade ao longo da vida; ela funciona como garantia de que algo possa se conservar diante da passagem inexorável do tempo que conduz tudo o que existe em direção ao fim e à morte. Já o tempo como categoria abstrata do pensamento pertence ao registro do simbólico. O trabalho humano de simbolização e organização do Real não cessa de contar e demarcar o tempo em séculos, lustros, décadas, anos, meses, semanadas, dias, horas, minutos, segundos, frações de segundo... Marcações puramente simbólicas, destituídas de significação. Por fim, a pura passagem do tempo em direção à morte de todas as coisas, esse transcorrer inexorável, anterior ou independente de sua regulação social- esta que Freud afirma não ser passível de representação psíquica, a não ser pelo recurso à espacialização-, pertence ao registro do Real.
Se todo recalcado é inconsciente, nem todo inconsciente é recalcado. O estado inconsciente em que permanece a maior parte de nosso acervo mnêmico deve-se justamente ao fato de que a consciência só é capaz de trabalhar com escassas magnitudes de estímulos.
Embora essencial, a função da atenção consciente representa apenas uma fração muito pobre do trabalho psíquico, assim como é psicologicamente pobre o presente, tempo da ação orientada pala atenção e vigiada pela consciência.

A marcação abstrata do tempo é vigiada pelo trabalho da consciência em sua função de adaptar o eu às exigências da realidade- que não é outra coisa senão uma construção social. A sensação corriqueira do tempo como curso contínuo, linear e abstrato é produto da consciência, cujo trabalho dobrado de prestar atenção a si mesma e ao que advém de outros sistemas obriga-a a elaborar apenas quantidades escassas do muno exterior.

O que o sistema P-Cc bloqueia para responder ao excesso de estímulos presentes não é a função pontual de reconhecimento desses estímulos- que é uma as funções da memória-, mas a da rememoração, atividade psíquica prazerosa na qual o sujeito se entrega ao fluxo das associações entre estímulos presentes e vivências passadas. A sensação reconfortante de continuidade entre passado e presente que permite ao sujeito reconhecer-se no que Freud chamou de “obra psíquica de sucessivas épocas da vida” é produzida pela associação entre várias séries de marcas mnêmicas.

Já o tempo marcado pela autovigilância da consciência parece angustiosamente vazio, independentemente das atividades que o preenche, em decorrência dessa mesma autopercepção que a consciência exerce durante seu curso.

Freud compara a permeabilidade da consciência ao “bloco mágico”, objeto usado, na época, como bloco de rascunho em que se podia escrever e apagar indefinidamente as anotações.

O “eu oficial” seria o ego freudiano, cuja estabilidade ao longo do tempo depende justamente do trabalho da memória.

Abordarem a diferença estabelecida por Walter Benjamin entre experiência e vivência, de modo a analisar o sentimento bastante generalizado de empobrecimento da vida, nas condições superestimulantes e velozes da modernidade.

Com as solicitações simultâneas do celular, do controle remoto, do mouse e das câmeras digitais- já se entendeu que essas maquinetas nos solicitam, exigem que nos mantenhamos sempre ligados nelas, e não o contrário.

Ao deprimir-se, ele tenta fugir do excesso de ofertas (entendidas como demandas para o sujeito) do Outro para se refugiar debaixo das cobertas.

O que parece, em nossa obsessão pelo futuro, um excesso de desejo (e de vida) não passa do pathos contemporâneo: é a impaciência, essa aflição que nos precipita em direção ao vazio por não tolerarmos a impossibilidade de parar o tempo.

O medo da morte levou o homem do século XXI, com ajuda das biociências, a prolongar consideravelmente o seu tempo de vida biológica, sem com isso tornar-se mais capaz de desfrutar da duração. Hoje é possível viver com saúde durante oito ou nove décadas sem perder a sensação que de o tempo continua curto, de que a vida é a soma de instantes velozes que passam sem deixar marcas significativas.

Onde está o sujeito do desejo, no presente contraído que domina a temporalidade contemporânea? Se, por um lado o neurótico é aquele que adia ao máximo o momento do encontro com o desejo, também podemos sugerir que a pressa interessa a ele, uma vez que ela suprime o intervalo por onde o je tende a se manifestar.
O ideal de um neurótico obsessivo, por exemplo, para que seu sintoma esteja em sintonia com os ideais do eu, seria reduzir a vida a um tempo de puro fazer. Nesse sentido, não há muita diferença entre a pressa e seu aparente antípoda, a inibição: ambas conseguem evitar que algo de significativo, como a ação impulsionada pelo desejo, aconteça.
Em todo caso, nem a pressa nem a inação podem poupar indefinidamente o neurótico de se defrontar, mais cedo ou mais tarde, com o vazio produzido por essa temporalidade reduzida, na medida do possível, à dimensão do puro presente. De maneira não idêntica à do trabalho mecânico ou burocrático, mas similar, pode-se deduzir que o império do corpo- tanto do corpo que trabalha quanto daquele que “malha” para produzir apenas sua própria forma perfeita, atividades que no estágio atual do capitalismo pouco se diferenciam- desfavorecem tanto o compromisso com o desejo como o sentimento de continuidade da existência.

Sua lentidão encobre a impaciência característica dos que tiveram sua demanda antecipada pelo Outro e se vedem incapacitados para preencher esse inquietante rodeio entre o nascimento e a morte, ao qual chamamos de vida.

Pois o que é o desejo senão o movimento que rodeia o vazio deixado por seu objeto?

Há a predominância da técnica não apenas sobre outras formas de relação com a natureza, mas acima de tudo das relações entre os homens.

Não que as guerras anteriores ao “monstruoso desenvolvimento da técnica” fossem menos cruentas. O diferencial introduzido pela tecnologia, na guerra de 1914, além do óbvio incremento da capacidade de destruição da vida, foi o da velocidade e da imprevisibilidade dos ataques aéreos, que tornaram supérfluas as qualidades físicas e a experiência estratégica dos soldados.

Se a experiência não nos vincula ao patrimônio que herdamos, ele se torna um peso ou um adorno vazio. Nas primeiras décadas no século XX o homem moderno já se sentia pressionado a estar permanentemente disponível para acolher o novo, fosse ele qual fosse. A velocidade das mudanças que se generalizaram a partir da guerra exigiu que as pessoas de despojassem tanto de sua própria história quanto da memória de seus antepassados.

Na vivência cotidiana dos sobreviventes, habitantes das cidades devastadas e reconstruídas, era necessário impedir as invasões do psiquismo pelas reminiscências espontâneas (fragmentos vivos do passado no presente), por pelo menos duas razões: em primeiro lugar, porque a memória de tantas referências destruídas tornaria a vida insuportável; em segundo, para manter a atenção consciente trabalhando a todo o vapor a fim de promover as reações adequadas e imediatas aos estímulos e solicitaçõe4s do novo mundo.

Me alinho a Susan Sontag, para quem não faz sentido se estabelecer a idéia de uma pós-modernidade sem que nenhuma das contradições características da modernidade tenha sido superada e poucas de suas promessas tenham sido cumpridas.

A invasão do Real sobre o psiquismo que não dispõe de recursos de linguagem para simbolizá-lo é chamada pela psicanálise de trauma. Ao destruir as redes de representação psíquica que acolhem novos eventos e lhes conferem sentido, o trauma destrói, pelo menos em parte, o valor da experiência. Em termos freudianos, o excesso de energia não ligada que invade o psiquismo exige repetidamente um movimento de retorno à cena traumática que toma duas vias psíquicas opostas. Ao mesmo tempo que atende à tentativa de simbolização- ao lugar a energia livre a uma cadeia de representações, a repetição do trauma torna-se presa do movimento repetitivo característico do gozo da pulsão de morte: daí a conexão, não tão óbvia quanto parece, entre vivência traumática e episódios depressivos.

O oposto de experiência é chamado por Benjamin de vivência, compatível com o “presente comprimido”. O que Benjamin designa por vivência corresponde ao que, do vivido, produz sensações e reações imediatas mas não modifica necessariamente o psiquismo.

O sucesso de grande parte de nossas ações cotidianas, que exigem respostas rápidas a estímulos contínuos, depende de não nos deixemos tomar pelos devaneios, pelas fantasias, por reminiscências espontâneas. Essas formas “dilatadas” da atividade psíquica distraem os sujeitos das exigências impostas pelo presente absoluto.

É evidente o sentimento de mundo vazio, ou de vida vazia, que decorre da supremacia da vivência sobre a experiência. A suposta falta de tempo para o devaneio e outras atividades psíquicas “improdutivas” exclui exatamente aquelas que proveem um sentido (imaginário) à vida, assim como as atividades da imaginação, filhas do ócio e do abandono. Pela mesma razão também se desvaloriza, por ser “inútil” ou “contraproducente” a experiência do inconsciente.

Um saber que pode ser passado adiante e que enriquece o vivido não apenas paras aquele a quem a experiência é transmitida, mas também para aquele que a transmite. É no ato da transmissão que a vivência ganha o estatudo de experiência, de modo que não faz sentido, em Benjamin, a idéia de experiência individual. Assim como um significante representa o sujeito para outro significante, assim como nenhum ato de linguagem se completa fora da relação com o outro, o sentido e o saber extraídos de uma vivência só adquirem o estatuto de experiência no momento em que aquele que os viveu consegue compartilhá-los com alguém.

Em Benjamin, a experiência é incompatível tanto com a temporalidade veloz quanto com a sobrecarga de solicitações que recaem sobre a consciência. A condição da experiência benjaminiana é antes o ócio que a atividade. “O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência”.

Viver a vida sem ter de tomar para si o duro encargo de ser o guardião solitário de todo o vivido: tal possibilidade de deixa-se estar no fluxo temporal parece inatingível para os indivíduos desgarrados da temporalidade coletiva, no mundo contemporâneo.

De todas as experiências subjetivas que a história deixou para trás, talvez a mais perdida, para o sujeito contemporâneo, seja a do abandono da mente à lenta passagem das horas: tempo do devaneio, do ócio prazeroso, dedicado a contar e rememorar histórias.
Uma experiências que os jovens buscam recuperar através do uso de certas drogas não excitante como a maconha, que fumam sozinhos ou em grupo- nesse caso, a troca de experiência ajuda a atenuar a angústia ante o retorno da temporalidade recalcada.

Uma das marcas importantes da virada freudiana foi ter deslocado a consciência do lugar prestigioso que ocupava nas psicologias, até a sua época. Em Freud, o conceito de psiquismo não só se confunde com o de consciência, como praticamente o exclui. “A consciência não pode ser um caráter geral dos processos anímicos, senão apenas uma função específica dos mesmos”.
O trabalho da consciência de aparar os choques do mundo externo e interno é o mais pobre dos trabalhos psíquicos.

Situada na borda do aparelho psíquico, a consciência teria a função de anteparo contra os estímulos provindos do mundo externo, assim como de regular as sensações de prazer e desprazer provenientes do interior do aparelho.
“A camada exterior protegeu com sua própria morte as demais camadas, mais profundas, de um destino análogo, uma vez que, para o organismo vivo, a proteção contra as excitações é mais importante que a recepção das mesmas”.

A consciência é um aparato defensivo que, em última instância, permite que o sujeito viva no mundo, sob as mais diferentes condições. Possibilita que ele suporte os choques das percepções que lhe chegam sem que ele tenha escolhido, ou se preparado para elas. A relação da consciência com a memórias é pontual: limita-se a função de reconhecimento dos estímulos percebidos. Nisto consiste o valor do trabalho psíquico de organizar percepções inesperada, surpreendentes- por isso mesmo, potencialmente traumáticas, liga-las a uma rede de representações que lhe conferem sentido e transformar a marca dessas percepções em lembranças, de modo que sua repetição possa ser acolhida pelo psiquismo na forma de uma significação conhecida. Mas se a consciência nasce no lugar das primeiras marcas mnêmicas, por sua vez os atos de rememoração, de evocação da lembrança, exigem a desativação provisório da atenção consciente. O instante da rememoração depende do abandono da atenção consciente.

O Real, na teoria lacaniana, corresponde ao irrepresentável.

A expressão corriqueira “preciso disso para ontem” expressa bem tal desvalorização da duração presente, a única na qual o corpo existe, respira, age- duração que é também a temporalidade psíquica do sujeito que espera pela satisfação. Queremos “tudo ao mesmo tempo agora”: o tempo comprimido e aparentemente pleno de ofertas/demandas de gozo, que caracteriza a sociedade contemporânea, é cúmplice, senão coautor, do sentimento de vazio que abate os depressivos. Parece que nada falta aos que se precipitam na velocidade exigida por essa demanda.

A tecnologia tanto provoca quanto acompanha as mudanças subjetivas dos homens, já oferece uma aparente solução para o vazio da experiência da sociedade contemporânea: os aparelhinhos de registrar nossa existência no tempo parecem tentar substituir o trabalho imaginário da memória. Celulares e máquinas fotográficas computadorizadas oferecem às pessoas a imagem instantânea de cada momento vivido, de modo a garantir que, pelo menos nas férias ou nas noites de sábado, algum acontecimento tenha merecido registro- se não no psiquismo, ao menos na telinha destinada, também ela, à rápida superação.
É notável o efeito social do caráter instantâneo da reprodução fotográfica, que relegou as velhas polaroides à prateleira das velharias.
Os grupos que se reúnem na tentativa de compartilhar um momento inesquecível dedicam-se freneticamente a registrar as provas incontestáveis de sua felicidade. Se a foto não corresponder à imagem esperada, é fácil apaga-la e substitui-la por outra, até se obter uma edição perfeita da noitada ou do fim de semana. Que por sua vez terá sido todo ele ocupado pela própria atividade de perpetuar sua existência fugaz numa foto perfeita.


Não sei se devemos considerar o afã em registrar em imagem todos os momentos da existência apenas como efeito das inovações tecnológicas e dos apelos narcísicos com que elas se oferecem aos consumidores.
Talvez a necessidade de testemunhar, por meio de fotografias ou de registros em vídeo, os chamados “bons momentos da vida” revele exatamente o empobrecimento da experiência que Benjamin atribuiu, desde o início do século XX, ao lugar hiperdimensionado que a técnica ocupa na vida moderna.

Seria essa necessidade de registrar em imagens supostamente fidedignas cada momento vivido um sintoma de que a temporalidade socialmente regulada na vida contemporânea esteja encurtando a experiência subjetiva da duração?

Um dos efeitos dessubjetivantes da velocidade é o empobrecimento da imaginação: o que se busca, no instantâneo fotográfico, é uma espécie de atestado de que a vida, como aquition que n’est plus soeur du rêve, tenha sido de fato vivida.

Em um poema em prosa de 1863, “Les fenêtres”, Baudelaire retoma mais uma vez a aliança entre a vida e devaneio, ao escrever que aquilo que se enxerga através de uma janela aberta não se compara com o que se vê pela janela fechada. O poema é uma apologia do caráter misterioso do objeto de desejo, que excita a imaginação sem jamais se reduzir ao que os olhos podem ver.

“Talvez você me diga: tens certeza de que essa lenda é verdadeira? Que me importa o que seja a realidade colocada fora de mim, se ela me ajudou a viver, a sentir que eu sou e o quê eu sou?”

Nós constituímos provavelmente as primeiras sociedades da história a tornar as pessoas infelizes por não ser felizes. (Bruckner- a euforia perpétua: ensaio sobre o dever da felicidade.)

Dedicar-se a alguma coisa com alguém implica um projeto. Pode ser um projeto privado, é claro: um casamento, por exemplo.
Lacan se refere ao final da análise como o momento em que o sujeito pode encontrar sua satisfação através da associação com os outros, tendo em vista a realização de uma obra.

É quando o lugar do analista na transferência de um Outro supostamente demandante a quem o sujeito pretende servir, finalmente se revela vazio e o sujeito cai de sua posição fantasmática. Essa queda parece um agravamento do desamparo, mas não é: ao deparar-se com o fato de que o Outro é um lugar simbólico, vazio de significações, vazio de amor e de demandas de amor, o sujeito está em melhor condição de sustentar sua posição a partir do desejo. Condição bem menos confortável do que daquele que se imagina entregue às boas mãos de Deus, ou ao amor do Outro. Menos confortável e mais livre. Mais aberta à invenção, ao risco, à escolha.

Na contemporaneidade, a atual predominância dos imperativos de gozo sobre os imperativos de renúncia ao gozo, característico das formações superegoicas na era freudiana, não implica a destituição do supereu como representante psíquico da Lei e da ordem social, nem representa um afrouxamento de suas exigências. Ao contrário: sendo o imperativo de gozo, por definição, impossível de se cumprir e aliado da pulsão de morte, o que observa-se é que o superego tornou-se ainda mais rigoroso, mais exigente e mais cruel. Do ponto de vista do neurótico, não há diferença em culpar-se por falta ou por excesso de gozo.

A intolerância ao conflito predominante nas culturas do “bem estar”, cultura nas quais as ideias de felicidade e saúde psíquica se reduzem a projetos de conforto, segurança e autoafirmação. Para realizar tal projeto, não há melhor recurso do que a medicação: ela contribui para o apagamento do conflito psíquico ao agir no lugar do sujeito. Sob efeito da medicação, o sujeito não se dispõe contra si mesmo nem interroga as razões de seu mal-estar: vai pelo caminho mais curto, que consiste em tornar-se objeto de seu remédio.

A expectativa psiquiátrica é de que o apaziguamento do conflito seja a chave para garantir a manutenção da propagada “autoestima”: um indivíduo apaziguado é um indivíduo de acordo consigo mesmo, supostamente não dividido, mais inteiro. Em uma sociedade em que as pessoas circulam como mercadorias em oferta, um indivíduo “inteiro” não valeria muito mais do que um sujeito dividido e conflituado?

Afinal, o bem-estar não é a cura, porque curar-se significa ser capaz de sofrer, de tolerar o sofrimento. Estar curado, desse ponto de vista, não é simplesmente ser feliz, é ser livre.

A ideia psicanalítica de cura está longe de perseguir os ideais da emancipação “self-made”, que atormentam os sujeitos contemporâneos. Mas está igualmente distante de uma proposta de adequação à norma, seja ela a normalidade do sacrifício e da repressão que caracterizou o período em que Freud viveu e inventou a psicanálise, seja a da pseudo-transgressão em busca de novas formas de mais-de-gozar, que tornam ainda mais irresistível a servidão voluntária de nossos dias.

Seja qual for o semblant da normalidade criado em cada cultura, um dos critérios mais persistentes e mais invisíveis que define a adaptação à norma continua sendo a regulação social do tempo. Com o medicamento o depressivo obtem a capacidade de fazer as tarefas banais da vida cotidiana no tempo do outro, ainda que a vida continue lhe parecendo totalmente desprovida de interesse e valor.

A depressão decorre de um excesso de presença do Outro, que torna claudicante a simbolização da ausência.

A arte do analista deve ser a de suspender as certezas do sujeito até que se consumem os seus últimos espelhismos”. Lacan.

O final da análise se apresenta quando o desejo do sujeito passa a comandar suas escolhas, que até então vinham se orientando na direção da (suposta) demanda do outro.

A passagem por uma análise deve restituir a esse que se instalou em um mundo desencantando a possibilidade de sonhar, de recordar e também de fantasiar, pois a fantasia é o suporte do desejo.

Na análise dos neuróticos, é necessário desinflar a fantasia que sustenta as “certezas” com que o sujeito se esquiva da castração simbólica.

A castração, em psicanálise, não é um vazio de morte: é o vazio pulsante a partir do qual emergem as moções de desejo.

Não se trata de crença, mas de aposta. Constrói-se assim uma fantasia, como expressão do desejo (sempre) inconsciente, em outro tempo verbal: em vez de o “assim deve ser” com que o neurótico tenta justificar suas escolhas como se agisse sob ordens; em vez da indiferença em relação às expectativas e aos acontecimentos que caracteriza a depressão, a fantasia em um final de análise pode se expressar num futuro mais-que-perfeito: quisera.
Nada- e ninguém- autoriza o depressivo a acreditar que sua fantasia há de se realizar. Ele apenas adquire a coragem de apostar nela.

Que as condições sociais da transmissão das narrativas na modernidade tenham sido praticamente destruídas não implica que as pessoas deixem de tentar atribuir valor e sentido a suas vidas, ao narrar repetidamente suas pequenas anedotas no círculo familiar ou no grupo de amigos.

O depressivo, em sua bem calculada posição de exceção que recusa todas as crenças, acredita piamente na mais tola delas: a de seu desligamento em relação ao laço social.

O neurótico tem horror ao vazio. Ele o preenche com fantasias, com dramas, com pequenas tragicomédias, com sintomas, com atuações.

Winnicott percebeu que a sensação de que “a vida é digna de ser vivida” não se origina tanto da experiência empírica com as eventuais gratificações que a vida oferece, mas é consequência da capacidade da criança criar a partir de suas percepções.

A essa capacidade, ele chama “apercepção criativa”. Na falta dela, a criança desenvolve uma “submissão com a realidade externa”. O mundo se lhe apresenta como um cenário inalterável que só exige dela a capacidade de submissão e adaptação.

Se do ponto de vista da direção da cura é importante que o analisando ultrapasse o campo narcísico das fantasias, das identificações e dos mecanismos de defesa de modo a possibilitar a emergência do sujeito do desejo, aquele que se submete a uma análise continua dependendo dos recursos do moi, do ego do jargão freudiano, para viver em meio a seus semelhantes. A diferença em relação a outras escolas é que a direção da cura, na psicanálise lacaniana, não tem nada a ver com o propósito de “fortalecer o ego”, e sim, ao contrário, visa proporcionar um esvaziamento do campo do imaginário.

Nesse caso, seria correto considerar a depressão como um mecanismo de defesa? Não vou por esse caminho. O sujeito se refugia na depressão justamente porque não dispõe de recursos para se defender da voracidade do Outro. Ao se encolher, no quarto, na cama, imóvel sob as cobertas, o depressivo tentar evitar o incesto que, na fantasia, lhe parece iminente. Só que em sua retirada, ele acaba por se colocar perigosamente à mercê do mesmo gozo mortífero que vinha tentando evitar, pois quanto mais ele recua, mais se coloca como que no colo do Outro.

A função da lei não é tornar o sujeito conformado, e sim potente, embora barrado. Potente porque barrado. O que não significa que, a cada nova empreitada movida pelo desejo, a angústia de castração não se renove.
As sucessivas operações de “reconstrução de objeto no eu” a que se refere Freud ao mesmo tempo que enriquecem os recursos do eu, possibilitam uma relativa liberdade em relação ao ideal, já que a cada identificação corresponde a uma perda, uma ferida narcísica.

O esconderijo do depressivo na cama, debaixo das cobertas, tem um sentido sobredeterminado: reproduz o aconchego do colo materno e, ao mesmo tempo, protege o sujeito da voracidade do Outro.

Se não há a possibilidade de fazer o que eu quero, então fico com o que eu já tenho, pensaria o depressivo.

O próprio fato de a mãe estar incluída na temporalidade acelerada da vida contemporânea faz com que ela se apresse, automaticamente, a atender da forma mais eficiente possível aos apelos da criança. O comportamento automático da rapidez e eficiência, característico das mães razoavelmente boas do terceiro milênio- mães excessivamente preocupadas com seu desempenho e angustiadas com o pouco tempo que poderão dedicar a seus bebês.

Não pensamos portanto no futuro depressivo como um bebê abandonado e mal-amado, mas como uma criança poupada, em demasia, da necessidade de suportar o que Freud chamou de tensão da necessidade.

Nas sociedades industriais em que existe um fosso entre o usuário da tecnologia e o trabalhador que domina os segredos de sua produção, a técnica propicia apenas uma maior velocidade ao fazer. Paradoxalmente, em vez da velocidade tecnológica proporcionar um ganho de tempo livre para o ócio, o devaneio, a construção compartilhada de narrativas, o incremento do lugar que a técnica ocupa na vida cotidiana deixa os sujeitos cada vez mais disponíveis apenas para o consumo de novos aparatos técnicos. O resultado desse conflito entre a desmoralização da experiência e a tecnologia é que o homem contemporâneo vive assolado pela utilização veloz e contínua de dezenas de aparelhos supostamente elaborados para ajuda-lo a economizar seu tempo.

Em segundo lugar, em parte como consequência disso, as crianças ocupam um lugar ambíguo na cultura: como ideal do gozo (perdido) de seus pais, mas também, paradoxalmente, como investimento no “mercado de futuros”. Essa espécie de duplo vínculo em que a criança está inserida faz com que os pais procurem, ao mesmo tempo, satisfazê-la plenamente (como se isso fosse possível) para maximizar sua felicidade, e estimulá-la ao máximo a fim de desenvolver desde cedo as potencialidades que deverão garantir uma boa colocação na disputa acirrada do mercado de trabalho.

É notável a ansiedade que se manifesta no excesso de atividades desses pequenos, expropriados da experiência de vazio temporal que inaugura o trabalho psíquico, estimula a fantasia e a criatividade e promove tanto a autoconfiança quanto a confiança no mundo. Não devemos confundir a autoconfiança com a propalada “autoestima” tão cara à escola norte-americana da ego-psychology, segundo a qual os pais precisam empreender todos os esforços para impedir arranhões no narcisismo de seus rebentos. A autoconfiança é o oposto da autoestima forjada de fora para dentro: funda-se sobre a experiência infantil de sobreviver à ausência temporária da satisfação promovida pela mãe ou por seus substitutos, assim como de suportar permanecer por alguns intervalos de tempo fora do alcance do olhar do Outro.

Os pais que se apressam a levar crianças ansiosas, hiperativas, tristes e/ou mal-educadas ao psiquiatra talvez revelem ter pretensões tão elevadas a respeito de suas crianças, que não suportam, eles próprios, ajuda-los a enfrentar as crises, as dores, as angústias e os momentos de instabilidade emocional da vida. A atenção à vida subjetiva das crianças, assim como à dos adultos, requer uma relação mais distendida com o tempo; episódios de luto ou de conflito próprios da infância e da adolescência podem custar a perda de um ano escolar, como o mau desempenho em atividades esportivas ou mesmo a perda de popularidade entre os amigos da escola- motivo de importante dor narcísica em uma sociedade em que o valor de cada um é avaliado a partir do “valor de gozo” que o grupo social lhe confere.

O que chamamos “realidade social” consiste, prioritariamente, em formações imaginárias compartilhadas por certos grupos ou pela sociedade inteira. O imaginário dá consistência e estabiliza as estruturas simbólicas que ordenam a vida social.

A popularidade da prática do bullying desde os primeiros anos de vida escola é sintomática dessa mentalidade. Copiada em algumas escolas brasileiras do ambiente de rivalidade dos colégios norte-americanos, tal prática consiste em escolher a criança mais frágil e humilhá-la sistematicamente. Segregação e exclusão são os grandes organizadores da vida social contemporânea.

O medo da rejeição e da humilhação agrava o sofrimento desses adolescente acostumados a medir seu valor, no grupo de referência, por sua capacidade de gozar e de se divertir.

As imagens imperativas e ininterruptas da indústria do espetáculo dispensam o trabalho subjetivo que articula a identificação à perda do objeto, uma vez que reduzem a zero o tempo que separa o momento da perda daquele da recuperação do objeto através da identificação imaginária. Em sua aparente diversidade, tais imagens emitem sempre os mesmos enunciados e os mesmos mandatos; a abundância das imagens não implica em diferenças significativas entre elas, nem institui um intervalo vazio para que o espectador se perceba diverso da imagem que o faz gozar.

O sentimento irredutível (a não ser nas crises psicóticas) de “possuir uma identidade” corresponde simplesmente à inscrição do sujeito no terreno da linguagem. É essa inscrição singular que nos permite dizer “este(a) sou eu”, de forma intransitiva, e manter essa certeza até mesmo em períodos críticos em que não nos sentimos capazes de completar essa frase com qualquer outro predicado.

Para a psicanálise, a não ser por esse traço mínimo que une o sujeito a seu lugar simbólico, a identidade é ilusória. O que não significa que a segurança (perdida) que ela representa não mobilize paixões.

Pode parecer contraditório que a expansão e a fragmentação das imagens difundidas por meio dos meios de comunicação promovam paixões identitárias, e não uma maior abertura das possibilidades no campo das identificações. Mas a aparente contradição teórica entre a oferta de imagens identificatórias e a segurança identitária que elas prometem não representa um impasse insolúvel.

Daí decorre que o sentimento de insuficiência seja a mais perfeita tradução contemporânea da velha culpa do sujeito diante dos imperativos de gozo do supereu, que se fazem mais rigorosos na medida em que se aliam aos significantes ordenadores da vida social.

A psicanálise entende o depressivo, assim como todo ser falante, como um sujeito que se deu mal na estratégia escolhida para esquivar-se de um desejo (sempre) enigmático. (...) O que a psicanálise oferece ao deprimido é a perspectiva de um percurso livre da pressa e da demanda do Outro, o que implica, entre outras, uma autorização para deixar de gozar. Livre dessa urgência, o analisando dispõe de um tempo distendido que caberá a ele preencher com sua fala, suas recordações, suas moções (tímidas, no início) de desejo.

O que se perde diante do tempo vazio é o sentido que o sujeito supõe que seus atos tenham para o Outro.

Maria Rita Kehl
O Tempo e o Cão