terça-feira, junho 23, 2009

Considerações...

É inteiramente concebível que a separação do ideal do ego do próprio ego não pode ser mantida por muito tempo, tendo de ser temporariamente desfeita.
Em todas as renúncias e limitações impostas ao ego, uma infração periódica da proibição é a regra.
Isso, na realidade, é demonstrado pela instituição dos festivais, que, na origem, nada mais eram do que excessos previstos em lei e que devem seu caráter alegre ao alívio que proporcionam.
As saturnais dos romanos e o nosso moderno carnaval concordam nessa característica essencial com os festivais dos povos primitivos, que habitualmente terminam com deboches de toda a espécie e com a transgressão daquilo que, noutras ocasiões, constituem os mandamentos mais sagrados.
Mas o ideal do ego abrange a soma de todas as limitações a que o ego deve aquiescer e, por essa razão, a revogação do ideal constituiria necessariamente um magnífico festival para o ego, que mais uma vez poderia então sentir-se satisfeito consigo próprio.
Há sempre uma sensação de triunfo quando algo no ego coincide com o ideal do ego.
E o sentimento de culpa (bem como o de inferioridade) também pode ser entendido como uma expressão de tensão entre o ego e o ideal do ego.
Atenhamo-nos ao que é claro: com base em nossa análise do ego, não se pode duvidar que nos casos de mania, o ego e o ideal do ego se fundiram, de maneira que a pessoa, em estado de ânimo de triunfo e auto-satisfação, imperturbada por nenhuma auto-crítica, pode desfrutar a abolição de suas inibições, sentimentos de consideração pelos outros e autocensuras.


Freud- Psicologia de Grupo e a Análise do Ego.

terça-feira, junho 09, 2009

Lazer e Prazer: Uso Social do Corpo

Da Diferença à Semelhança.

Os bens simbólicos de lazer/prazer (sexo, praia, bares, etc., bens consumíveis a custo relativamente baixo) fazem com que o estilo de vida seja representado como “melhor qualidade de vida”.
Quero dizer com isto que o aspecto hedonista da vida social é mais valorizado que as atividades de trabalho- coerentemente com a ênfase dada pelas camadas sociais dominantes ao sexo e ao corpo como objeto de consumo e de prazer-, representando, para estes indivíduos status, prestígio e poder.

A performance verbal do homossexual estereotipado (travesti ou bicha) foi apropriada e é usada freqüentemente pelos meios de comunicação em massa, bem como pelo teatro, como um bem simbólico de consumo. Poderia se dizer que essa constante divulgação não somente dá a impressão de que o homossexual existe em maior número, como também abre espaço para que possa publicamente existir. É um solvente de moralidade.

Em sua discussão sobre o desenvolvimento sócio-histórico da sexualidade, Foucault refere-se a dois momentos de construção do dispositivo de sexualidade a partir do século XIX.
O primeiro momento corresponde à necessidade de construir uma força de trabalho e de assegurar a reprodução desta.
Alcançando este objetivo, é desencadeado um segundo momento, que exige um novo tipo de trabalho e de homem.
Segundo Foucault, a exploração do trabalho assalariado não exige do corpo as mesmas restrições violentas e físicas.
Da mesma forma a política do corpo não mais requer a supressão do corpo ou sua limitação ao papel exclusivo da reprodução.
O uso social do corpo adquire novos domínios.

Cria-se um novo espaço para a cultura do corpo, com a ampliação de algumas ocupações e a produção de novas, dirigidas às atividades de lazer e prazer.

A dimensão e o significado das relações afetivas e amorosas merecem discussão mais aprofundada. A produção literária e cultural a respeito do homossexualismo tende a focalizar o aspecto sexual e sensual da união, excluído o movimento afetivo e erótico (como se isso fosse possível, mesmo na relação tida como impersonal sex). Enfatizam-se a promiscuidade, os programas de “pegação”, a “transa”, limitando a relação homossexual ao contato físico, genital, e ao prazer orgástico.

Esta ênfase dada ao sexo, e ao sexo homossexual em particular, vem reforçar a colocação de Foucault quanto à necessidade de desmistificar a “hipótese repressiva” e encarar a sexualidade como instrumento de poder.

“A cultura do corpo”, objetivando unicamente a preparação e adequação deste como objeto de consumo sexual, esvazia o corpo de sua dimensão afetiva e erótica.

O Homossexual Visto por Entendidos- Carmen Dora Guimarães

"Descobertas"


A Produção do Mito do Silêncio


Qualquer investida na área da sexualidade, principalmente na nossa sociedade, é envolvida no mito do silêncio que a reveste.
E, com referência à categoria social homossexual, o mito da anormalidade reforça este silêncio, fazendo com que pareça impenetrável.

Foucault mostra que a partir do século XIX iniciam-se as “heterogeneidades sexuais” e um movimento centrífugo em relação à monogamia heterossexual.
São as “sexualidades periféricas” que questionam a “sexualidade regular”, formulando-se uma divisão no campo da sexualidade, refletida na construção de novas categorias “contra a natureza”, “perversas”, “desviantes”, “anormais”, etc., em oposição às categorias do “normal” e do “natural”.

Poderíamos perguntar, escreve Foucault, se esta “multiplicação” é devida a um relaxamento das regras ou se, ao contrário, é prova de um regime de controle mais severo.
Parece- responde o autor- que a questão não se coloca em termos de maior ou menor repressão, mas sim na forma pela qual o poder se exerce, não se restringindo apenas à sua função de interdição.

A partir do século XIX, os mecanismos de poder em relação ao sexo se deslocam da Igreja e da Lei para a hegemonia da Educação e da Ciência. Será na prática de uma sciencia sexualis que se produzirá a verdade sobre o sexo, sendo a confissão a técnica mais valorizada nesta produção.

A hipótese geral proposta por Foucault é de que a sociedade não se recusa a conhecer o sexo, muito pelo contrário, aciona todo um aparelho para produzir um discurso ‘verdadeiro’ e regulamentado.

É importante observar nesta proposta, que o discurso não é unilateral, havendo também discursos de “retorno”,(...) em que o homossexualismo fala de si mesmo, reivindicando sua legitimidade ou “naturalidade” com o mesmo vocabulário e as mesmas categorias empregadas para “desqualificá-lo”.

Assim, a necessidade de explicar a opção sexual é dos agentes sociais em questão, permintindo-nos verificar como a "pedagogia da sexualidade" se reproduz nas vivências cotidianas particulares do presente, ao mesmo tempo em que essas também a reproduzem.

A ideologia pedagógica que informa a socialização de papéis sexuais cumpre uma dupla função: orientar o indivíduo, antecipadamente, para as ações apropriadas (função prescritiva) e controlar e inibir as ações não apropriadas (função proscritiva).

Em outros termos, é o contexto relacional que vitaliza e legitima as normas e regras e nomeia determinadas ações como sendo "desviantes", situando tanto a ação quanto um dos participantes da ação "on the other side".

O componente sexual "desviante" do comportamento individual é visto como determinante de sua identidade social- estabelecendo-se como critério de discriminação para as demais ações sociais.

A homossexualidade é justificada por ser um destino sobre o qual não se tem controle ou mesmo escolha ("vítima" da educação dada pelos pai, mãe "dominadora", pai "submisso", "ausente", etc), ou se apresenta como uma "natureza singular".
Em qualquer dos casos, as categorias e elaborações denotam um "discurso de retorno!, articulado com a estratégia de poder.

A norma "ser gay, tudo bem, mas não conte para ninguém".

Evitar essa questão significa uma completa separação da vida profissional e social. Siginifica obedecer as normas heterossexuais em público e desobedecê-las em momentos privados.
Ainda há um sentimento de fracasso por não viver de acordo com regras homossexuais. Essa divisão de identidade fez com que para muitos homens, ser gay significasse apenas fazer sexo.

A trajetória comumente estabelecida- de homossexual "enrustido" no "mundo heterossexual" para "assumido"- significou, para alguns, a expressão pública da categoria homossexual estereotipada.
O comportamento e as atitudes, tanto sociais como sexuais, reproduzem a forma caricatural do papel de gênero feminino- o "efeminado".
O "ser homossexual" mostra-se visível, na forma e no conteúdo da fala, nos gestos e nas roupas- como uma declaração pública da identidade homossexual "assumida".

Assim, caberia perguntar: até que ponto a representação social, o estilo de vida e a visão de mundo dos indivíduos indicariam uma ruptura com o "mundo heterossexual", ou, pelo contrário, demonstraria um processo análogo de sucessivas aproximações?

Esta proposição tem por objetivo indicar a especificidade de cada relação e mostrar que a categoria homossexual compreende uma diversidade de ações sociais, tanto sexuais como não sexuais.

O problema da "descoberta" da identidade homossexual é constante, principalmente porque o estigma, uma vez que é atribuído, é um marco permanente e irremovível de culpa e autonegação da própria identidade.

O Homossexual Visto por Entendidos- Carmem Dora Guimarães.

sábado, junho 06, 2009

A Inocência e o Vício- introdução.

A subjetividade é um efeito das linguagens, das práticas lingüisticas que determinam suas regras de formação e reconhecimento privado e público.

Cultura significa inclusão e exclusão de certas possibilidades expressivas do sujeito e seu desejo. Estruturamos nossas subjetividades de acordo com os ideais de eu ou subjetividades modelares pressupostas na descrições do que "deve ser o sujeito" e que fazem parte de toda recomendação ética.
Acontece que a estabilidade da cultura, sem a qual não existiriam recorrência de regras e tampouco subjetividades que se reconhecessem como subjetividades, dá se às custas de diferenças e oposições ao que não é idêntico.
Uma cultura só reconhece sua identidade distinguindo-se de outras.
O mesmo ocorre com a identidade do sujeito e, finalmente, com os ideias de eu.
Para que um ideal de eu mantenha-se operante é preciso que existam casos ou ocorrências subjetivas que contrariem ou não cumpram os requisitos exigidos para a realização do ideal.
Assim, a construção de subjetividades ideais implica, ipso facto, a figura da antinorma ou do desvio do ideal, representada pelos que não podem, não sabem ou nao querem seguir as injunções ideais.
A esses, diz Freud, é reservada a posição de objeto do desejo de destruição da maioria, que em nme da norma ideal outorga-se o poder de atacar ou destruit física ou moralmente os que dela divergem ou simplesmente se diferenciam.
É o mecanismo da rivalidade em torno do "narcisismo das pequenas diferenças", uma das molas de sua interpretação do fato cultural.

Apresentando certas práticas sexuais como anormais, doentes, antinaturais ou moralmente incorretas, a linguagem da discriminação estigmatiza numerosos sujeitos que se afastam dos ideais sexuais da maioria.

Viver sendo considerado no dia-a-dia como "homossexual" é um fardo moral e psíquico extremamente custoso para muitos homens.
Uma vez etiquetados assim são constantemente identificados por suas preferências sexuais, as quais por seu turno são moralmente desaprovadas
, seja pelo ridículo seja pela classificação no rol das patologias médico-psiquiátricas ou mesmo psicanalíticas.

Grande parte não encontra respostas satisatórias para suas aspirações eróticas nos modelos de identidade sócio-sexuais disponíveis, isto é, nos modelos "heterossexuais", "homossexuais" ou "bissexuais".

Homoerotismo é uma noção mais flexível que descreve melhor a pluralidade das práticas ou desejos dos homens same-sex oriented.
Interpretar a idéia de "homossexualidade" como uma essência, uma estrutura ou denominador sexual comum a todos os homens com tendências homoeróticas é incorrer a um grande erro.
Penso que a noção de homoerotismo tem a vantagem de tentar afastar-se tanto quanto possível desse engano.
Primeiro, porque exclui toda e qualquer alusão a doença, desvio, anormalidade, perversão etc., que acabaram por fazer parte do sentido da palavra "homossexual".
Segundo, porque nega a idéia de que existe algo como uma "substância homossexual" orgânica ou psíquica comum a todos os homens com tendências homoeróticas.
Terceiro, enfim, porque o termo não possui a forma substantiva que indica identidade, como no caso do "homossexualismo", de onde derivou o substantivo "homossexual".
O último aspecto é importante por seus efeitos imaginários.
Porque usamos na linguagem ordinário o substantivo "homossexual" terminamos reféns de nossos hábitos.
O emprego freqüente do termo leva-nos a crer que realmente existe um tipo humano específico designado por esse substantivo comum.
Vamos além, acreditamos que a peculiaridade apresentada por esse tipo é uma propriedade permanente da natureza de certos homens, que independe das descrições que a tornam visível e plausível aos nossos hábitos lingüísticos.


Quando emprego a palavra homoerotismo refiro-me meramente à possibilidade que têm certos sujeitos de sentir diversos tipos de atração erótica ou de se relacionar fisicamente de maneiras diversas com outros do mesmo sexo biológico.
Em outras palavras, o homem homoerótico não é aquele que possui um traço ou um conjunto de traços psíquicos que determinam a inevitável e necessária expressão da sexualidade homoerótica em quem quer que os possuísse.
A particularidade do homoerotismo em nossa cultura não se deve à pretensa uniformidade psíquica da estrutura do desejo comum à todos; deve-se, sugiro, ao ato de ser uma experiência subjetiva moralmente desaprovada pelo ideal sexual da maioria.
Dizer isto é dizer que numa cultura como a nossa, voltada para a idéia de realização afetiva e sexual, privar certos sujeitos dessa realização é extremamente problemático.
Tanto mais quanto os mesmos sujeitos foram ensinados a desejar esse tipo de satisfação.

O emprego do termo visa sobretudo distanciar o interlocutor de sua familiaridade com a noção de "homossexualidade".

A palavra "homossexual" está excessivamente comprometida com o contexto médico-legal, psiquiátrico, sexológico e higienista de onde surgiu.
O "homossexual", como tento mostrar, foi uma personagem imaginária com a função de ser a antinorma do ideal de masculinidade requerido pela família burguesa oitocentista.

Com a introdução do termo homoerotismo, tomado de Ferenczi e que teve o assentimento de Freud, tive o intuito de apontar para aspector do problema que permanecem oculto enquanto permitimos usando as noções de "homossexualismo", "homossexual", "homossexualidade".

Nunca perguntamos- até porque é assim que formamos crenças- o que nos levou a crer que existe "algo de muito importante", "de muito fundamental" para nossa vida moral no fato de aprendermos a dividir os humanos em "homossexuais" e "heterossexuais".

Não existe objeto sexual "instintivamente adequado ao desejo" ou vice-versa, como reitera a psicanálise.
Todo objeto de desejo é produto da linguagem que aponta para o que é "digno de ser desejado" e para o que "deve ser desprezado" ou tido como indiferente; como incapaz de despertar excitação erótica.

Por que imaginamos que exista uma atração única, uniforme e suficiente para definir a identidade sexual, social e moral de uma pessoa por trás de tantos desejos e condutas díspares?
Por acaso tal atração é feita de uma "mesma substância", reconhecível em suas propriedades estáveis e capaz de reproduzir-se e repetir-se emocinalmente em pessoas diversas?

No século XIX, médicos, sexólogos, psquiatras, juristas, etc, definiam de várias formas o "homssexual".
Eram questões jurídicas-legais e tratavam dos limites histórico-sociais do ideário burguês, então triunfante e em pleno apogeu.
Tratavam de "até onde a idéia de igualdade, liberdade e direito à privacidade podia ser respeitada" sem que o modo de vida burguês fosse contestado ou posto em cheque. Por conseguinte a preocupação com a "verdadeira homossexualidade" na versão "adâmica" do "homossexualismo natural", reflete a obssessão criada pelas ideologias instintitivistas, evolucionistas e racistas do século XIX para justificar o modelo da sexualidade familiar, conjugal e heterossexual enquanto fortaleza da moral privada e signo da superioridade da cultura burguesa frente as outras classes sociais e aos povos colonizados.

Concordamos, porém, em favor do esclarecimento da discussão, que a "homossexualidade" seja um fenômeno geneticamente determinado. A questão no caso seria: por que tamanho interesse nisso? Por que seria indispensável encontrar genes responsáveis pelo fato de homens se sentirem eroticamente atraídos por outros homens?
Por que não nos interessamos em pesquisar que genes são responsáveis pela "verdadeira musicalidade dos verdadeiros músicos" à fim de distingui-los dos "músicos de ocasião" ou dos "músicos que aceitam fazer música e que se comportam como músicos, mas que não são verdadeiros músicos porque lhes faltam a verdadeira sensibilidade musical e os genes da musicabilidade?" Por que não temos interesse em fazer o mesmo com a "futebolisticidade"?

A atração que em nossa sociedade sentimos pela diferenciação entre "homossexuais" e "heterossexuais", a ponto de imaginar que não podemos viver sem ela, é tão "naturalmente" determinada quanto a divisão entre gentios e cristão, católicos e protestantes, castos e libertinos, metropolitanos e colonizados, ocidentais e orientais, civilizados e primitivos, etc. (...)
A busca de uma constituição genética particular aos sujeitos com inclinações homoeróticas só pode ter, então, um objetivo moralmente normativo. (...) Por que procurar legitimar uma determinada moral sexual recorrendo à benção da natureza?

Jamais fazemos o exercício imaginativo de supor como seria a vida de alguém que, malgrado sua vontade, fosse permanentemente obrigado a ser reconhecido por sua preferência erótica e não por outras qualidades pessoais que quisesse ver apreciadas e respeitadas pelos outros. No entanto seria interessante imaginar como reagiriam certos homens heteroeroticamente orientados, caso tivessem que conviver com a exposição pública de algumas de suas tendências sexuais, costumeiramente resguardadas do olhar público por nossos hábitos culturais.
Não custa nada perguntar como esses homens reagiriam se tivessem que responder socialmente, não enquanto maridos, pais, profissionais, artistas, trabalhadores, cidadãos, etc., e sim enquanto "praticantes do coito anal", "adeptos do sexo oral", "masturbadores costumazes" ou mesmo "usuários freqüentes de filmes e revistas pornográficas".
O exemplo nada tem de caricato. Ele é apenas ilustrativo do respeito que dedicamos à privacidade da maioria heteroerótica e do desrespeito com que tratamos a preferência sexual das minorias.


Enquanto sujeitos da linguagem e da sexualidade não podemos querer deixar de falar e desejar, mas enquanto sujeitos da vontade podemos redescrever moralmente as conseqüências daquilo que não pudemos escolher.

A Inocência e o Vício- Jurandir Freire Costa.

A Inocência e o Vício- trechos.

Ao meu ver, o “homossexual típico”, como toda figura de exclusão, é um puro estereótipo do preconceito. O “homossexual típico” é uma realidade tão palpável quanto o português da anedota, o “judeu típico”, ou de maneira mais inocente, o “paulista típico para o carioca, e o “carioca típico”, para o paulista.
O que existe de típico no homossexual é a crença de que todo sintoma ou signo do desejo homossexual é sinal de “homossexualismo”.

Por que, pergunto, não perdemos tempo e fostato tentando isolar e caracterizar a estrutura heterossexual? Pergunto por que não nos inquietamos com a presença da heterossexualidade entre homens e mulheres?

A heterossexualidade é egossintônica, com respeito ao imaginário.
Ou seja, ninguém procura análise queixando-se de “heterossexualismo”.
Conseqüentemente, porque não nos perguntamos como alguém é ou torna-se heterossexual, encerramos o assunto e damos a questão por resolvida.
Sabemos que existem tantas maneiras de ser-se heterossexual quanto permite a fantasia de cada um. Não pensamos em reduzir a heterossexualidade em uma única estrutura.

Hoje em dia, para a maioria dos sujeitos, ser ou não ser homossexual é uma questão mais aflitiva ou mais vital do que a de ser ou não ser herege, ser ou não ser religioso, ser ou não ser revolucionário, ser ou não ser corrupto, ser ou não ser oportunista e mesquinho, ser ou não ser generoso e tolerante para com o outro, etc.

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Se observarmos com cuidado, veremos que o sujeito com inclinações homoeróticas não dispões de modelos identificatórios que possas compatibilizar essas inclinações com o ideal da ética sexual conjugal.
Resta-lhe, então, identificar-se com o que sobra.
E o que sobra é a figura do homem manqué, do homossexual, com um “a-menos” da virilidade fálica imposta pelo ideal moral, com o qual, de resto, a maioria dos homens assim rotulados sonha e aspira.

Em nossa cultura, toda linguagem amorosa, que é essencialmente a linguagem do amor romântico, foi imaginariamente rebatida sobre o casal heteroerótico.
Da primeira “paquera” até o altar e depois ao berçário, tudo o que podemos dizer sobre o amor está imediatamente associado ás imagens do homem e da mulher.

O vocabulário do homoerotismo já foi codificado por médicos, religiosos, psicanalistas e pela Vox populi. Nos costumes leigos, científicos e literários, homossexual e relação homossexual pertencem à gramática da devassidão, obscenidade, pecado, hermafroditismo, promiscuidade, bestialidade, inversão, doença, falta de vergonha, sadismo, masoquismo, passividade, etc.

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Assim, aquilo que é chamado por alguns autores de traços de personalidade ou de estrutura psíquica da homossexualidade, chamo de resposta psíquica ou estratégia defensiva posta em marcha pelos sujeitos diante das injunções morais desqualificantes produzidas pelo preconceito.

E, se na aparência o estilo de vida de certos homossexuais ou grupos de homossexuais mostra-se extravagante aos nossos olhos, isso não se deve a nenhuma perversão intrínseca à estrutura homossexual, mas ao modo de vida de minorias sexualmente discriminadas.

Ouso mesmo avançar uma hipótese, ainda em germe, mas que suponho frutífera: há provavelmente mais risco de perversão na montagem social que opõe heterossexuais a homossexuais do que nas chamadas relações homossexuais. (...)
Foi assim com o homossexualismo sob o nazismo e o stalinismo; foi assim com os grupos de extermínio que, no Rio de Janeiro, metralharam, degolaram e incendiaram travestis com gasolina para depois jogar seus corpos em montes de lixo.

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Diante da opressão do ideal sexual conjugal e da privação de um vocabulário social aprovado para a expressão dos sentimentos homoeróticos, surgiram pelo menos três pautas de condutas possívels como modelo de reação ao homossexual à cultura da privação. Deixo de lado, no momento, a resposta da “militância gay” ou a resposta de certos setores da elite cultural e social por não considerá-las reações passivas e inconscientes ao preconceito, e sim respostas críticas e afirmativas, quaisquer que sejam, aliás, o alcance, a eficácia ou limite de cada uma delas.

- Camp é a palavra da gíria americana para significar o comportamento exagerado, escandaloso, propositalmente efeminado de certos homossexuais ou de certos círculos de homossexuais. Diz-se que alguém tem esse comportamento quando procura romper as regras do bom-tom ou escandalizar o preconceito, acentuando maneiras mal vistas ou discriminadas.
No entendimento de Sontag, o camp é uma reação ao domínio opressivo da “herossexualidade” pela exacerbação de estereótipos.
Algo assim como o teatro de Brecht onde o excesso denuncia a ilusão.
As maneiras de agir e falar não significam desprezo ou desqualificação moral dos termos usados, e sim uma retomada lúdica e sarcástica do que o preconceito leva a sério.
(...) Assim, tendem a reforçar cada vez mais o que o preconceito quer ver: o “homossexual” é um bufão da natureza; um bobo da corte, em meio à “nobreza heterossexual”.

- A outra resposta do homoerotismo ao social é a criação da cultura clandestina do gueto. O gueto é formado por um circuito de locais de encontro exclusivo dos homossexuais, que vão de praias a pontos de prostituição masculina. Nesses locais, alguns extremamente sórdidos, os indivíduos gozam da “liberdade” que a discriminação permite. Mas, justamente por tratar-se de uma liberdade vigiada e concedida, carrega todas as seqüelas do preconceito. (...)
Por fim, participando da cultura do gueto, sobretudo nas idas a saunas, boates e locais de prostituição, todos se sentem promíscuos e convivendo com a promiscuidade, realizando, assim, a imagem do “homossexual” criada pelo estereótipo do preconceito.

Enquanto o gueto mostra as relações amorosas do prisma do anonimato, da parcialização do contato, da burocratização do orgasmo ou da exclusiva dimensão da sensualidade, o amor romântico é mostrado a céu aberto, respirando o ar fresco e vendendo eloqüência, sob refletores coloridos e musicados em dolby stereo. Não há o que discutir: entre a sujeira, a tristeza, a escuridão e a ilicitude de um e a alegria luminosa e loquaz de outro a escolha está feita.
(...) Na distância intransponível entre o ideal sexual da maioria e a efetiva condição homossexual da minoria instalam-se a aflição, a ansiedade, o ressentimento e o sentimento de vida abortada, o que leva os sujeitos às mais extravagantes posições subjetivas na vida amorosa.

- O estilo de vida da ansiedade, da depressão crônica e dos acting-out sexuais é a terceira resposta do homoerotismo à hegemonia opressiva da heterossexualidade conjugal.

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Jurandir Freire Costa- Conjugalidade, ética sexual e parceria homoerótica.

sexta-feira, junho 05, 2009

Aprendendo a Tornar-se Homossexual.

Os indivíduos, ao organizarem a percepção da diferença de gêneros, isto é,
da diferença sócio-sexual entre masculino e feminino ou entre meninos e meninas,
organizam de imediato a percepção da hierarquia de valores que leva à interpretação do contato homoerótico como algo "diferente", algo da ordem da exceção.
De início, a relação homoerótica parece apontar simplesmente para a descoberta da excitação sexual.
Nessa etapa, o sentimento de que fazem algo proibido é igualmente válido para jogos sexuais com meninas.
Porém, enquanto as relações heteroetóticas recebem um veto parcial dos adultos, ou seja, são proibidas só nessa fase da vida, as relações homoeróticas recebem um veto total e absoluto.
Logo que são descobertas pelos adultos, são descritas como indesejáveis e desqualificadas do ponto de vista moral. (...)
Em outras palavras, aprender o que é sexo é aprender ao mesmo tempo o que é proibido e permitido em matéria de sexo.

A essas diversas formas de interdição, permissão e prescrição de condutas e desejos, chamamos ética.
São as éticas, portanto, que regem as práticas sexuais e os desejos nelas implicados.

Não existe, na perspectiva psicanalítica, nenhuma sexualidade humana estável, dada, natural ou adequada a todos os sujeitos.
Todas as sexualidades instituídas, com seus valores e hierarquizações, são, para Freud, "sintomáticas", na acepção psicanalítica do termo.

As éticas sexuais representam os limites que nos são oferecido para que possamos ter prazer sexual, sem comprometer a vida do próximo e sem impedi-lo de, por seu turmo, poder continuar sendo sujeito do próprio desejo, e não mero instrumento ou objeto do desejo do outro.

Os adultos, em nossa cultura, por força do sistema de interdições que lhe é própria, não mostram jamais atos como a masturbação, o coito ou quaisquer outras práticas sexuais.
As emoções ligadas ao sexo permanecem vagas e indeterminadas até que, na puberdade e na idade adulta, novas regras de uso, agora apoiadas em exemplos de conduta, venham esclarecer sua significação.
A idéia de que a "experiência sexual" é, pela própria natureza, imprecisa e indizível, já faz parte da definição que damos, em nossos hábitos linguisticos, do que são os sentimentos e sensações sexuais.

A divisão do espaço social entre o público e o privado, promovida pela revolução burguesa, leva-nos a identificar a vida afetivo-sexual como sinônimo da "verdadeira essência do indivíduo".
A idéia de que sem plena satisfação da sexualidade genital estamos privados da mola mestra da "realização" individual integra nosso credo moral básico.
Hoje somos "constrangidos" a ser "sexualmente felizes" como em outras épocas muitos foram coagidos a renunciar e a negar o prazer que a sexualidade pode dar.


No entanto, o culto moderno à sexualidade genital como fonte de "realização da felicidade pessoal", em suas "baixas origens" esteve ligado ao enorme esforço ideológico operado no século XIX para desqualificar as sexualidades marginais em prol da sexualidade reprodutiva.
O atual monopólio imaginário da genitalidade na produção e normatização de "sexualidades e felicidades" é um filho emancipado do feitiche teórico da "lei institiva e natural da reprodução", criado pela burguesia oitocentista da Europa.
Desse berço nasceu o "sexo rei", para tomar a expressão de Foucault que, desde então, vem se tornando cada vez mais "absoluto" em seu reinado.

Por essa razão, o controle e a regulação da sexualidade genital passaram a ter a enorme importância que têm na vida de cada um de nós.
A sexualidade genital tornou-se sinônimo de nossa autêntica e profunda identidade ou do núcleo de nosso eu.
As preferências, permissões ou proibições que gravitaram em torno dela tranformaram-se em indicadores das diversas maneiras que têm os indivíduos de reconhecer "o quê", e "quem são eles".


Os que cumprem suas normas realizam a "essência humana"; os que se desviam do bom caminho traem, por incompetência, invalidez ou perversidade, as "leis" da natureza, da cultura, da linguagem, do parentesco, da decência, da moralidade ou qualquer outra "lei", inventada conforme a ideologia do momento.

Em síntese, as regras identificatórias para a construção das sexualidades humanas confundem-se, em nosso hábito cultural, com as regras de construção da "identidade humana".


Assim, as regras identificatórias das disntinções sócio-sexuais reproduzem permanentemente as diferenças e a hierarquia dominantes e são transmitidas de modo a parecerem estáveis, naturais e universalmente válidas para todos os sujeitos.

Depois de Kinsey ficou razoavelmente demonstrado que não existe vínculo necessário entre comportamento sexual e identidade sexual.
De acordo com as estatísticas de Kinsey, "37% dos homens entrevistados tinham tido experiências homossexuais, mas menos de 4% eram exclusivamente homossexuais e mesmo estes não exprimiam necessariamente uma identidade 'homossexual'."

O comportamento pode fazer parte da identidade, mas a identidade não pode ser contida no comportamento.
Identidade é um termo genérico que designa tudo aquilo que o sujeito experimenta e descreve como sendo ou fazendo parte do eu.

A diversidade das práticas, condutas e desejos homoeróticos é enorme e extremamente difícil de ser tipificada, seja pelo observador, seja pelo sujeito.

O elemento central na definição da identidade "homossexual" é a presença do desejo homoerótico.
Mesmo assim, a simples admissão da atração sensual por homens, que é uma modalidade do desejo homoerótico, não é suficiente para caracterizar a "homossexualidade" daqueles que a experimentam.
Mais decisiva é a presença da atração terna, ou seja, do apaixonamento, que significa algo além do "puro tesão".

A "identidade homossexual" é predominantemente estabelecida a partir do sentimento vago e difuso de desvio ou diferença em relação ao que se julga ser a "identidade heterossexual", identidade esta igualmente difícil de ser descrita em seus atributos.

O relevo dado ao desejo erótico em vez de ao comportamento erótico mostra a individualização e interiorização das regras de construção da identidade sexual. Enquanto os comportamentos apontam para a vertente pública e visível da orientação social da sexualidade, o desejo volta-se para a privatização da realização ou frustração sexuais.
O “homossexual moderno” converteu-se, assim, em um indivíduo preso a um duplo sistema de referências, para a elaboração de sua subjetividade.
De um lado, acha-se às voltas com as regras da satisfação do desejo que o orientam no sentido de buscar formas singularizadas de realização sexual; de outro, encontra-se atrelado ao velho sistema de crenças que estigmatiza o homoerotismo como uma preferência sexual doente, imoral, deficiente ou desviante em relação à verdadeira finalidade do “instinto”.
Essa duplicidade de injunções é responsável pela desorientação sexual de muitos indivíduos.

Quanto mais os indivíduos se aproximam do modelo do militante gay menos tendem a ter conflitos e mais tendem a assumir publicamente a “identidade homossexual”.
Como mostrou Weeks (1991), reforçar a perceção da diferença nesses termos, significa, por um lado, alinhar-se à idéia tradicional de que realmente existe uma identidade “homossexual” à parte e, por outro, reafirma a idéia de que o mais importante predicado da “essência humana” pertence à ordem da sexualidade genital, ou melhor, à divisão dos indivíduos conforme suas preferências homo ou heteroeróticas.

No entanto, como assinala o mesmo Weeks, seguindo Foucault, a tônica posta na identidade “homossexual” teve a função de reverter a direção do preconceito, criando uma contradiçãpo no esquema cognitivo do senso comum.
Debatendo publicamente temas como os “direitos dos homossexuais” a ideologia gay acentuou positivamente o que o estigma havia desvalorizado.
O modelo de identidade gay, é assim, o modelo de identidade estratégica de resistência.

Dando um enorme peso à sexualidade na definição da identidade do sujeito, a subcultura gay não atende, como seria previsível a pluralidade de aspirações dos sujeitos homoeroticamente inclinados.

Recusando as definições prévias do “homossexualismo”, o movimento gay procurou criar uma alternativa identificatória aos modelos ainda hoje oferecidos aos indivíduos homoeroticamente inclinados, qual seja, os modelos da “mulherzinha” e do “viado”. Na ideologia gay, advoga-se a idéia de que homens que se sentem atraídos por outros homens nem por isso perdem suas características masculinas. (...) É possível, a partir desta ideologia, imaginar modelos de “identidade masculina” onde o atributo da atração pelo mesmo sexo não exija, como conseqüência, a renúncia a esta mesma identidade.

Depois da AIDS, tudo o que se desenhava em círculos minoritários do campo cultural ganhou uma publicidade inusitada. Através de depoimentos pessoais, livros e filmes, sujeitos portadores do vírus ou de sintomas da doença passaram a falar livremente de suas experiências sexuais e amorosas para o público “heterossexual”, sem constrangimento ou censura.

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O Homoerotismo Diante da Aids
A Inocência e o Vício- Jurandir Freire Costa