domingo, agosto 24, 2008

O inconsciente é o discurso do outro.

O progresso de Freud, sua descoberta, está na maneira de tomar um caso na sua singularidade.

A história não é o passado.
A história é o passado na medida em que é historiado no presente- historiado no presente porque foi vivido no passado.

O caminho da restituição da história do sujeito toma a forma de uma procura da restituição do passado.

O fato de que o sujeito revive, rememora, no sentido intuitivo da palavra, os eventos formadores da sua existência, não é, em si mesmo, tão importante.
O que conta é o que ele disso reconstrói.

Direi- afinal de contas, o de que se trata é menos lembrar do que reescrever a história.

--

O que conta, quando se tenta elaborar uma experiência, não é tanto o que se compreende quanto o que não se compreende.Uma das coisas que mais devemos evitar é compreender muito, compreender mais do que existe no discurso do sujeito.
Interpretar e imaginar que se compreende, não é de modo algum a mesma coisa. É exatamente o contrário.

Na relação do imaginário e do real, e na constituição do mundo tal como ela resulta isso, tudo depende da situação do sujeito.
E a situação do sujeito é essencialmente caracterizada pelo seu lugar no mundo simbólico, ou, em outros termos, no mundo da palavra.

O que é a ligação simbólica?
É, para colocar os pingos no ii, que socialmente nós nos definimos por intermédio da lei.
É da troca de símbolos que nós situamos uns em relação aos outros nossos diferentes eus.

Que um nome, por mais confuso que seja, designe uma pessoa determinada, é exatamente nisso que consiste a passagem ao estado humano. É nesse momento em que se entra na relação simbólica.

Todos os seres humanos participam do universo dos símbolos. Estão incluídos aí e o suportam, muito mais do que o constituem. São muito mais os suportes do que os agentes.
É em função dos símbolos, da constituição simbólica da sua história que se produzem essas variações em que o sujeito é suscetível de tomar imagens variadas, quebradas, despedaçadas, e mesmo, no caso, inconstituídas, regressivas dele mesmo.


--

Quando eu digo projeção, não digo projeção errada.
Há uma fórmula que, antes de ser analista, eu tinha- com meus fracos dons psicológicos- colocado na base da pequena bússola de que me servia para avaliar certas situações.
Eu me dizia, não sem gosto: - Os sentimentos são sempre recíprocos. É absolutamente verdadeiro, apesar da aparência.
Desde que se coloque em campo dois sujeitos- digo dois, não três-, os sentimentos são sempre recíprocos.

O eu é referente ao outro. O eu se constitui na relação com o outro.
Ele é o seu correlato.

--

Em espelho, é o caso de dizer que a criança reveste os objetos da mesma capacidade de destruição da qual é portadora.

Assim, a equação simbólica que redescobrimos entre esses objetos surge, de um mecanismo alternativo de expulsão e introjeção, de projeção e de absorção, quer dizer, de um jogo imaginário.

A introjeção é sempre introjeção da palavra do outro, o que introduz uma dimensão muito diferente da de projeção.
É em torno dessa distinção que vocês podem fazer a separação entre o que é função do ego e o que é função do supereu.

--

Imaginem que este espelho é um vidro. Vocês se vêem no vidro e vêem os objetos além. Trata-se justamente disto- de uma coincidência entre certas imagens e o real.

--

Qual é o móvel concreto que determina o funcionamento da enorme mecânica sexual? Qual é o seu desencadeador?
Não é a realidade do parceiro sexual, a particularidade de um indivíduo, mas algo que tem a maior relação com o que acabo de chamar o tipo, a saber, uma imagem.

Qual é a definição da imagem em óptica?- a cada ponto do objeto deve corresponder um ponto da imagem, e todos os raios saídos de um ponto devem se recortar em algum lugar num ponto único.

--

O outro tem para o homem valor cativante, pela antecipação que representa a imagem unitária tal como é percebida, seja no espelho, seja em toda a realidade do semelhante.
O outro, o alter ego, confunde-se mais ou menos, segundo as etapas da vida, com o Ich-Ideal, esse ideal do eu invocado o tempo todo no artigo de Freud.
A identificação narcísica, a do segundo narcisismo, é a identificação ao outro que, no caso normal, permite ao homem situar com precisão a sua relação imaginária e libidinal ao mundo em geral.

A estreita equivalência do objeto e do ideal do eu na relação amorosa, é uma das noções mais fundamentais na obra de Freud, e a reencontramos a cada passo.

Freud faz uma lista dos diferentes tipos de fixação amorosa, que exclui toda referência ao que se poderia chamar uma relação madura- o mito da psicanálise.
Há inicialmente, no campo de fixação amorosa, o tipo narcísico.
Ele é fixado pelo fato de que se ama- primeiramente o que se é enquanto si mesmo, quer dizer, Freud precisa isso entre parênteses, si mesmo- em segundo lugar, o que se foi- em terceiro lugar ,o que se quereria ser, em quarto, a pessoa que foi uma parte do seu próprio eu.

No homem, nós o sabemos, as manifestações da função sexual se caracterizam por uma desordem eminente.
Não há nada que se adapte.
Essa imagem em volta da qual nós, psicanalistas, nos deslocamos, apresenta, quer se trate das neuroses ou das perversões, uma espécie de fragmentação, de explosão, de despedaçamento, de inadaptação, de inadequação.
Há aí como um longo esconde- esconde entre a imagem e seu objeto normal- se é que adotamos o ideal de uma norma no funcionamento da sexualidade.

--

Essa hiância faz com que haja uma diferença radical entre a satisfação de um desejo e a corrida em busca do acabamento do desejo- o desejo é essencialmente uma negatividade, introduzida num momento que não é especialmente original, mas que é crucial, de virada.
O desejo é apreendido inicialmente no outro, e da maneira mais confusa.
A relatividade do desejo humano com relação ao desejo do outro, nós a conhecemos em toda reação em que há rivalidade, concorrência, e até em todo o desenvolvimento da civilização.

--

Que o ego seja um poder de desconhecimento é o fundamento mesmo de toda a técnica analítica.

--

Eis o grande erro de sempre- imaginar que os seres pensam o que dizem.

--

Antes que o desejo aprenda a se reconhecer pelo símbolo, ele só é visto no outro.

O desejo do sujeito só pode, nessa relação, se confirmar através de uma concorrência, de uma rivalidade absoluta com o outro, quanto ao objeto para o qual tende.
E cada vez que nos aproximamos, num sujeito, dessa alienação primordial, se engendra a mais radical agressividade- o desejo do desaparecimento do outro enquanto suporte do desejo do sujeito.

--

Freud escreve que o eu é feito da sucessão das suas identificações com os objetos amados que lhe permitiram tomar forma.
O eu é um objeto feito como uma cebola, poder-se-ia descasca-lo, e se encontrariam as identificações sucessivas que o constituíram.


--

A ausência é evocada na presença, e a presença na ausência.
Isso parece uma banalidade, e parece ser óbvio.
Mas ainda é preciso dizer e refletir sobre isso.
Porque é na medida em que o símbolo permite essa inversão, quer dizer,
Anula a coisa existente, que ele abre o mundo da negatividade,
O qual constitui, ao mesmo tempo, o discurso do sujeito humano e a realidade do seu mundo enquanto humano.

--

Talvez eu vá um pouco depressa.
Retenham isso, que o desejo nunca é reintegrado senão numa forma verbal, por nominação simbólica- está aí o que Freud chamou o núcleo verbal do ego.

Associação livre, este termo define muito mal o de que se trata- são as amarras da conversa com o outro que procuramos cortar.
A partir de então, o sujeito encontra-se numa certa mobilidade em relação a esse universo de linguagem no qual o engajamos.
Enquanto acomoda seu desejo em presença do outro, produz-se no plano imaginário essa oscilação do espelho que permite,
A coisas imaginárias e reais que não têm o hábito de coexistir para o sujeito,
Reencontrarem-se numa certa simultaneidade, ou em certos contrastes.

--

O desejo do homem é o desejo do outro.

--

A palavra ou o conceito não é outra coisa para o ser humano do que a palavra na sua materialidade. É a coisa mesma.
Isso não é simplesmente uma sombra, um sopro, uma ilusão virtual da coisa, é a coisa mesma.

Se considerarmos que há um laço estreito, permanente, entre a maneira pela qual um sujeito se exprime, se faz reconhecer, e a dinâmica efetiva, vivida, das suas relações de desejo, devemos ver que só isso introduz na relação de espelho ao outro uma certa desinserção, uma flutuação, uma possibilidade de oscilações.

--

Sartre faz girar toda a sua demonstração em torno do fenômeno fundamental a que ele chama o olhar.
O olhar de que se trata não se confunde absolutamente com o fato, por exemplo, de que eu vejo os seus olhos.
Posso me sentir olhado por alguém de quem não vejo nem mesmo os olhos, e nem mesmo a aparência.
Basta que algo me signifique que a outrem por aí.
Está janela, se está um pouco escuro, e se eu tenho razões para pensar que há alguém atrás, é, a partir de agora, um olhar.
A partir do momento em que esse olhar existe, já sou algo de diferente, pelo fato de que me sinto em mesmo tornar-me um objeto para o olhar de outrem.
Mas, nessa posição, que é recíproca, outrem também sabe que sou um objeto que se sabe ser visto.


O olhar não se situa simplesmente ao nível dos olhos.
Os olhos podem muito bem não aparecer, estar mascarados.
O olhar não é forçosamente a face do nosso semelhante, mas também a janela atrás da qual supomos que ele nos espia.
É um x, o objeto diante do qual o sujeito se torna objeto.

--

A resistência define-se, muito bem, aliás, relacionando-a ao fenômeno da linguagem- é tudo o que freia, altera, retarda o débito, ou então o interrompe completamente. Não se vai mais longe.

Há o esquema lógico-simbólico bem conhecido em que Freud deduz as diversas formas de delírios, segundo as diversas maneiras de negar Eu o amo- Não sou eu que o amo- Não é ele que eu amo- Eu não o amo- Ele me odeia- É ele que me ama- o que dá a gênese de diversos delírios- o de ciúme, o passional, o persecutório, o erotomaníaco, etc.

--

Cada vez que temos, na análise da linguagem, de procurar a significação de uma palavra, o único método correto é fazer a soma dos seus empregos.

A palavra não tem nunca um único sentido, o termo, um único emprego.
Toda palavra tem sempre um mais-além, sustenta muitas funções, envolve muitos sentidos.
Atrás do que diz um discurso, há o que ele quer dizer, e atrás do que ele quer dizer, há ainda outro querer-dizer, e nada nunca será esgotado- se não é que se chega ao fato de que a palavra tem função criadora e faz surgir a coisa mesmo,
que não é nada senão o conceito.

A palavra, tanto ensinada quanto ensinante, está, pois, situada no registro da equivocação, do erro, da tapeação, da mentira.
Admite que o sujeito mesmo que nos diz algo, muitas vezes não sabe o que nos diz, e nos diz mais ou menos o que ele quer dizer.
O lapso é mesmo introduzido.

Na análise, a verdade surge pelo que é o representante mais manifesto da equivocação- o lapso, a ação a que se chama impropriamente falhada.
Somos, pois, levados pela descoberta freudiana a escutar no discurso essa palavra que se manifesta através, ou mesmo apesar, do sujeito.

--

Que o psicanalista acredite saber alguma coisa, em Psicologia por exemplo, e já é o começo da sua perda, pela boa razão de que em Psicologia ninguém sabe grande coisa, a não ser que a Psicologia seja ela mesma um erro de perspectiva sobre o ser humano.

--

Essa imagem de si, o sujeito a reencontrará sem cessar como o quadro mesmo das suas categorias, da sua apreensão do mundo- objeto, e isso, por intermédio do outro.
É no outro que ele reencontrará sempre o seu eu-ideal, donde se desenvolve a dialética das suas relações ao outro.

A complementação do imaginário se realiza no outro, à medida que o sujeito assume no seu discurso, enquanto o faz ouvir pelo outro.

--

Jacques Lacan- O Seminário- os escritos técnicos de Freud.

quinta-feira, agosto 14, 2008

Deformações

Eu creio que só aprendemos coisas que nos dão prazer.
Fala-se no fracasso absoluto da educação brasileira, os moços não aprendem coisa alguma.
O corpo, quando algo indigesto para no estômago, vale-se de uma contração visceral saudável: vomita.
A forma que tem a cabeça de preservar sua saúde, quando o desagradável é despejado lá dentro, não deixa de ser o vômito: o esquecimento.
E creio mais: que é só do prazer que surge a disciplina e a vontade de aprender.
E justamente quando o prazer está ausente que a ameaça se torna necessária.

Todos sabem que o objetivo da educação é executar a terrível transformação:
Fazer com que crianças se esqueçam do desejo de prazer que mora nos seus corpos, para transforma-las em patos domesticados, que bamboleiam ao ritmo da utilidade social.

Enganam-se os que pensam que os cursinhos são organizações escolares dedicadas a ministrar um saber avançado.
Entre as disciplinas que normalmente servem em suas dietas encontra-se sempre a ansiedade como tempero gratuito.
É que ela é parte integrante das liturgias que acontecem em volta dos vestibulares.
Sem a magia negra da ansiedade eles seriam eventos banais, sem maior importância.
É a ansiedade que lhes dá sua dignidade específica, qualidade quase religiosa perante a qual todos se curvam, sabedores de que ali se joga com o sentido da vida.
Daí seu poder para penetrar no corpo: aquele frio na barriga, os pulsos sobressaltados no meio do sono, os olhos abertos que se recusam a dormir, as diarréias, a agressividade que gostaria de quebrar muita coisa e se contenta em aparecer domesticada sob a forma de uma úlcera.

A educação tem estado piorando na razão inversa da dificuldade dos vestibulares.
Se nossa educação chegou aos níveis baixos em que ela agora se encontra, é porque os vestibulares chegaram, inversamente, aos níveis altos de dificuldade em questão.

Pois é, com medo ninguém aprende a gostar de estudar.
É o prazer de estudar, de investigar, de perguntar, que faz da educação uma coisa bonita, gostosa.
Mas foi precisamente isso que os vestibulares destruíram, estendendo sua sombra de terror até sobre as crianças, através da ansiedade dos pais, que passam a preferir os colégios apertados, sem nem se dar conta de que tudo aquilo que aperta acaba por deformar.

Claro que o dono do ratinho poderá alegar:
- Mas veja os saltos enormes que ele dá!
Ao que eu retrucaria:
- Pare de medir os saltos. Veja o seu pêlo. Está eriçado de pavor.

O que eles pensam é no tipo de conhecimento que vai ajudar os estudantes a pôr as cruzinhas nos quadradinhos certos. E os vestibulinhos e simulados vão se tornando práticas comuns. Os professores que fazem e vendem livros didáticos, sabedores disto, tratam de colocar entre os problemas a serem resolvidos alguns com: Ita, 1999, Fuvest, 2000.

Os exames vestibulares, assim, não devem ser pensados como instrumentos adequados ou não para entrada na Universidade, mas antes como instrumentos de terror que determinam os rumos da educação com muito mais poder que todas as nossas leis.

Empresas fazedoras de vestibular. Pergunto: quais são os critérios que determinam a feitura de tais exames? São critérios educativos, por acaso?
Claro que não, são critérios empresariais, de produção em massa.
As questões devem ser feitas de tal maneira que o computador não se confunda. Escolhas objetivas (?) havendo apenas uma resposta certa. Para quê?
Para que os dados sejam processados de maneira uniforme (leia-se maquinalmente) e rapidamente (leia-se economicamente).

É isto que o vestibular nega.
As respostas certas já estão prontas, competindo ao aluno simplesmente identifica-las.
Quem é assim deformado a vida inteira não apenas não sabe escrever, como também não sabe conversar.

Os cursinhos cantam glórias: “- Conseguimos abrir as portas”.
Os pais abrem champanhe e congratulam.
Os moços raspam a cabeça e pintam a cara, alegres.
Tudo termina em uma triunfal celebração.
Sugiro, ao contrário, que se faça uma análise dos aleijões e das deformações.
Que foi que se perdeu? A educação que não houve.
Conhecimento idiota que a memória sábia se encarregará de esquecer o mais rápido possível.

Penso no vestibular não pelas rumorosas e magras celebrações que acompanham os sobreviventes, mas pelas cicatrizes que ficam em todos os demais.
Qualquer coisa que assim deforme a nossa juventude não merece continuar. Está reprovado pela vida.

A moral já está pronta: por vezes, a maior prova da inteligência se encontra na recusa em aprender.

Rubem Alves- Estórias de Quem Gosta de Ensinar.

domingo, agosto 03, 2008

Culpa x Educação

O processo consistiu em colocar vinho novo em tonéis velhos,
em incorporar todos a um ensino que não havia sido configurado pensando na sociedade em seu conjunto,
mas em uma reduzida parte da mesma.

Presumia-se que o que era ou parecia ser bom para os que até então vinham desfrutando-o com exclusividade também o seria para os demais.

Para dizer de outra forma, desaparecido em boa parte seu valor extrínseco- baseado essencialmente em sua escassez- havia de chegar o momento de perguntar-se pelo valor intrínseco dos ensinos convertidos em patrimônio de todos ou da maioria, isto é, os de acesso garantido e os de fácil acesso.

Na verdade, a educação carrega hoje um fardo muito pesado.
Em uma época de escasso ou nenhum crescimento líquido e desemprego em massa,
o discurso oficial responsabiliza a educação por ambas as coisas.

Ao colocar ênfase na centralidade das reformas educacionais para continuar ou melhorar na competição internacional,
está-se afirmando que se o país não vai melhor é por culpa do sistema educacional.

Ao insistir permanentemente no desgastado problema do “ajuste” entre educação e emprego, entre o que o sistema educacional produz e o mercado requer,
está se lançando a mensagem que o fenômeno do desemprego é culpa dos indivíduos, os quais não souberam adquirir a educação adequada,
ou dos poderes públicos, que não souberam oferece-la,
mas nunca das empresas,
embora sejam essas que tomam as decisões sobre investimentos e emprego e que organizam os processos de trabalho.


Assim, através da educação, a sociedade pôde prometer igualdade sem tocar nas instituições do mundo econômico.

O resultado foi um conjunto de reformas destinadas, país a país, a prolongar os períodos de escolaridade obrigatória, igualar as condições de escolarização e ampliar o tronco comum até faze-lo coincidir, ou quase, com o período obrigatório: em breve, as reformas compreensivas e o que pomposa ou desdenhosamente se chamou de “democratização” ou de “massificação” do ensino superior.

---

Ano após ano, a disciplina é assinalada como o primeiro problema das escolas pelos cidadãos norte-americanos nas pesquisas Gallup. Os empregadores não se queixam tanto das qualificações dos egressos da escola quanto de seu individualismo, seu escasso respeito pela autoridade hierárquica, sua pouca disposição a assumir tarefas rotineiras ou sua idéia de que o trabalho deve ser uma atividade pessoalmente gratificante.

Embora a escola continue sendo essencialmente uma organização burocrática, normatizadora e disciplinadora, cuja principal função, que desempenha basicamente bem, é a socialização da força do trabalho, ela passou por profundas mudanças em direção a uma abertura, uma tolerância, uma liberalização e uma democratização crescentes, assim como uma maior atenção às necessidades, interesses e desejos dos alunos considerados individualmente ou em grupo.
O trabalho, pelo contrário, não conheceu nenhuma evolução similar: é por isso que, desde o ponto de vista dos empregadores, a escola já não cumpre adequadamente sua função.

O discurso da qualidade e a qualidade do discurso.
Mariano Fernandez Enguita.

Conhecimento x Mercadoria

Ampliar o setor privado de forma que comprar e vender- numa palavra, a competição- seja a ética dominante da sociedade envolve um conjunto de proposições estreitamente relacionadas. Ela supõe que o auto-interesse e a competitividade sejam as máquinas propulsoras da criatividade.

Naturalmente, diz-se que não se quer privilegiar apenas poucos.
Entretanto, isto é equivalente a dizer que todos tem o direito de escalar o Everest, sem exceção, sendo necessário obviamente ser muito bom em escalar montanhas e ter os recursos institucionais e financeiros para isso.

Uma economia capitalista avançada exige autos níveis de produção técnico/administrativo por causa da competição econômica nacional e internacional e para se tornar mais sofisticadas na maximização de oportunidades de expansão econômica, para o controle cultural e comunicativo e para a racionalização.

Isto se liga com o contínuo crescimento na necessidade de “pesquisa de mercado” e da pesquisa de relações humanas que cada firma exige para aumentar a taxa de acumulação e o controle do local de trabalho.
Tudo isso precisa da produção de informação através de máquinas (e da produção de máquinas cada vez mais eficientes).

Esses produtos- a mercadoria do conhecimento- podem ser não materiais no sentido tradicional do termo, mas não há dúvidas de que eles são produtos economicamente essenciais.

O controle de aspectos principais da ciência e do conhecimento técnico é obtido através do uso do monopólio de patentes e da organização e reorganização da vida universitária (e especificamente de seus currículos e de sua pesquisa).

A luta para obter financiamento para a pesquisa, para edifícios e equipamentos e para novos e melhores programas obrigou a universidade a se adaptar cada vez mais às prioridades das empresas, das fundações, do governo e de outros doadores da elite.
Uma nova união emergiu, na qual o comércio, a indústria e o governo federal são os principais parceiros da universidade.

O que os pós-modernistas esquecem- capital cultural e conhecimento oficial.
Michael W Apple.

Eficiência

Entre essas condições transformadas, há uma nova economia do afeto e do sentimento, uma forma nova e muito mais sutil de envolvimento e engajamento dos sujeitos e das consciências que a crítica tradicional, baseada em noções racionais e instrumentais de poder e interesse, pode ser incapaz de perceber, captar, penetrar e contestar.
Nessa compreensão, os chamados meio de comunicação não são vistos propriamente como meios de “comunicação” ou como meios de representação da realidade, mas como meios de fabricação de representações e de envolvimento afetivo do espectador e do consumidor.

Nessa operação, os problemas sociais- e educacionais- não são tratados como questões políticas, como resultado- e objeto- de lutas em torno da distribuição desigual de recursos materiais e simbólicos de poder, mas como questões técnicas, de eficácia/ineficácia na gerência e administração dos recursos humanos e materiais.

Assim, a situação desesperadora enfrentada cotidianamente em nossas escolas é vista como resultado de uma má gestão e desperdício de recurso por parte dos poderes públicos, como falta de produtividade e esforço por parte dos professores e administradores educacionais.

O sujeito “autônomo, racional, participativo, responsável” é também proposto no discurso neoliberal.

Existe a idéia de que a educação não seja financiada diretamente pelo Estado, mas que o Estado repasse aos pais (redefinidos como consumidores) uma determinada quantia, os quais então escolheriam, no mercado, a escola que mais conviria a seus filhos. Isso faria com que as escolas tendessem à eficiência ao competirem no mercado pelo dinheiro dos consumidores, o que resultaria num produto educacional de melhor qualidade.

Novamente, supor que haja uma escolha racional e livre é apenas diminuir as chances daqueles que estão mal posicionados para fazer uma escolha racional e livre. Assim se estará produzindo mais desigualdade e assimetria.
É até possível que se aumente assim a produtividade e a eficiência, mas é ainda preciso perguntar a quem essa produtividade e eficiência, mais uma vez, estarão servindo.

A “nova” direita e as transformações na pedagogia da política e na política da pedagogia
Tomaz Tadeu da Silva.

sábado, agosto 02, 2008

E depois?

A expansão quantitativa do ensino superior brasileiro não beneficiou a população de baixa renda, que depende essencialmente do ensino público.

A universidade pública expandiu-se no período compreendido entre 1930 e 1970, mas desse período até os dias atuais as políticas mercantilistas do ensino superior fortaleceram o setor privado, que hoje detém aproximadamente 90% das instituições e 70% do total de matrículas.

Desse modo, uma análise sobre a presença de categorias sociais antes excluídas do sistema de ensino levanta necessariamente a questão: o acesso à universidade, sim; e depois?

Assim, torna-se redutor considerar indiscriminadamente os casos de estudantes que têm acesso ao ensino superior como de "sucesso escolar".
Evidentemente, caberia explicitar o que se quer dizer com "sucesso escolar".

Ele representa o acesso, ou vai além para definir tanto a chamada "escolha" pelo tipo de curso quanto as condições de inserção, ou seja, de "sobrevivência" no sistema de ensino?

Muito diferente do que observou Nogueira (2003) em um estudo feito com universitários provenientes das camadas médias intelectualizadas, para os estudantes entrevistados a decisão pelo ensino superior não tem, como para aqueles, a conotação de uma quase "evidência", um acontecimento inevitável.

Chegar a esse nível de ensino nada tem de "natural", mesmo porque parte significativa deles, até o ensino fundamental e, em muitos casos, ainda no ensino médio, possuía um baixo grau de informação sobre o vestibular e a formação universitária.

Uma matéria publicada na Folha de S.Paulo de 18 de agosto de 2002, apoiada em dados do vestibular de universidades públicas do Rio de Janeiro e São Paulo, argumenta que a baixa auto-estima faz estudantes de escolas públicas desistirem de entrar na universidade antes mesmo de tentar o vestibular.

Acrescenta a matéria que "o fenômeno, conhecido por educadores estudiosos do assunto como auto-exclusão, acentuou-se nos últimos anos, apesar do aumento significativo do número de alunos formados no ensino médio público".

Na pesquisa realizada nota-se, com certa freqüência, que quando a previsão do fracasso não se confirma e o estudante é aprovado no primeiro vestibular, ou mesmo após outras tentativas frustradas, não raro ele duvida de sua capacidade e atribui o resultado obtido à ocorrência de "uma chance", "uma sorte".

Para preencher a lacuna da formação básica, há uma forte demanda pelos cursinhos pré-vestibular, estratégia bastante generalizada entre os egressos do ensino médio.

Considerando esses dados relacionados à formação básica, as dificuldades no momento da escolha da especialidade a ser seguida no curso superior são grandes.

O ensino superior representa para esses estudantes um investimento para ampliar suas chances no mercado de trabalho cada vez mais competitivo, mas, ao avaliar suas condições objetivas, a escolha do curso geralmente recai naqueles menos concorridos e que, segundo estimam, proporcionam maiores chances de aprovação.

Essa observação suscita uma reflexão sobre o que normalmente chamamos "escolha".

Quem, de fato, escolhe? Sob esse termo genérico escondem-se diferenças e desigualdades sociais importantes.

Para a grande maioria não existe verdadeiramente uma escolha, mas uma adaptação, um ajuste às condições que o candidato julga condizentes com sua realidade e que representam menor risco de exclusão.

Do acesso à permanência no ensino superior: percursos de estudantes universitários de camadas populares*- Nadir Zago

Mérito, capacidade, esforço, perseverança e determinação...

Hoje, os jovens são desafiados a estudar cada vez mais para manter a posição social em que se encontram.

Surgiram os cursos preparatórios aos vestibulares,
que se expandiram na proporção em que aumentava a demanda pelo ensino superior e a necessidade de maior qualificação da mão-de-obra.

São cursos de natureza lucrativa, especializados por áreas, dirigidos aos segmentos mais favorecidos da população e que, por décadas, têm alimentado o caráter seletivo do ensino superior, legitimado como a expressão verdadeira de uma política de igualdade de oportunidades e mérito.

A Declaração Mundial sobre Educação Superior no Século XXI, de 1998, reproduz o art. 26, §1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
segundo a qual a admissão à educação superior deve ser baseada no mérito, capacidade, esforço, perseverança e determinação dos seus candidatos.

Nesse sentido, continua a dar preferência a uma política baseada no mérito individual, agora, porém, com base em uma visão da educação superior considerada componente de um sistema contínuo de educação, vinculada aos demais níveis educacionais aos quais ela deve promover.

Nesse sentido, são particularmente reveladores os estudos sobre o perfil dos candidatos e ingressantes nas escolas que oferecem ensino superior gratuito, particularmente nas universidades e nos cursos de maior prestígio acadêmico e social.
Os indicadores desses alunos retratam uma situação em que são visíveis os efeitos perversos do princípio de igualdade de oportunidades.

No Estado de São Paulo, como já se afirmou, 85% dos alunos de ensino médio estudam em escolas públicas estaduais. Contudo, apenas 20% dos aprovados pela Fundação Universitária para o Vestibular – Fuvest – são oriundos dessas escolas.

Este é um tipo de constatação que tem fundamentado fartamente as críticas às universidades públicas, conduzidas por interesses os mais diversos.

Em lugar de igualdade de oportunidades importa falar em igualdade de condições.

Pré-vestibulares alternativos- Eleny Mitrulis; Sônia Teresinha de Sousa Penin

Prouni

Em suma, o Prouni promove uma política pública de acesso à educação superior, pouco se preocupando com a permanência do estudante, elemento fundamental para sua democratização.

Orienta-se pela concepção de assistência social, oferecendo benefícios e não direitos aos bolsistas.

Os cursos superiores ofertados nas IES privadas e filantrópicas são, em sua maioria, de qualidade questionável e voltados às demandas imediatas do mercado.

O princípio do Prouni segue essa orientação: promove o acesso à educação superior com baixo custo para o governo, isto é, uma engenharia administrativa que equilibra impacto popular, atendimento às demandas do setor privado e regulagem das contas do Estado,
cumprindo a meta do Plano Nacional de Educação (PNE - Lei nº 10.172/2001) de aumentar a proporção de jovens de 18 a 24 anos matriculados em curso superior para 30% até 2010.

Pretende, ainda, atender ao aumento da demanda por acesso à educação superior, valendo-se da alta ociosidade do ensino superior privado (35% das vagas em 2002, 42% em 2003 e 49,5% em 2004).

O crescimento das IES privadas dependeu, em grande medida, desse incentivo.

A falta de controle sobre o Prouni é tanta que muitos bolsistas perderam o ano: suas turmas foram fechadas pelas IES.
Embora tenham a obrigação de destinar esses alunos a outras IES, para que eles não percam o semestre, o ano ou mesmo o curso, a fiscalização tem sido débil.
Chega-se ao ponto de os bolsistas terem de se reinscrever em nova seleção do Prouni após não conseguirem realocação em outras IES

Nesse sentido, traz uma noção falsa de democratização, pois legitima a distinção dos estudantes por camada social de acordo com o acesso aos diferentes tipos de instituições (prioridade para a inserção precária dos pobres no espaço privado), ou seja, contribui para a manutenção da estratificação social existente.

É, assim, uma medida de impacto popular, privatista e de baixo custo orçamentário.


PROUNI: democratização do acesso às Instituições de Ensino Superior?*
Afrânio Mendes Catani; Ana Paula Hey; Renato de Sousa Porto Gilioli

Prouni

Não é de se surpreender que os investimentos públicos sejam os mais baixos da história recente do país e, após as sucessivas privatizações, perderam o papel que tinham como articuladores das condições de crescimento.

O caminho privado de expansão de matrículas, cursos e instituições, que foi tão intenso nos anos de 1970 e teve um novo surto expansivo nos anos de 1990, principalmente entre 1998 e 2002, resultou na criação de um número excessivo de vagas que, segundo informações recentes do INEP, é superior ao número de formandos no ensino médio.

Embora a demanda potencial por ensino superior não se restrinja ao número de concluintes do ensino médio, é muito difícil estimar o número de pleiteantes.
Neste cálculo, inclui-se não apenas parte dos recém-formados, como também aqueles que retornam tardiamente aos bancos escolares.

Este fenômeno dá indícios de que o segmento privado disponibiliza um contingente de vagas não procuradas pelos estudantes.
Esta situação gerou um quadro de incerteza no setor, ainda mais quando se leva em conta o grau de inadimplência/desistência.
A queda nos rendimentos reais e o nível elevado de desemprego dificultam a sustentação dos gastos com as mensalidades pelos assalariados.

Neste contexto, o Programa Universidade para Todos (PROUNI) surge com o discurso de justiça social, tendo como público-alvo os estudantes carentes, cujos critérios de elegibilidade são a renda per capita familiar e o estudo em escolas públicas ou privadas na condição de bolsistas.

Além disso, o programa estabelece, obrigatoriamente, que parte das bolsas deverá ser direcionada a ações afirmativas aos portadores de deficiência e aos negros e indígenas. A formação de professores de ensino básico da rede pública também consta como prioridade.

Tais medidas corroboram com os interesses de parte da sociedade civil, dos movimentos sociais em prol das ações afirmativas, bem como dos egressos do ensino médio público, por não se considerarem uma demanda potencial às instituições públicas frente às barreiras impostas pelos exames vestibulares.

A legitimidade social do programa encontra ressonância na pressão das associações representativas dos interesses do segmento particular, justificada pelo alto grau de vagas ociosas.

O PROUNI surge como excelente oportunidade de fuga para frente para as instituições ameaçadas pelo peso das vagas excessivas.

Não se encontram disponíveis as informações sobre o PROUNI: total de bolsas por IES, a relação total das ies que aderiram ao programa, o detalhamento dos cursos disponíveis e/ou escolhidos, o perfil dos estudantes (dados econômicos e sociais), taxas de evasão e desempenho acadêmico dos beneficiários.

Diante do quadro social e educacional deletérios, cabe questionar a efetividade de tal programa, uma vez que as camadas de baixa renda não necessitam apenas de gratuidade integral ou parcial para estudar, mas de condições que apenas as instituições públicas, ainda, podem oferecer, como: transporte, moradia estudantil, alimentação subsidiada, assistência médica disponível nos hospitais universitários e bolsas de trabalho e pesquisa.

Coerente com a nova lógica das finanças públicas, o diagnóstico do aumento de vagas ociosas - no segmento privado -, combinado à procura por ensino superior das camadas de baixa renda, fundamentou a proposta do MEC de estatização de vagas nas instituições particulares em troca da renúncia fiscal.

As instituições mais beneficiadas parecem ser as lucrativas, que não apenas estão submetidas às regras mais flexíveis, como também obtêm maior ganho relativo em renúncia fiscal, em troca de um número reduzido de bolsas de estudos.

Considerando-se sua legitimidade social, o programa pode trazer o benefício simbólico do diploma àqueles que conseguirem permanecer no sistema e, talvez, uma chance real de ascensão social para poucos que estudaram no seleto grupo de instituições privadas de qualidade.

Mas, para a maioria, cuja porta de entrada encontra-se em estabelecimentos lucrativos e com pouca tradição no setor educacional, o programa pode ser apenas uma ilusão e/ou uma promessa não cumprida.

Cristina Helena Almeida de Carvalho- O Jogo Político em Torno da Educação Superior.

Acesso

Uma das tendências centrais do ensino superior contemporâneo, em escala internacional, diz respeito à ampliação do seu acesso, fenômeno que se iniciou a partir da segunda metade do século XX.

Paralelamente ao processo de ampliação de acesso ao ensino superior, tem ocorrido uma retração do financiamento público que, de modo geral, não tem acompanhado o ritmo da demanda, que tem assumido feições específicas em cada sociedade concreta.

(...) assim passou a ocorrer um crescente engajamento das instituições de educação superior com empresas privadas, como uma estratégia de captação de recursos, para compensar a tendência de retração do aparelho estatal no financiamento de universidades sob a sua responsabilidade.

Na mesma esteira, recomendam também a transferência de recursos financeiros do ensino superior para a educação básica, apoiando-se na premissa de que o ensino público subsidia uma camada média e/ou grupos privilegiados que possuem condições para arcar com os custos de seus estudos.

Torna-se fundamental rever a lógica que tem comandado o seu funcionamento ao longo das últimas quatro décadas, em larga medida, ancorada na intensificação do processo de privatização e na corrosão de parte significativa das universidades públicas.

Uma reforma necessária - Carlos Benedito Martins