quinta-feira, janeiro 31, 2008

As Idéias de Freud

Sobre os Sonhos.

"Como sabemos, a relação entre a pessoa que sonha e os seus desejos é de natureza muito peculiar. Ela os repudia e censura".
Pode haver então um contraste entre a satisfação do homem e a satisfação do desejo.

Todo o sonho contém uma repetição de uma impressão recente do dia anterior.
A própria impressão pode ter sido significativa ou indiferente- o que se relaciona com o fato da impressão pertencer ou não ao conteúdo latente do sonho.

Os sonhos sem disfarce, muito comuns em crianças pequenas, também ocorrem em pessoas sujeitas a privação extrema, como conta o explorador citado por Freud Otto Nordenskjold, ao relatar que seus homens, numa expedição ao Antártico, sonhavam com comida e bebida em abundância, com tabaco empilhado em montanhas ou com uma carta entregue com um grande atraso, pelo que o carteiro pedia desculpas.

Sobre as Parapraxias

Em todos os casos, quando se pensa que reina o mero acaso, ou um acidente, ou a desatenção, existe de fato um impulso atuando ou uma intenção.

Em qualquer parapraxia existe o que poderíamos considerar um ato perturbador e um ato perturbado.
A intenção que se manifesta é a de cometer o ato perturbador, não o perturbado.

Uma intenção deve ter sido, ela própria, perturbada, antes de poder se tornar uma perturbação.

Sobre os Chistes

O chiste não só salvaguarda os prazeres do jogo, mediante uma cortina de racionalidade, mas também protege e promove o pensamento, ao associá-lo a uma fonte tão evidente de prazer.
Estaremos menos preparados para encontrar defeitos num pensamento se este nos fizer rir, se bem que, rigorosamente falando, não seja o pensamento mas a forma em que ele foi vazado que é responsável pelo nosso humor.
De um ponto de vista o chiste é (e permanece) absurdo; e de um outro ponto de vista, ele é (e permanece) lógico.
"Nada distingue os chistes mais claramente de todas as outras estruturas psíquicas que essa duplicidade de discurso e esse duplo sentido."

O chiste é essencialmente uma atividade social: é "a mais social de todas as funções mentais que visam à obtenção de uma certa soma de prazer".
Ora, o que Freud quis dizer não foi simplesmente que o ouvinte de um chiste se beneficia com o engenho de quem o fez, mas também que a pessoa que faz o chiste depende do ouvinte.
"Um chiste deve ser contado a outra pessoa.": Não podemos rir de um chiste feito por nós próprios.

Sobre a Sexualidade

Por que Freud atribuiu tamanha importância à sexualidade?
A resposta parece estar distribuída entre quatro propriedades muito gerais e interligadas que atribuiu ao aspecto sexual: sua antiguidade, sua imperiosidade, a sua plasticidade e a sua propensão para o desenvolvimento inadequado ou fixação.

Mais genericamente, Freud assinalou que a posição sexual de um homem tende para influenciar tudo o mais em sua vida por causa do modo como a sexualidade pode servir de padrão para todos os seus outros sentimentos e pensamentos.
"A atitude de um homem em coisas seuxais tem a força de um modelo a que o resto de suas reações tende a conforma-se."

Sobre as Fantasias

Originalmente, Freud usou o temo fantasia para designar construtos mentais que denotavam recordações mas não eram, embora pudessem ser compostos de fragmentos de memória visual e sobretudo auditiva;
a função de tais construtos era proteger as recordações reais- eram o que ele designou por "ficções defensivas".

Gradualmente, libertou o conceito de fantasia do de memória, quanto à função e ao conteúdo. Uma fantasia era agora o retrato ou representação de um desejo realizado em certas circunstâncias ou com fundamento em certas crenças.

Sobre os Sintomas

O sintoma é uma formação de compromisso, pelo que os vários desejos conflitantes expressam-se num mesmo sintoma.

Contudo, temos de considerar não só o que sintoma realiza mas também o que ele evita.
Se é uma forma substitutiva ou medíocre de satisfação para o impulso, ainda é francamente preferível a que se negue ou renuncie completamente o impulso, pois se esse for negado, resultará a ansiedade.
"O sintoma foi construído para evitar uma erupção de ansiedade".


Sobre as Neuroses

A relação da neurose com o passado já não é assegurada por um único vínculo, o da memória com o seu objeto.

Neurose é repetição.
E a repetição, longe de ser sinônimo de reminiscência ou de recordação, é agora posta em constraste explícito com ambas.
O neurótico "repete, em vez de recordar".

"O ego do adulto, com seu crescente vigor, continua se defendendo contra perigos que já não existem na realidade;
com efeito, ele vê-se compelido a procurar na realidade aquelas situações que servem como substituto aproximado do perigo original, de modo a poder justificar, em relação a elas, o fato de manter os seus modos habituais de reação.
Assim, podemos facilmente compreender como os mecanismos defensivos, ao provocarem uma alienação cada vez mais extensa do mundo externo e um permanente enfraquecimento do ego, preparam o caminho e encorajam a eclosão da neurose".

Sobre a Transferência

Pois a transferência é agora vista como a construção de uma neurose em miniatura dentro da qual o paciente reativa e volta a representar os seus conflitos mais fundamentais, mas desta vez em torno da pessoa do analista.
O que ocorre na análise é repetição do que o paciente faz, um acting out.
Contudo, por uma série de interpretações, já não dirigidas para eventos confusos ou distantes mas para uma representação dramática em que o paciente está diretamente envolvido, o analista fica habilitado a intervir diretamente no processo de repetição e a convertê-lo num processo de recordação.

Sobre o Superego.

Que a moralidade é impenetrável à razão, que nosso comportamento não se submete, em geral, ao nosso próprio código moral sempre foi algo como uma desgraça para os filósofos..

De fato, para Freud, o verdadeiro perigo não decorre da discrepância entre o que se espera de nós próprios e o que fazemos, o que não é em absoluto extraordinário, mas do modo como as duas coisas podem ser ligadas.

Freud identificara o que chamou de "criminosos em decorrência de um sentimento de culpa", e o que tinha em mente eram aqueles indivíduos em que o sentimento de culpa são tão poderosos que a prática de uma malfeitoria só pode acarretar alívio, ou porque torna esses sentimentos racionais ou por causa da punição que se segue à malfeitoria.

A velha questão de "incompatibilidade" podia agora ser reformulada em termos de superego.

"A sombra do objeto caiu sobre o ego".
Freud vislumbrou que a própria agência crítica, ou superego; podia ser explicado em termos de introjeção.

Mas é como se o superego tivesse feito uma escolha "unilateral", tomando apenas o aspecto rigoroso e austero dos pais e ignorando os seus sentimentos de amor e desvelo.

A relação do superego com o ego não é esgotada pelo preceito "você deve ser como o seu pai", também compreende a proibição "você não pode ser como o seu pai"- isto é, você não pode fazer tudo o que ele faz; algumas coisas são prerrogativas dele.

A energia do superego é a agressão.
A interiorização está para a agressão como a repressão está para a sexualidade, e compartilha tanto de seus perigos como de suas vantagens.

Sobre a Civilização.

"Eu posso, pelo menos, escutar sem indignação o crítico que é da opinião de que, quando se examinam os objetivos do desenvolvimento cultural e os meios que emprega, não se pode deixar de concluir que todo o esforço realizado não valeu a pena e que o resultado só pode ser um estado de coisas que o indivíduo será incapaz de tolerar."

O homem está colocado no mundo de uma tal maneira que pode experimentar a dor com muita facilidade.
Por conseqüência, a tarefa de evitar a dor adquire a prioridade sobre a de obter prazer e parece ter sido o ponto de vista de Freud que, se o homem, em sua existência privada, continua em busca do prazer, na sua existência civil está muito mais preocupado em evitar a dor.

Mas assim como os argumentos e considerações racionais exercem tamanho poder sobre ele, o homem, quando o conforto o exigir, fará tudo o que estiver ao seu alcance para não os escutar.

"Aceito a censura de que não posso oferecer-lhes consolação; pois, no fundo, é o que todos os homens estão pedindo... Os mais ardentes revolucionários não menos que os crentes mais virtuosos".

Richard Wollheim- As Idéias de Freud.

terça-feira, janeiro 29, 2008

História da Vida Privada- Ajustamento e Modelagem.

Pelo menos ao longo dos dois primeiros terços do século, a prolixidade do discurso acadêmico sobre a histeria, a hipocondria e o perigo das paixões,
a convicção de que há um estreito vínculo entre o físico e o moral do homem,
estimulam a medicina da alma.

A proximidade do louco alimenta a ansiedade do grupo.

É certo que os pasteurianos continuam a analisar a ameaça mórbida em termos de meio ambiente e não de relações sociais, mas as novas teorias não são menos carregadas de conseqüências.
Provocam uma ação sanitária e social que implica novas táticas de vigilância.
A necessidade de prevenção, a obrigação de arrancar os contagiados de sua família e supervisionar a aplicação de medidas profiláticas estimulam uma interferência que tende a impor processos de ajuste mais vastos e sistemáticos que os até então resultantes de um foco de infecção.

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São intermináveis as narrativas dos mal-estares de seus pacientes.
A escuta torna-se uma especialidade.
Este método, baseado no exame cara a cara, na anotação de palavras pronunciadas e na detecção dos antecedentes, apresenta-se antes de mais nada como uma busca de vestígios.

Associados à instauração, ainda recentíssima, da escolarização obrigatória, os processos de mensuração da inteligência, irão interferir na vida pessoal de muitas crianças.

Professores e pais empenham-se em acuar a indolência, proscrever a postura lânguida que revela a ociosidade. Chegou a hora da vivacidade dinâmica.

O código gestual das boas maneiras, as atitudes impostas ao aluno, ao interno, ao soldado, ao prisioneiro, as posturas do repouso ou da simples distensão, essa história das correções e da emancipação do corpo tem um grande impacto na vida privada.

Igualmente estimulado pelas teorias darwinianas e pela ameaça alemã, o esporte age sobre os comportamentos: favorece e ao mesmo tempo atesta o self-government do indivíduo, é dominado pela perseguição do resultado, que exalta o campeão.

A visão passa a não ser tanto a de corrigir, exercitar, ou mesmo curar, mas de usufruir do bem-estar, da expansão da busca por experimentar melhor um corpo que deixa de ser percebido enquanto exterior à pessoa.

A cenestesia já não é dominada pela escuta das disfunções, mostra-se também atenta à percepção do bem-estar e dos prazeres.

Bastidores- Alain Courbin.
História da Vida Privada- Da Revolução Francesa à Primeira Guerra.

sábado, janeiro 26, 2008

História da Vida Privada- consumo de álcool.

Pode se considerar a taberna popular e a adega do comerciante de vinhos como lugares onde se embaralham as fronteiras e há uma mescla de condutas públicas e privadas.
O taberneiro, visto como um amigo, toma parte na conversa. Desempenha o papel de confidente, de fiador; sendo preciso, torna-se agente de empregos.
Aqui o álcool não é apenas uma necessidade psicológica, é o pretexto para a relação privada.
Seria possível, sem forçar em demasia, alinhá-lo entre os coadjuvantes dos procedimentos da confissão.

Mas, ao mesmo tempo, ele consagra a sociabilidade do trabalho.
O operário que não bebe arrisca-se a ser excluído.
O consumo de álcool, reconhecido como sinal de virilidade, contribui para desenhar a imagem do indivíduo.

É importante mencionar o descaso que a sobriedade provoca aqui.
A rodada acompanha cada acontecimento alegre: um aniversário, o encontro com um amigo, a volta de um soldado, um novo emprego, e, sobretudo, o dia do pagamento.

Vê-se no álcool um novo ópio do povo.
No momento em que se esfuma o domínio da religião, o álcool vem turvar as consciências.
O "consolo", engolido de uma vez só, desde as cinco horas da manhã, faz esquecer a um só tempo a fadiga, o perigo de acidente e as angústias da condição.

A fabricação industrial, a queda do preço das bebidas e a liberalização da venda, inaugurada pela lei de 1880, evidentemente favoreceram o incremento do consumo urbano.

Bastidores- Alain Courbin.
História da Vida Privada- Da Revolução Francesa à Primeira Guerra.

História da Vida Privada- A Prática de Escrever Sobre Si.

O indivíduo converte-se no centro e no intérprete do mundo.
"É dentro de si que que é preciso olhar o exterior". (Victor Hugo).

Em tempos de ampliação dos movimentos de multidões, o indivíduo afirma-se como valor político, científico, e sobretudo existencial.
A prodigiosa descoberta de si por si próprio gera novos laços com os outros.

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Não menos essencial é a laicização dos procedimentos de interpretação do indivíduo, elaborados à sombra do confessionário.
A compatibilização da existência, a aritmética das horas e dos dias, que sobrecarregam o homem do século XIX, não derivam apenas do temor da falta;
provêm igualmente deste mesmo fantasma da perda que conduz a manter livros de contabilidade doméstica da mais extremada minúcia, que engendra a angústia do desperdício de esperma ou simplesmente do cotidiano estreitamento da duração da vida.
Este desejo de represar a perda transborda para o diário íntimo.

A busca retrospectiva do eu, objeto do diário, estimula arrependimentos, aviva nostalgias, mas, em um mesmo movimento, valoriza a aspiração e desperta o imaginário da construção de si.

O longo monólogo interior permite também que se controle a aparência pessoal, tornando-a ao mesmo tempo mais indecifrável aos outros; o necessário segredo do indivíduo contribui para impor a introspecção.

Desde então ela se preocupa com as roupas, registra os bailes, os espetáculos a que assiste e tem o cuidado de inscrever suas impressões de viagem.
O álbum é um saco de gatos: ali colam-se boletins escolares e gravuras pitorescas; ao chegar o casamento, ele irá unir-se aos cadernos no novo museu dos arquivos familiares.

"Ao conservar a história do que sinto", diz Delacroix em 7 de abril de 1824, "tenho um duplo fim: o passado retornará a mim. O futuro está sempre ali."
Assim se constitui uma memória que autoriza a um só tempo a amnésia e a comemoração.

Bastidores- Alain Courbin.
História da Vida Privada- Da Revolução Francesa à Primeira Guerra.

terça-feira, janeiro 22, 2008

Só sei ser íntima.

Não o executes, é o que deves fazer. Não a escutes e a possuirá.
Eis como eu me redimo de lançar pedras, tão sempre... Eis que eu te ensinei a não matar. Erige dentro de ti o monumento do Desejo Insatisfeito. E assim as coisas nunca morrerão. Porque eu te digo, ainda mais triste que lançar pedras é arrastar cadávares.

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"Porque não treinam a razão discursiva, as crianças vêem o mundo mais de perto".

- Mamãe, faça alguma coisa para eu não machucar o Paulo.
- Está bem. Ordeno que não o machuque e que me obedeça.
- Ah não, não é assim! Faça alguma coisa para eu não querer machucar o Paulo!

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- Olha uma menina bonita!
Ficou agitadíssimo e disse:
- Mamãe, quando eu vejo uma menina bonita eu até sinto o cheiro do meu paninho!

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"Quando começam a me fazer muitas perguntas complicadas, me sinto como a centopéia que um dia perguntaram como ela não se atrapalhava ao caminhar com cem pés. Ela foi demonstrar sua técnica e acabou desaprendendo-a. Eu também tenho medo disso".

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Mas acho que todo escritor é um ator inato. Em primeiro lugar ele representa profundamente o papel de si mesmo. Escritor é uma pessoa que se cansa muito, e que termina com um pouco de náusea de si, já que o contato íntimo consigo próprio é por força prolongado demais.

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Outros Escritos- Clarice Lispector

domingo, janeiro 20, 2008

Na razão dos desencontros...

Tua memória, pasto de poesia.

Não há nunca testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos.
Quem reconhece o drama, quando se precipita, sem máscara?

O próprio amor se desconhece e maltrata.
O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados.
Não está certo de ser amor.

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O mundo é talvez: e só.
Talvez nem seja talvez.
Meu bem, façamos de conta.
De sofrer, de lembrar, de fruir.
De escolher nossas lembranças
E revertê-las acaso se lembrem demais em nós.
Façamos, meu bem, de conta
que é tudo como se fosse
ou que, se fora, não era.
Meu bem, usemos palavras.
Façamos mundo: idéias.
Deixemos o mundo aos outros.
Já que os querem gastar.

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Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor,
e na secura nossa, amar a água implícita,
e o beijo tácito, e a sede infinita.

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Este é de resto o mal superior a todos:
a todos como a tudo estamos presos.
E se tentas arrancar o espinho de teu flanco,
a dor em ti rebate, a do espinho arrancado
.
Nosso amor se mutila a cada instante.
A cada instante agonizamos
ou agoniza alguém sob o carinho nosso.
Ah, liberta-se, lá onde as almas se espelhem
na mesma frigidez de seu retrato, plenas!
É sonho, sonho.
ilhados, pendentes, circunstantes,
na fome e na procura de um eu imaginário
e que, sendo outro, aplaque
todo este ser em ser,
adoramos aquilo que é nossa perda
.

Para amar sem motivo
e motivar o amor na sua desrazão.

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Alguns afetos recortam o meu coração chateado.
Se me chateio? demais.

Amou. E ama. E amará.
Só não quer que seu amor
seja uma prisão de dois,
um contrato, entre bocejos
e quatro pés de chinelo.

Feroz a um breve contato,
à segunda vista, seco
à terceira vista, lhano,
dir-se-ia que ele tem medo
de ser, fatalmente, humano.

(Não ser feliz tudo explica).

Restam sempre muitas vidas para serem consumidas
Na razão dos desencontros.

Opa! que não foi brinquedo,
mas os caminhos do amor,
só o amor sabe trilhá-los.

Tão ralo prazer te dei, nenhum, talvez, ou senão...
Esperança de prazer.

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Pois eterno é o amor que une e separa,
e eterno o fim (já começara, antes de ser),
e somos eternos,
frágeis, nebulosos, frustrados: eternos.

E o esquecimento ainda é memória,
e lagoas de sono selam o que amamos e fomos um dia,
ou nunca fomos, e contudo arde em nós

à maneira da chama que dorme nos paus da lenha jogados no galpão.

Amar, depois de perder.

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Carlos Drummond de Andrade- Claro Enigma.

sábado, janeiro 19, 2008

Eu vejo tudo enquadrado, Remoto Controle...

Trata-se de uma sociedade baseada na contemplação passiva, em que os indivíduos, em vez de viverem em primeira pessoa, olham as ações dos outros.
Isto acontece não somente sob o plano televisivo, e não somente na publicidade, mas também sob muitos outros planos: na sociedade do espetáculo, também a política- incluindo uma boa parte daquela que se proclamava revolucionária-, a cultura, o urbanismo, as ciências baseiam-se sempre na distinção entre espectador e ator.

Convém então sublinhar, desde já, que a estrutura essencial da televisão não é somente ligada à imagem. A tevê não é essencialmente uma transmissão de imagens.

Além disso, hoje freqüentemente nem mesmo se assiste à televisão, mas ela serve somente para proporcionar um ruído de fundo; outras vezes, com o zapping, com as telas divididas em mais telas, com os spots publicitários ou com os videoclipes, não se vêem nem mesmo mais imagens no sentido normal, mas somente um amontoado de cores em movimento no qual não se presta nenhum atenção.

As mentiras dominantes da época estão em condições de fazer esquecer que a verdade pode ser vista também nas imagens.

A questão é: cada ouvinte e espectador está isolado em seu cubículo doméstico, onde o mundo lhe é fornecido em casa de maneira escolhoda pelos outros.

Nós homens não estamos na altura da perfeição dos nossos produtos; aquilo que produzimos excede nossa capacidade de imaginar e nossa responsabilidade; acreditamos que nos é lícito ou absolutamente obrigatório fazer tudo aquilo que podemos fazer. Existe uma grande discrepância entre os novos meios técnicos produzidos pelo homem e sua capacidade de sentir, pensar, imaginar- que continuam as mesmas.

Na época em que Adorno, Anders ou Debord fizeram suas observações, que até hoje parecem muito pertinentes, era a época das transmissões somente em preto-e-branco, em um só canal, transformado-se em seguida em dois, no máximo três, todos estatais, muito educativos e pouco diertidos, e que era transmitido somente da metade da tarde até meia-noite, no máximo, quando terminavam com o hino nacional: os mais jovens entre vocês só a muito custo acreditariam nisto.
Somente quem crescem em uma sociedade sem televisão foi capaz de notar a passagem e de observar as mudanças.

Na verdade, o ardor com o qual a televisão é aceita praticamente em todos os lugares e sempre não se explicaria se já não se encontrasse uma situação de forte tédio que faz parecer preferível olhar uma tela.

Para além dos conteúdos, o espectador está sempre condenado a olhar o que fazem os outros, sem ter nenhum poder sobre a própria vida.
O que caracteriza a televisão não é o fato de se olhar pra ela, mas de somente se olhar.
O olhar imóvel, a contemplação inerte: é isso que caracteriza o assistir à televisão e faz dela a expressão de uma sociedade na qual tudo é espetáculo.

Porque nem tudo é espetacular no sentido de colorido, sensacional, emocionante, vistoso- de fato, a televisão nem sempre sensacionaliza os eventos, às vezes ela banaliza e apresenta certas coisas de uma maneira mais inocente do que são na realidade.

Se Debord disse que tudo é espetáculo, foi pelo fato de que tudo, da política ao tráfico, das cidades à cultura, tende a produzir e reproduzir o indivíduo isolado, portanto, massificado, que se encontra em um estado de completa impotência diante do mundo que, na verdade, é resultado de suas ações.
Mas essa contemplação não é fruto de uma preguiça ontológica, mas o resultado de uma ordem social que vive graças à passividade. E é esse fato que liga a temática da televisão à da mercadoria.

O "feitichismo da mercadoria" não significa apenas uma adoração, um excessivo investimento afetivo sobre os bens de consumo, como o termo poderiam fazer pensar à primeira vista.
Significa que o destino de um produto, e de toda a produção, não depende de sua real utilidade para alguém, nem de sua beleza, nem de seu valor simbólico, mas da sua capacidade de ser vendido. Isso, todos nós sabemos.

Somente quando essa geração para a qual, desde pequena, a realidade era a que a televisão transmitia, e não aquela da qual eventualmente se podia fazer uma experiência direta, pois bem, somente quando essa geração chegou às cátedras pôde difundir-se a tese pós-moderna de que a realidade não existe, e não por acaso isto aconteceu nos países em que a desrealização da vida cotidiana estava já mais avançada.

Não é impossível que muita gente, se fosse deixada sem televisão, depois de um momento de perturbação, esfregaria os olhos perguntando-se de que sono despertou.

O Reino da Contemplação Passiva- Anselm Jappe.

Sem final feliz ou infeliz, atores sem papel.

Que instrumento é mais eficiente para ficcionar diariamente a vida social do que a televisão? Doméstica como uma lâmpada, cotidiana como o pão, onipresente e onisciente como Deus, a televisão é tecnicamente capaz de fabricar, para a vida cotidiana, sua dose de fantasia.
A televisão produz mitos para a vida moderna na velocidade em que o McDonald's produz hambúrgueres.
Produz e reproduz ficção política com tal eficiência que se torna capaz de recobrir todo o campo de forças em que se jogam os interesses "reais" que afetam diretamente a nossa vida.

Agora a indústria não fabrica apenas coisas palpáveis: dedica-se a produzir os signos que encarnam sua representação.

Para onde quer que voltem os homens hão de deparar sempre com imagens que buscam representá-los para si próprios. A cultura deixa de ser referência de alteridade para tornar-se espelho do que nos é mais íntimo e familiar.

Para Fredric Jameson, "a televisão colonizou o inconsciente, ocupando o lugar imaginário do outro".

Nos hospitais psiquiátricos encontram-se internos que, nos momentos de surto, tentam destruir os aparelhos de tevê. Acreditam que os locutores de telejornais lhe dão ordens, que os personagens das novelas os perseguem e as publicidades contêm mensagens cifradas que lhe dizem respeito.

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Sempre é interessante ver de onde as pessoas retiram assunto para conversar, em especial, a prosa mole, a conversa sem maiores compromissos, mas que é fundamental, porque formata identidades.

O contraste entre noticiários e novelas, que chega ao ponto de se tornarem, os primeiros, obras de ficção, enquanto as segundas exercem papel crítico que tem, eventualmente, forte dose de realismo.

Quem acompanhou a televisão no final dos anos 1980, via com freqüência algum importante político do interior do país ser elogiado no noticioso para, daí a meia hora, na novela (digamos, Roque Santeiro), alguém com traços próximos aos seus, coronel, prepotente, ser apontado como responsável pelas mazelas do país.

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Houve uma época em que o valor das fotos de imprensa era avaliado segundo a qualidade do enquadramento, da luz, do foco e da revelação. Em seguida, tornaram-se interessantes as fotos mal enquadradas, meio fora de foco. A imperfeição técnica e estética é o sinal, até mesmo a garantia, de que as fotos não foram montadas, de que foram tiradas na emergência, no meio do perigo.

Durante a campanha de 2003, no Iraque, podiam-se ver jornalistas de televisão entrevistando um ferido durante seu translado de maca, e, em seguida, emprestando-lhe o telefone para que ele pudesse falar (ao vivo, por definição) com seus parentes nos Estados Unidos.

Diante das imagens mais terríveis, nada podemos fazer, a não ser nos surpreender pelo fato de que alguém, no auge da tragédia, no momento exato, in loco, escolhera esse gesto: pegar a máquina, multiplicar as tomadas, tirar fotos. O fotógrafo, em sua posição, representa: "faça como se eu não estivesse aqui".

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Muito Além do Espetáculo- Adauto Novaes (organizador).

O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos.

Visão.

O olhar consiste mais na faculdade de estabelecer relações no que na de colher imagens. Como escreveu Merleau-Ponty no ensaio "O cinema e a nova psicologia", "o sentido depende daquelas que a precedem, e sua sucessão cria uma realidade nova que não é a simples soma dos elementos empregados".

Assim, a especifidade da visão é que sua dimensão subjetiva- se eu fechar os olhos, o mundo desaparecerá- tende a se negar, a se esquecer como dimensão subjetiva.

Na realidade, nosso mundo não é constituído por conteúdos, mas sim por formas, fisionomias, qualidades afetivas, isto é, significações.

Ver não é apoderar-se, mas aproximar-se.

"Ver é sempre ver mais do que se ver": na medida em que a visão é aproximação ou exploração, ou seja, antecipação, ela já vê, de certa forma, aquilo que ela ainda não está vendo.
Nossa relação com o visível é caracterizada por uma insatisfação irredutível.

Ora, sabemos que a visão constitui o laço vivo entre nós e o mundo, entre nós e os outros, e, por isso, o olhar tem a capacidade de pôr em questão toda a realidade.

Ou ainda, como escreve Sartre, em O Ser e o Nada, ao falar da intersubjetividade e da construção do próprio ser: sou possuído pelo olhar do outro: o olhar do outro estrutura o meu corpo, o faz nascer, o esculpe, o produz como ele é, o vê como jamais verei. O outro detém o segredo daquilo que sou.

O Invisível da Visão- Renaud Barbaras.

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Imagens.

Se um lugar for indicado de um lado por uma imagem e de outro por uma descrição, qual indicação será mais apreciada pelo visitante: a imagem ou a descrição?"

Pretendendo representar o real sem nuances, sem julgamentos, pondo o possível e o real no mesmo plano, a imagem dá esse sentimento de realidade que a linguagem não dá.
Os mais belos discursos, eles sim, podem ser sempre contraditos, as mais finas argumentações podem ser refutadas. Mas não podem nada contra a prova (real ou aparente) apresentada por uma imagem, que está sempre no indicativo.

As imagens dão novamente vida aos mortos (está aí seu poder), isso porque a vida dos mortos é a vida das imagens (aí está a ilusão).

A ilusão que permite a criança considerar seu boneco coisa diferente de um pedaço de pano e de tratá-lo como uma verdadeira pessoa- com a diferença de que a criança sabe que está brincando, que está fingindo.

A ilusão criada pelas imagens é a ilusão dos fantasmas ou do ícone.
Ela não consiste de forma alguma em atribuir às imagens aquilo que se atribui à própria realidade.
É até exatamente o contrário: ela consiste em atribuir à própria realidade o poder das imagens, o poder de representar.

Não pretendemos mais, ao pintar os deuses, que eles próprios se tornem visíveis, em pessoa, mas continuamos pretendendo, ao filmar o mundo, que ele se torne visível em carne e osso.

A grande mistificação é essa do "ao vivo": Ver as coisas enquanto acontecem nos dá a impressão de ler o mundo como um livro aberto.

Será que pelo menos imaginamos, quando vemos um acontecimento "ao vivo", que as pessoas que vemos vêem câmaras, jornalistas, equipes de repórteres, etc.?
Será que ao menos imaginamos que elas fazem parte do acontecimento e que, além disso, certos acontecimentos, cada vez mais, ocorrem apenas para serem filmados, reproduzidos, mostrados?

Esta é a ilusão moderna por excelência: não é que vejamos apenas imagens, é que não separamos mais as imagens como tais.

Por Trás do Espetáculo: O Poder das Imagens.- Francis Wolff

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Muito Além do Espetáculo- Adauto Novaes (organizador).

Pela tela, pela janela...

Para captar o sentido atual das transformações, é preciso pegar ainda mais fundo: o da mudança das sensibilidades que provocou o fenômeno atual da corrosão das intimidades.

De cento e poucos anos para cá estamos assistindo a um processo cultural interessante: o cinema, quando surgiu, ocupou o espaço das festas e quermesses populares, condensando numa tela o universo possível do prazer e do sonho.

Em meados dos anos 50, a televisão recolheu as pessoas das ruas e levou esse mesmo cinema para dentro das casas, acrescentando informação, esporte, humor etc.

Hoje a internet avança mais nesse trabalho, trazendo bancos, bibliotecas, órgãos públicos, todo um universo para o interior dos domicílios.

Algo está se passando: o mundo, a vida, está deixando as ruas e se condensando cada vez mais nas telas.
A realidade externa está evaporando.

Mas acontece ainda outro fenômeno. As pessoas não desejam mais tanto ver, como no voyeurismo; hoje elas precisam mais ser vistas.
A fantasia de ser o objeto do sonho de outra pessoa é bem mais forte.
A tragédia do mundo atual é não ser observado.
Homens e mulheres necessitam mais do que nunca do olhar da câmera para provar sua existência.

O íntimo outrora era o segredo de cada um, seu ‘tesouro’.
Havia boa demanda para isso, as pessoas se marcavam pelo seu mistério. Era a alma do romantismo.

Hoje, com a massificação e a impessoalização, terminou a demanda do íntimo, seu preço de mercado despencou. As pessoas entregam-no facilmente.
Diários íntimos multiplicam-se na internet, pessoas expõem seus pensamentos mais interiores, seus sentimentos mais escondidos.

É a era da TV ‘trash’, em que platéias deliram com confidências escandalosas, com criminosos detalhando seus crimes hediondos, com revelações inacreditáveis da vida privada. E na fila há mais 4.000 ou 5.000 pessoas, a cada semana, esperando a sua vez de falar.

Sobre os Reality Shows (publicado no Observátório da Imprensa).

terça-feira, janeiro 15, 2008

Dois Pingos de Água Morna

A arte de pensar sem riscos.
Não fossem os caminhos da emoção que leva o pensamento, pensar já teria sido catalogado como um dos modos de se divertir.
Não se convidam amigos para o jogo por causa da cerimônia que se tem em pensar.
O melhor modo é convidar apenas para uma visita, e, como quem não quer nada, pensa-se junto, no disfarçado das palavras.

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Nossos defeitos também servem de muletas, não só as nossas qualidades.

Dizia Thoreau: "A opinião pública é uma tirana débil, se comparada à opinião que temos de nós mesmos." É verdade: mesmo as pessoas cheias de segurança aparente julgam-se tão mal que no fundo estão alarmadas.

A culpa? O erro, o pecado. Então o mundo passa a não ter refúgio possível.
Aonde se vá e carrega-se a cruz pesada, de que não se pode falar.
Se se falar- ela não será compreendida.
Alguns dirão- "mas todo o mundo..." como forma de consolo.
Outros negarão simplesmente que houve culpa.
E os que entenderem abaixarão a cabeça também culpada.

O que é que uma pessoa diz a outra? Fora "como vai"?
Se desse a loucura da franqueza, o que diriam as pessoas às outras?

O pior de mentir é que cria falsa verdade. Se a mentira fosse apenas a negação da verdade, então este seria um dos modos, por negação, de provar a verdade. Mas a pior mentira é a mentira criadora.

Depois de descobrir em mim mesma como é que se pensa, fazendo comigo mesma negociatas, nunca mais pude acreditar no pensamento dos outros.

Mas é que os erros das pessoas inteligentes é tão mais grave: elas têm os argumentos que provam.

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Basta olhar numa boate à meia luz os outros: a busca do prazer que não vem sozinho e de si mesmo.
A busca do prazer me tem sido água ruim: colo a boca e sinto a bica enferrujada, escorrem dois pingos de água morna: é a água seca.

Esta paciência eu tive: a de suportar, sem nem ao menos o consolo de uma promessa de realização, o grande incômodo da desordem.
Mas também é verdade que a ordem constrange.

O que me impede?
Às vezes é o horror de se tocar numa palavra que desencadeia milhares de outras, não desejadas, estas.

Não se faz uma frase. A frase nasce.
Salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que se vive e que nunca se entende ao menos que se escreva.
Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimeno que permaneceria apenas vago e sufocador.
Escrever é um modo de não mentir o sentimento.

O que me consola é a frase do Fernando Pessoa que li citada: "Falar é o modo mais simples de nos tornarmos desconhecidos".

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Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente.
Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil.
Sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando.
É porque eu sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder.
É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria- e não o que é.

Aprendendo a Viver- Clarice Lispector.

segunda-feira, janeiro 14, 2008

A Vida Presente

O amor faz uma cócega.
O amor desenha uma curva, propõe uma geometria.

Vejo corpos, vejo almas, vejo beijos que se beijam.
ouço mãos que se conversam e que viajam sem mapa.

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O medo que estereliza os abraços.

A alma cativa e obcecada enrola-se indefinidamente numa espiral de desejo e melancolia.
Infinita, infinitamente...

Tu sabes como é grande o mundo.
Conhece os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens, as diferentes dores dos homens,
sabe como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso num só peito de homem...
sem que ele estale.

Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
Por isso me grito,
Por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.


Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.

Também a vida é sem importância.
A vida é tênue, tênue.
ficou o gosto de leite?
ficará o gosto de álcool?

A noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas, vitrolas,
anúncios do melhor sabão.
barulho que ninguém sabe, de quê, praquê.

O edifício é sólido e o mundo também.
Sabemos que cada edifício abriga mil corpos labutando em mil compartimentos iguais.
O mundo é mesmo de cimento armado.

Se quer fumar um charuto aperte um botão.
Paletós abotoam-se por eletrecidade.
Amor se faz pelo sem-fio.
Não precisa estômago para digestão.
Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado.

É o jornal sujo embrulhando fatos, homens e comida guardada.


Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distriubuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.

O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.

Carlos Drummond de Andrade- Sentimentos do Mundo.

Passagem das Horas

A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me
Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge,
Desta estrada às curvas,
Desta turbulência tranqüila de sensações desencontradas,
Deste desassossego no fundo de todos os cálices,
Desta angústia no fundo de todos os prazeres.

De tão interessante que é a todos os momentos,
A vida chega a doer, a enjoar, a roçar, a ranger,
A dar vontade de sair para fora de todas as casas,
de todas as lógicas e de todas as sacadas,
Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs.

Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos,
E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse.

Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo
Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,
Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia,
seja uma multidão ou uma idéia abstrata.

Transbordei, não fiz senão extravazar-me,
Despi-me, entreguei-me,
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.

Fui para a cama com todos os sentimentos,
Fui soutener de todas as emoções,
Pagaram-me bebidas todos os acasos das sensações,
Troquei olhares com todos os motivos de agir,
Estive mão em mão com todos os impulsos para partir,
Febre imensa das horas!
Angústia da forja das emoções!

Ser sincero contradizendo-me a cada minuto.
Orgia intelectual de sentir a vida!

Eu, o investigador solene das coisas fúteis
Que era capaz de ir viver na Sibéria só por embirrar com isso
Que tantas vezes me sinto real como uma metáfora
Eu, o contraditório, o fictício, o aranzel, a espuma,
Eu, a infelicidade- nata de todas as expressões,
A impossibilidade de exprimir todos os sentimentos
E o que parece não querer dizer nada sempre quer dizer qualquer coisa...
Meu ser elástico, mola, agulha, trepidação...

E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa.

Passagem das Horas- Álvaro de Campos.
Fernando Pessoa.

O que não conseguimos nunca

De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas a que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por atores de convenções e poses determinadas
O circo policromo do nosso dinamismo sem fim?

Janelas do meu quarto.
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?)

As palavras de episódio trocadas
Com o viajante episódico
Na episódica viagem.

Eu? Mas sou eu mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,
E aqui tornei a voltar, e a voltar,
E aqui de novo tornei a voltar?
Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram,
Uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém fora de mim?

Outra vez te revejo.
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.

Grandes mágoas de todas as coisas serem bocados...
Caminhos sem fim...

Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam-
Todas aquelas que me arrependo e me culpo- ;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam -
Todas aquelas que me arrependo e me culto--.

O que só agora vejo que deveria ter feito
O que só agora claramente vejo que deveria ter sido.

Se em certa conversa tivesse tido as frases que só agora, no meio sono, elaboro...

Mas os outros não sentiriam isso também?
Quais outros? Não há outros.
O que os outros sentem é uma casa com a janela fechada,
Ou, quando se abre,
É para as crianças brincarem na varanda de grades,
Entre os vasos de flores que nunca vi quais eram.

A banalidade devorante das caras de toda a gente!
O cansaço inconvertível de ver e ouvir!

Não sentem: por isso são deputados e financeiros,
Dançam e são empregados no comércio,
Vão a todos os teatros e conhecem gente...
Não sentem: para que haveriam de sentir?

Os outros também levam a vida a olhar para as malas a arrumar,
Os outros também dormem ao lado dos papéis meio compostos,
Os outros também são eu.

A sutileza das sensações inúteis
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém.

Tudo isso faz um cansaço, este cansaço, cansaço.

Sou quem falhei ser.
Somos todos quem nos supusemos.
A nossa realidade é o que não conseguimos nunca.

Por que é que há propósitos mortos e sonhos sem razão?
E a memória de qualquer coisa de que não me lembro esfria-me a alma.

A ferida dói como dói.
E não em função da causa que a produziu.

Fecho o caderno dos apontamentos
E faço riscos moles e cinzentos
Nas costas do envelope do que sou.

Poesias de Álvaro de Campos-
Fernando Pessoa

Carinhos? Afetos? São memórias...

Há saudades nas pernas e nos braços
Há saudades no cérebro por fora
Há grandes raivas feitas de cansaço.

Arrumar a vida, pôr prateleiras na vontade e na ação.

Sorrio ao menos, sempre é alguma coisa o sorrir...
Produtos românticos, nós todos...

Grande alegria de não ter precisão de ser alegre
Como uma oportunidade virada do avesso.

Sentir tudo excessivamente,
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas
E toda a realidade é um excesso, uma violência.


Eu adoro todas as coisas
E o meu coração é um albergue aberto toda a noite.
Tenho pela vida um interesse ávido.
Que busca compreendê-la sentindo-a muito.
Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo,
Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas,
Para aumentar com isso a minha personalidade.

Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio
E a minha ambição era trazer o universo ao colo.
Como uma criança a quem a ama beija.

A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos.
Penso nisto, enterneço-me, mas não sossego nunca.

Sossega, coração inútil, sossega!
Sossega, porque não há nada que esperar,
E por isso nada que desesperar também...


A microscópio de desilusões
Findei, prolixos nas minúcias fúteis...
Minhas conclusões práticas, inúteis...
Minhas conclusões teóricas, confusões...

Seremos neste mundo apenas canetas com tinta
Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?

Imagens de jogos ou de paciências ou de passatempos-
Imagens da vida, imagens das vidas. Imagens da Vida.

Poesias de Álvaro de Campos-
Fernando Pessoa.

domingo, janeiro 13, 2008

Vida Privada no Brasil- Relações de Trabalho.

Todos "melhoram de vida".

Pais e mães ficam orgulhosos com seus filhos "formados", médicos, dentistas, engenheiros, jornalistas, advogados, economistas, administradores de empresa, publicitários etc.

São incontáveis as mulheres, antes mergulhadas na extrema pobreza do campo, que se tornaram empregadas domésticas, caixas, manicures, cabeleireiras, enfermeiras, balconistas, atendentes, operárias.
Incontáveis são também os homens que se converteram em porteiros, vigias, garçons, manobristas de estacionamento, mecânicos, motoristas de táxi.

O pai, a mãe, a educação dos filhos perseguem tenaz e sistematicamente a subida de renda e a elevação na hierarquia capitalista do trabalho.
O meio é a iniciativa individual exercida no duro mundo da concorrência.

A grande empresa privada passou a exigir um novo padrão de direção e de gestão, mais racionalizado, mais profissionalizado.
Com isso, firma-se de vez a valorização do engenheiro que desponta como símbolo da civilização urbano-industrial, em oposição ao bacharel.
E surgem as figuras do administrador de empresas- especializado em produção, em marketing, em finanças, em organização & métodos, etc, do economista, do atuário.
As diretorias, gerências e chefias vão se especializando, se multiplicando.
E vai aparecendo o profissional da publicidade, também no mais puro molde americano, junto com a escola de propaganda.

A passagem organiza-se pelo acesso aos direitos trabalhistas, garantidos pela legislação basicamente no primeiro governo de Getúlio Vargas: a jornada de 8 horas, férias remuneradas, proteção ao trabalho da mulher ou do menor, lei de acidenes do trabalho, indenização por dispensa, salário mínimo, auxílio-maternidade, criação da Justiça do Trabalho, etc.

Pela casa podemos reconhecer, imediatamente, de que classe social faz parte a família. Tem empregada doméstica? Quantas? Cozinheira, arrumadeira, babá, ou só uma, para todos os serviços? Olhemos o que há para comer. Arroz, feijão, farinha e macarrão? Ou há também carne, leite, ovos, queijos, presunto, legumes, maçãs, peras, morangos? E os móveis, como são? No banheiro, há cosméticos? Tem automóvel ou não? Tem telefone? Tem televisão? Tem máquina de lavar roupa? Tem liquidificador? Tem enceradeira? E os brinquedos do filho? A bola é de meia, de borracha ou de couro?
Quantas vezes a família vai ao cinema? E ao restaurante? E nas férias, para onde vão? Para uma casa de praia, para a casa da família, para a fazenda de amigos, para um hotel? Vão de avião?

Aliás, a via principal de transmissão do valor do progresso foi sempre, entre nós, a da imitação dos padrões de consumo e dos estilos de vida reinantes nos países desenvolvidos.

Quanto à educação, ela, aqui, não foi sempre encarada como um meio de ascensão social?
O postulado de que cada indivíduo é capaz de ação racional, de calcular vantagens e desvantagens ajustadas à realização de seus interesses materiais ou de seus desejos, isto é, o hommo economicus utilitário;
o pressuposto de que a concorrência entre indivíduos formalmente livres e iguais acaba premiando cada um segundo seus méritos e dons;
o princípio de que o jogo dos interesses individuais leva à harmonia social e ao progresso sem limites, isto é, de que o mercado é o estruturador da sociedade e o motor da história-
podem se impor graças à sua funcionalidade para o desenvolvimento do sistema econômico.


Houve, por outro lado, uma extraordinária massificação de certas profissões que eram, anteriormente, de qualificação média.
A massificação nos serviços e nos trabalhos de escritório, dando lugar ao nascimento de uma nova camada de trabalhadores comuns.
A ampliação do ensino fundamental, mesmo nas condições em que foi feita, criou uma oferta abundante de mão-de-obra apta a exercer postos de trabalho que praticamente só requeriam ler e escrever, e que se ampliavam rapidamente: balconistas, caixas de supermercado, datilógrafos, office-boys, telefonistas, caixas de banco.

Mesmo com salários baixos, o grosso dos trabalhadores comuns pôde se incorporar, ainda que mais ou menos precariamente, aos padrões de consumo moderno.

Mas existe ainda outra segmentação.
A gorjeta da manicure de rico é uma, a de pobre, se existir, é outra. Uma coisa é ser empregada doméstica de um alto executivo, outra a faxineira de um casal formado por um analista contábil júnior e uma secretparia também júnior.

Na grande empresa, e mesmo na média, as elevadíssimas margens de lucro abriram caminho, ainda, para uma espantosa elevação das remunerações das funções de direção, exercidas por executivos, gerentes, chefes, assessores bem situados. Diretores financeiros, comerciais, de recursos humanos, de vendas, de compras, de marketing, etc... Gerentes de produção, de crédito e cobrança, de organização, de loja, de tesouraria, de treinamento, de pesquisa de mercado, de contabilidade, de manutenção geral, etc.

A todos estes grupos dominantes, há que acrescentar os que estão alojados na cúpula do Estado: juízes, promotores, delegados, ministros, políticos, etc.

Desfrutando do gasto da elite, defrontamo-nos com uma camada de profissionais que prestam serviço, com grande proveito financeiro, ao corpo estressado e à alma atormentada dos endinheirados e de suas famílias: psicanalistas, psicólogos, astrólogos, fonaudiólogos, acumpuntores, pilotos de helicóptero, cardiologistas, prostitutas de luxo, cirurgiões plásticos, videntes, parapsicólogos, proprietários de prósperas academias de ginástica, de dança, de natação, donos de colégios ou universidade particulares, ou de cursos de línguas, especialmente a inglesa, esteticistas, massagistas, decoradores, dermatologistas, etc.

A americanização da publicidade brasileira tem um papel fundamental na difusão dos padrões de consumo moderno e dos novos estilos de vida. Destrói rapidamente o valor da vida sóbria e sem ostentação.

A nova classe média está, em geral, plenamente integrada nos padrões de consumo de massas, de alimentação, vestuário, higiene pessoal e beleza, higiene doméstica. O padrão de vida dessa nova classe média beneficia-se muito dos serviços baratos.
No Brasil, a empregada doméstica, o churrasco-rodízio ou a pizza são baratos porque o churrasqueiro e o pizzaiolo ganham pouco, o salão de beleza é barato porque a cabeleireira e a manicure ganham pouco, etc.
Esse tipo de exploração dos serviços reduz seu custo de vida e torna o dia-a-dia mais confortável que o da classe média dos países desenvolvidos.
A renda dos serviçais é contraditória com o nível de vida relativamente alto dos remediados.

O Brasil, que já chocou as nações civilizadas ao manter a escravidão até finais do século XX, volta a assombrar a consciência moderna ao exibir uma das sociedades mais desiguais do mundo.

Todos dos países desenvolvidos haviam sentido na carne os efeitos do capitalismo sem freios, descontrolado: as duas guerras mundias, a crise de 29, os horrores do nazi-fascismo. E existia ainda a competição entre o capitalismo e o "socialismo real". Formou-se então um consenso fundamental, que abrangia conservadores, comunistas, socialistas, trabalhistas: era necessário domesticar o capitalismo, neutralizar seus efeitos destrutivos.

Nos anos 90, o desemprego nas áreas metropolitanas cresceu assustadoramente.
Multiplica-se o número de camelôs, de vendedores ou pedintes situados nas esquinas das ruas mais movimentadas, do "trabalho" associado à distribuição de droga e o crime organizado.

Em contrapartida, assistimos à crescente imobilização do Estado, dilapidado pelas altas taxas de juros, afogado em dívidas contraídas para pagar outras dívidas, incapaz de levar adiante políticas de desenvolvimento ou políticas sociais.

A política tranforma-se também num negócio. As eleições tranformam-se num espetáculo de TV, comandados por marqueteiros sempre competentes em "mobilizar emoções",
nos meios de comunicação de massa protegidos por essa quase ficção que é, entre nós, a liberdade de informação.

Como não há justiça eficaz nem instituições sociais bem estruturadas, as pendências pessoais e os dramas pessoais são expostos e "resolvidos" na TV, nos programas "mundo cão",

Como não há alegria verdadeira é preciso fabricá-la, mesmo que seja às custas da "dança da garrafa", da "dança da bundinha", ou da "dança da manivela". Ou o uso do sentimentalismo fácil para criar emoções e a degradação do gosto musical.

A competição exarcebada, selvagem, transforma a violência num recurso cotidiano. Ela se manifesta no trânsito infernal das nossas grandes cidades poluídas, servas do automóvel, atravessa as relações de trabalho, permeia as carreiras, deforma a vida familiar,

A revalorização dos casamentos ou das uniões estáveis se fundou predominantemente num comportamento adaptativo, guiado pelo medo do sofrimento e aversão ao risco. Os brasileiros parecem não ousar querer o risco. Querem apenas não passar privação.

Os pais pouco definem seus papéis de educadores, percemem-no mais do que nada como "provedores", quer seja do conorto material como de afeto.

Durante um período relativamente longo, o presente tinha sido melhor do que o passado, e o futuro, melhor do que o presente.
Mas, progressivamente, a idéia de um melhor futuro individual vai se esfumando.
Isso se percebe facilmente na substituição da figura do cidadão pela do contribuinte e, especialmente, pela do consumidor.

Capitalismo Tardio e sociabilidade moderna- José Manuel Cardoso Mello e Fernando A. Novais.
História da Vida Privada no Brasil.

Vida Privada no Brasil - Novelas.

A TV capta, expressa e constantemente atualiza as representações de uma comunidade nacional imaginária.
Ironicamente, esse espaço público surge sob a égide da vida privada.
Não por coincidência, o programa de maior popularidade e lucratividade da televisão brasileira é a novela.

Identidades mascaradas, troca de filhos, pais desconhecidos, heranças repentinas, ascensão social via casamento estão presentes de maneira recorrente.

Há também espaço para "merchandising social" em novelas como Explode Coração (1995), que abriu espaço para a divulgação do trabalho das ongs e também para a presença de mães das crianças desaparecidas com cartazes que divulgavam as características de seus filhos, ou o Rei do Gado (1996), com suas referências ao Movimento dos Sem-Terra e a presença de dois senadores da República em velório do senador da ficção.

A primeira novela, ainda não diária, da televisão braileira, Sua Vida Me Pertence (1951), chamou atenção por um beijo ardente. Vinte anos depois o beijo ainda encarnava a sensualidade máxima das novelas.

Flertando com o universo do prazer, do sexo antes do casamento, livre de filhos e obrigações legais, da separação como saída para casamentos infelizes, com a legitimidade das segundas uniões, com vida profissional e independência financeira para a mulher,com tecnologias reprodutivas, as novelas foram sucessivamente atualizando representações da mulher, das relações amorosas e da família.

No premiado seriado Malu Mulher (1975), o orgasmo é insinuado pela primeira vez, por meio da mão fechada que se abre como em um espamo.

Novela é torcida.
Pesquisas de opinião, revistas especializadas em comentários e fofocas sobre as novelas, cadernos especiais de jornais diários, programas de rádio e de televisão, cartas de fãs, trilhas sonoras, grifes de roupa e anúncios comerciais com atores pertencentes ao elenco de novelas que estão no ar são algum dos mecanismos atuantes que alimentam todos os dias as conversas sobre a novela.

Muitos telespectadores assistem aos capítulos já tendo uma certa idéia do que vai acontecer. A dose reduzida de suspense não abala o interesse em verificar como exatamente vão acontecer as coisas.

Assuntos como aborto ou casais homosseuxais são percebidos como tabu por uns, mas não por outros.

A novela representa o cotidiano de uma sociedade mais branca e mais rica que a brasileira.
É como um fio invisível do qual poucos se orgulham mas que perpassa a sociedade e aponta um universo de segredos íntimos compartilhados. Ela oferece a visão indiscreta do cotidiano de uma certa classe média alta, urbana, modena, glamourosa e idealizada, tal como vista de fora por um estranho.
É um reflexo caricatural dos gostos e preocupaçõs que ganha estatuto de realidade; se torna referencial para escolha de móveis, para balizamento de opiniões, para o exercício do direito de julgamento.
Um fenômeno descrito por alguns como "catártico".

É como se no mundo virtual do espetáculo, as discriminações seculares de classe e raça pudesse enfim der redimidas, enquanto a segregação social, econômica e cultural segmenta e divide a sociedade brasileira, a televisão aponta essa possibilidade de conexão, tornando-se uma porta para o mundo "real", no que diz respeito à visibilidade.

Diluindo fronteiras- a televisão e as novelas no cotidiano- Esther Hamburger.
História da Vida Privada no Brasil.

Vida Privada no Brasil- Ditadura.

A participação de membros da classe média intelectualizada no conjunto das oposições foi, de todo modo, significativa. 4214 pessoas foram processadas durante o regime militar. Das 3698 cuja ocupação é conhecida, 906- praticamente uma em cada quatro, eram estudantes. (...)
Além disso, esse grupo deixou uma herança cultural rica e ainda viva no país.

Nesse ambiente, fazer oposição podia significar uma infinidade de coisas.
De fato, as formas de organização e o grau de envolvimento na atividade de resistência variava desde ações espontâneas e ocasionais de solidariedade a um perseguido pela repressão até o engajamento em tempo integral da militância clandestina dos grupos armados.
Assinalar manifestos, participar de assembléias e de manifestações públicas, dar conferências, escrever artigos, criar músicas, romances, filmes, peças de teatro, distribuir panfletos, fazer chegar à imprensa denúncias de tortura e assim por diante.

Testar os limites da ação permitida torna-se uma rotina comum: o que se pode escrever em uma coluna de jornal, o que se pode compor e cantar, o que se pode encenar ou ensinar sem atrair represálias pessoais, que grau de repressão enfrentará o protesto público.

De um lado, a rejeição da ordem ditatorial, o horror da tortura, o desconforto persistente com o cotidiano, o distanciamento com a maioria integrada à normalidade, cantando: "Eu te amo meu Brasil, eu te amo".
De outro lado, a proliferação de novas profissões e atividades bem remuneradas para quem tivesse o mínimo de formação, abrindo as portas à efetiva possibilidade de acesso a posições confortáveis na sociedade aquisitiva em formação.
Comprar Tv em cores, deixar a preto-e-branco para a empregada.

Os meios de comunicação de massa no Brasil passaram por profundas transformações. Em nenhum outro período a mídia modernizou-se tanto e tão rapidamente.

No jornalismo, falava-se muito em crítica "construtiva" e liberdade "com responsabilidade", duas estupendas amostras da sintaxe dos militares e escribas a eles fiéis.

A informação politicamente significativa saía, quando saía, desvitalizada, carregada de irrelevâncias, ironias e efeitos formais. O ceticismo cultivado com elegância comprazia-se especialmente em alfinetar o pensamento de esquerda.

No começo da década de 70, nas mesmas escolas e bares onde poucos anos antes de previa o fim da ditadura para breve e, quem sabe, a revolução para logo depois, falava-se baixo, olhando de lado, sobre prisões, torturas, desaparecimentos.

A prisão pois, era um acontecimento ao mesmo tempo previsto e surpreendente, uma ameaça incrustrada no cotidiano de cada um. O preço ficava incomunicável e totalmente a mercê dos captores. Na melhor das hipóteses, sairia de lá sem queimaduras, os dentes e as unhas no lugar, mas com a memória escalavrada pelas súplicas, urros e insultos que atravessavam grades e paredes.

Segundo Renato Tapajós: "Havia os que achavam que a prisão era a continuidade, sem mudança, do mesmo confronto que havia lá fora e que, portanto, cabia aos presos gerar constantes fatos políticos para intensificar o atrito com as forças de repressão.
Havia os que pensavam que a prisão mudava as condições de luta e que devíamos evitar o confronto e aproveitar a situação para estudar, planejar, refletir.
E havia os que pensavam que ali era o fim da linha e que não havia mais nada a fazer, senão ficar quieto, esperando o momento de voltar à rua".

Naturalmente, a prisão de mães, maridos, mulheres, irmãos, irmãs, filhos ou filhas tranformava a vida diária em pesadelo. Não foram raros os casos em que serviços de segurança tratavam de quebrar o silêncio dos militantes mais teimosos tomando coo refém, ameaçando ou até torturando um parente seu.

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Entre os estudantes, a política se entrelaçava com as relações amorosas, ajudando a racionalizar atrações e rejeições, e a justificar tanto os comportamentos ditos tradicionais quanto sua transgressão.
Boa parte dos jovens que entraram na universidade a partir do final dos anos 50 teve de se confrontar na pele e na alma com a questão da fidelidade e do sexo antes do casamento, em suma, o "amor livre", para usar uma expressçao que já então começava a virar clichê. Os questionamentos do desdenhosamente chamado "casamento burguês", tudo como supra-sumo da hipocrisia e da desigualdade de oportunidades eróticas entre os sexos.

As novas formas de conceber as relações amorosas, a vida em comum com a pessoa querida e a família que daí talvez resultasse estavam encharcadas de tensões, conflitos e ambigüidades.

A busca da verdade pessoal, por meio da psicanálise e das drogas, ou no extremo, da vida em comunidades alternativas, podia ter uma conotação de ter uma vida antiautoritária. Como num depoimento do livro de Gilberto Velho:

- Tudo muito moralista, castrador. Para mim, não há diferença entre um coronel de direita e um coronel de esquerda. A intolerância e o autoritarismo são os mesmos. O que vale pra mim atualmente e a tua liberdade individual assumida, vivenciada corajosamente. É preciso ter coragem para assumir a vida da gente, sem tutelas políticas. O momento de verdade em que você está sozinho diante de você mesmo, é esse momento de que as pessoas têm medo e se protegem com capas- comunista, fascista, marxista, liberal, sei lá.

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O cotidiano da oposição de classe média ao regime militar- Maria Herminia Tavares de Almeida e Luiz Weis.
História da Vida Privada no Brasil.

Vida Privada no Brasil- Violência.

Em algumas cidades, o crime e a violência são como um artifício ou um idioma para se pensar sobre o "outro".

Quando se culpa a presença de nordestinos em São Paulo ou de pobres negros e favelados em outras capitais, ou ainda quando se transfere a responsabilidade de uma cidade para a outra, como foi o caso das imagens do Rio de Janeiro veiculados na impensa de outros estados.

O quadro é assim, paradoxal. Os que mais padecem enquanto vítimas da violência difusa e privatizada são também os mais apontados como os seus agentes.
A pobreza é determinante: ora da vitimização, ora da ação violenta.

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A caracterização da sociedade do pós-guerra caracteriza-se pela importância cada vez maior das atividades de lazer e consumo na definição de novas identidades.

As práticas dos hábitos mais imediatos na busca por prazer, seja no jogo, nas drogas, ou na diversão, ganham maior importância na vida de vários setores da população, especialmente os mais jovens, o que torna lucrativo o investimento nos negócios que exploram o seu consumo, organizando atividades criminosas em torno das que são proibidas pela lei.

Se a riqueza se acumula no topo da pirâmide, os ricos invisíveis dos desastres ecológicos, do desemprego, dos efeitos perversos da revolução sexual, dos remédios falsificados, adulterados e fora de prazo, assim como o uso abusivo das substâncias chamadas "drogas" e proibidas, ou mesmo de armamentos portáteis mas extremamente eficazes na destruição.

Por isso, é tão difícil entender a violência e lidar com ela: ela está em toda parte, não tem atores sociais permanentemente reconhecíveis, nem "causas" facilmente delimitáveis e inteligíveis.

A inflação galopante, da qual o país padeceu até 1994, retirou a credibilidade do governo, pois sempre foi considerada um "roubo" pelos assalariados, fornecendo justificativas "todos estão roubando". Com o mesmo imaginário, outros começaram a cometer crimes econômicos cada vez mais ousados, auxiliados pela dificuldade crescentes à contabilidade e ao controle sobre os orçamentos públicos provocados pela inflação.
Tal quadro monetário, portanto, facilitou a corrupção e a lavagem de dinheiro, tão necessárias para o estabelecimento das conexões criminosas.

Não basta explicar o envolvimento com o crime por meio da vontade ou necessidade iniciais de ajudar a família na complementação de renda ou em função da falta de oportunidade no mercado de trabalho.

"Pela sensação", "pela emoção", "para fazer onda", "para aparecer no jornal".
O crime se justifica por conta de rixas infantis, por um simples olhar atravessado, por uma simples desconfiança de traição ou ainda apenas porque estavam lá no momento do tiroteio.

Se uma das funções das guerras entre nações foi resolver a questão do excesso populacional dos países envolvidos, essa nova guerra privatizada parece contribuir para eliminar uma parcela cada vez mais considerada dos chamados ora "excedentes", ora "marginais", ora "excluídos".

A ilusão do "dinheiro fácil", que também atrai tantos jovens pobres, revela a sua outra face: o jovem que se encaminha para a carreira criminosa enriquece, não a si próprio, mas a outros personagens, que quase sempre permanecem impunes e ricos.

Como o tema das drogas tem forte carga moral e emocional, são feitos discursos que apresentam a droga como diabólica para absolver o acusado de usá-la ou traficá-la, justificando que é pessoa confiável, e que não deve ter envolvimento com tal substância nefasta.

Nesse novo cenário, a pobreza adquire novos significados, novos problemas e novas divisões.
A privação não é apenas de bens materiais. A privação é material e simbólica a um só tempo. E a exclusão tem que ser entendida também nesses vários planos.

Para não dizer que eu não falei de samba: os enigmas da violência no Brasil.- Alba Zaluar
História da Vida Privada no Brasil

Vida Privada no Brasil- Cor e Raça.

Numa pesquisa realizada em 1988, em São Paulo, 97% dos entrevistados afirmaram não ter preconceito e 98%- dos mesmos entrevistados- disseram conhecer outras pessoas que tinham, sim, preconceito.

"Preto rico no Brasil é branco, assim como branco pobre é preto", diz o dito popular.

No I Congresso Brasileiro de Eugenia, que aconteceu em 1929, o antropólogo Roquete Pinto previa um país cada vez mais branco: em 2012 teríamos uma população composta por 80% de brancos e 20% de mestiços, nenhum branco, nenhum índio.

Paralelamente ao processo que culminaria com a libertação dos escravos, iniciou-se uma política agressiva de incentivo à imigração ainda nos últimos anos do Império, marcada por uma intenção também evidente de "tornar o país mais claro".

.......

A princípio comida de escravos, a feijoada se converte em prato nacional, carregando consigo a representação simbólica da mestiçagem.
A capoeira- reprimida pela polícia no final do século passado e incluída como crime no Código Penal de 1890- é oficializada como modalidade esportiva nacional em 1937.
Também o samba passou da repressão à exaltação de "dança de preto" a "canção brasileira para a exportação".
Da mesma maneira, a partir de 1938 os atabaques do candomblé passam a ser tocados sem interferência policial.
Até o futebol, esporte de origem inglesa, foi progressivamente associado à negros, sobretudo a partir de 1923, quando o Vasco da Gama passou a ser o primeiro clube a aceitar negros em sua equipe.
O momento coincide, ainda, com a escolha de Nossa Senhora da Conceição Aparecida para padroeira do Brasil.

Se no exterior made in Brazil é sinônimo da reprodução de nossos exóticos produtos culturais mestiços, dentro do país o tema é um tabu.

Uma das especifidades do preconceito vigente no país, é, como vimos, seu caráter não oficial. No entanto, assim como silêncio não é sinônimo de inexistência, muitas são as manifestações do racismo que podem ser observadas.

"Se é negro é mais perigoso; se é branco talvez não seja tanto". No preenchimento de formulários, quando o indiciado tinha o direito de definir sua cor, branqueava sempre a resposta: "Sou moreno claro, quase branco".

Afinal, o que quer dizer um país onde 50% da população negra tem uma renda inferior a 2 salários mínimos? Como entender a democracia racial onde só 4% da população negra chega à universidade?

Nem preto nem branco, muito pelo contrário- cor e raça na intimidade- Lilia Moritz Schwacz.

Vida Privada no Brasil- Religiões

Os sinais da transformação? A evidente ampliação e diversificação do "mercado dos bens de salvação". Igrejas gerenciadas abertamente como verdadeiras empresas.
Os modernos meios de comunicação de massa postos a serviço da conquista das almas.

Os indivíduos são julgados em condição de escolher livremente sua própria religião, diante de um mercado em expansão.

Ao mesmo tempo, a busca do vigor interior da crença, da experiência de exaltação da fé e do transporte espiritual diante do milagre, como diretriz para a recuperação de uma dimensão privada da experiência religiosa, resultaria, no interior da Igreja, numa outra aproximação a contrapelo com o pentecostalismo, representada pelo fortalecimento e progressiva expansão da Renovação Carismática.

Intelectuais e artistas do eixo Rio-São Paulo se encarregariam de tornar conhecidas por todo o Brasil as referências do candomblé da Bahia, ao mesmo tempo que, nos próprios meios religiosos Afro-brasileiros se iniciaria o movimento de "retorno às origens", invertendo o processo de legitimação que levara os candomblés a se diluir na versão mais soft da umbanda. Só mais tarde as próprias elites intelectuais e políticas baianas reinventarão por inteiro a "Bahia negra", com os afoxés carnavalescos, o Olodum e a axé music.

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A arquitetura monumental das igrejas altera as percepções convencionais de espaço, luz e sombra e manipula a orientação urbana monopolizando os relevos, controlando as perspectivas e presidindo as praças.

Trata-se da sacralização do tempo, que todo rito religioso efetua. Em toda sociedade o nascimento, a entrada na vida adulta, o casamento ou a morte dão lugar a ritos de passagem, cujo final é quase sempre celebrado festivamente.

Batizado, crisma, primeira comunhão, casamento, missa de bodas de prata e de ouro, de corpo presente, de sétimo dia, de mês, de ano e de aniversário, são cerimônias que, no catolicismo, ungem com benção da sacralidade esses momentos de ruptura e transição.

Talvez não se possas distinguir aqui com precisão as fronteiras entre o sagrado e o profano, o fervor íntimo da devoção e a mais pura expansão da alegria festiva.

Disso são exemplos as muitas manifestações culturais tidas como "folclóricas" e cujo fundamento religioso é na maior parte das vezes ignorado pelos espectadores que assistem aos belos espetáculos. Batuques, congadas, moçambiques, catopês, folias de Reis e do Divido, os bois-bumbás e os pastoris nordestinos, nas festas em louvor aos santos juninos e nos autos de Natal.

Ao mesmo tempo, porém, no fulcro da tradição das religiosidades no Brasil, os ritos coletivos podem facilmente se transformar também em celebrações domésticas, de cunho familiar.
O Natal, apesar de tudo, ainda comemora o nascimento de Cristo, a Páscos, sua ressurreição, e a celebração do Dia das Mães não é por acaso no mês de maio, mês de Maria, mãe de Deus e dos homens.

A freqüência dominical ou a participação nas grandes celebrações do calendário litúrgico católico, que desde os tempos coloniais foram a ocasião de exibição de prestígio social, riqueza e poder, e que conservaram ainda no meio rural uma importante função de sociabilidade, perdem progressivamente sua imortância, à medida que avança o processo de urbanização e modernização da sociedade brasileira.

Pouco espaço sobra ao valor do recato feminino, pilar da moralidade familiar católica há pouco mais de quatro décadas, e que vai desaparecendo aos poucos numa cidade da minissaia, das academias de ginástica e musculação, do top less, do Disk-Erótica.

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No caso da Igreja Universal, mediante a compra sistemática de edificações de porte em lugares públicos de notória visibilidade, como cinemas, teatros e supermercados desativados, para neles instalar locais de culto que atraem um grande número de fiéis, chamando atenção por sua presença ostensiva.

Os mais inconfessáveis sentimentos, os mais profundos temores ou as ações mais cuidadosamente encobertas- o ódio aos pais ou a um irmão, a incerteza quanto à identidade sexual, uma relação perversa, por exemplo- são proclamados diante de um público que, graças à mídia, se multiplica em miríades de olhos e ouvidos que vêem e não se escandalizam, escutam e não condenam, porque não se encontram perante algo pelo qual o indivíduo é responsável, mas apenas diante de mais um espetáculo em que o maligno revela suas múltiplas faces, no desenrolar da sessão de exorcismo.

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O evento desportivo na disputa do Campeonato Mundial de futebol recria no plano de uma sacralidade transfigurada o sentido íntimo do pertencimento e da celebração, assim como as escolas de samba do Rio de Janeiro, conclamando que vai entrar na avenida a nação mangueirense, do Salgueiro, da Viradouro ou da Beija-Flor, assim também a nação corintiana, palmeireise, do Flamengo, do Grêmio ou do Atlético.

As figuras do Sagrado: entre o público e o privado. Maria Lúcia Montes.
História da Vida Privada no Brasil.

sexta-feira, janeiro 04, 2008

Teoria Geral das Neuroses- Ajustamento?

Na verdade, há casos que até mesmo o médico deve admitir que um conflito terminar em neurose constitui a solução mais inócua e socialmente mais tolerável.

Ele sabe que não há apenas miséria neurótica no mundo, mas também, sofrimento real, irremovível.
Portanto, se podemos dizer que sempre que um neurótico enfrenta um conflito ele empreende uma fuga para a doença, assim mesmo devemos admitir que, em determinados casos, tal fuga se justifica plenamente, e o médico haverá de se retirar, silencioso e apreensivo.

Como quando um operário vem a sofrer uma mutilação decorrente de um acidente de trabalho. Esse homem não pode mais trabalhar, aleijado, e ganha sua pensão por invalidez. Se os senhores pudessem pôr fim à mutilação, poderiam fazer, inicialmente, com que ele ficasse sem seu meio de vida; surgiria então a questão de saber se ele ainda seria capaz de retomar ao seu trabalho anterior.

Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise.
Teoria Geral das Neuroses II- Sigmund Freud.

Teoria Geral das Neuroses- Arte.

Existe um caminho que conduz da fantasia de volta à realidade- isto é, o caminho da arte.

A constituição do artista provavelmente conta com uma intensa capacidade de sublimação e com determinado grau de frouxidão nas repressões, o que é decisivo ara um conflito.
Um artista encontra, porém, o caminho de retorno à realidade da maneira expressa a seguir.

Ele não é o único que leva uma vida de fantasia.
O acesso à região eqüidistante da fantasia e da realidade é permitido pelo consentimento universal da humanidade, e todo aquele que sofre privação espera obter dela alívio e consolo.
Entretanto, para aqueles que não são artistas, é muito limitada a produção de prazer que se deriva das fontes de fantasia.
A crueldade de suas repressões força-os a se contentarem com esses estéreis devaneios aos quais é permitido o acesso à consciência.

Um homem que é um verdadeiro artista, tem mais coisa à sua disposição.
Em primeiro lugar, sabe como dar forma a seus devaneios de modo tal que estes perdem aquilo que neles é excessivamente pessoal e que afasta as demais pessoas, possibilitando que os outros compartilhem do prazer obtido nesses devaneios.
Ademais, possuí o misterioso poder de moldar determinado material até que se torne imagem fiel de sua fantasia; e sabe, principalmente, pôr em conexão uma vasta produção de prazer com essa representação da fantasia.

Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise.
Teoria Geral das Neuroses II- Sigmund Freud
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Teoria Geral das Neuroses- Devaneios

O ego, como sabem, é, pela pressão da necessidade externa, educado lentamente no sentido de avaliar a realidade e de obedecer ao princípio de realidade; no decorrer desse processo, é obrigado a renunciar, temporária ou permanentemente, a uma variedade de objetos e fins aos quais está voltada sua busca de prazer.

Contudo, é sempre difícil renunciar ao prazer; não se pode deixar levar-se a fazê-lo sem alguma forma de compensação.

Todo desejo tende, dentro de pouco tempo, a afigurar-se em sua própria realização; não há dúvida de que ficar devaneando sobre imaginárias realizações de desejos traz satisfação, embora não interfira com o conhecimento que se trata de algo não-real.

'Simplesmente não podemos passar sem construções auxiliares', conforme disse, certa vez, Theodor Fontane.

As mais conhecidas produções da fantasia são os chamados 'devaneios', satisfações imaginárias de desejos ambiciosos, megalomaníacos, eróticos, que florescem com tanto mais exuberância, quanto mais a realidade aconselha modéstia e contenção.
A essência da felicidade da fantasia- tornar a obtenção de prazer, mais uma vez, livre da aprovação da realidade- mostra-se, inequivocamente nesses desejos.

Essas fantasias gozam de um certo grau de tolerância, não entram em conflito com o ego, por mais fortes que possam ter sido os contrastes entre eles.
Mas se a catexia da fantasia é de tal modo aumentada, que eles começam a estabelecer exigências e desenvolvem uma pressão no sentido de se tornarem realizadas. Isso torna inevitável o conflito.

Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise.
Teoria Geral das Neuroses II- Sigmund Freud.

Teoria Geral das Neuroses- Realidade?

Descobrimos, há algum tempo, que os neuróticos estão ancorados em algum ponto do seu passado, no qual sua libido não se privava de satisfação, no qual eram felizes.

Pois bem, a surpresa reside em que essas lembranças nem sempre são verdadeiras. Com efeito, não são verdadeiras na maioria dos casos, e, em alguns, são o oposto direto da verdade histórica.
Conforme verão, essa descoberta está fadada, mais que qualquer outra, a desacreditar tanto a análise, que chegou a tal resultado, como os pacientes, em cujas declarações se fundamentam a análise e todo o nosso entendimento das neuroses.

Na verdade se está diante de uma situação em que as experiências construídas ou recordadas na análise são, às vezes, indiscutivelmente falsas e, às vezes, por igual, certamente corretas, e, na maior parte dos casos são situações compostas de verdade e de falsificação.

Após alguma reflexao facilmente poderemos entender o que é que existe nessa situação que tanto nos confunde. É o reduzido valor concedido à realidade, é a desatenção à diferença entre realidade e fantasia.
Somos tentados a nos sentir ofendidos com o fato de o paciente haver tomado nosso tempo com histórias inventadas.
A realidade parece-nos ser algo como um mundo separado da invenção, e lhe atribuímos um valor muito diferente.

Ademais, também o paciente enxerga as coisas por esse prisma, em seu pensar normal.
Quando apresenta o material que conduz desde os sintomas às situações de desejo modeladas em suas experiências infantis, ficamos em dúvida, no início, se estamos lidando com a realidade e com a fantasia.

Levará um bom tempo até poder assimilar a nossa proposição de que podemos igualar fantasia e realidade; e não nos importaremos, em princípio, com qual seja esta ou aquela das experiências que estão sendo examinadas.

Também essas fantasias possuem determinada realidade. Subsiste o fato que o paciente criou essas fantasias por si mesmo, e essa circunstância dificilmente terá, para a sua neurose, importância menor do que teria se tivesse realmente experimentado o que contêm suas fantasias. As fantasias possuem realidade psíquica, em contraste com a realidade material, e gradualmente aprendemos a entender que, no mundo das neuroses, a realidade psíquica é a realidade decisiva.

Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise.
Teoria Geral das Neuroses II- Sigmund Freud.

Teoria Geral das Neuroses- Libido

Não é fácil delimitar aquilo que abrange o conceito de 'sexual'. Como sexual tudo aquilo que, com vistas a obter prazer, diz respeito ao corpo e, em especial aos órgão sexuais de uma pessoa do sexo oposto, e que, em última instância, visa à união dos genitais e à realização do ato sexual. Algo que reúne uma referência ao contraste entre os sexos, à busca de prazer, à função reprodutora e à característica de algo que é impróprio e deve ser mantido em segredo.

Devemos também ter em mente que os impulsos sexuais, em particular, são extraordinariamente plásticos, se é que posso expressar-me dessa maneira.
Um deles pode assumir o lugar do outro,um pode assumir a intensidade do outro; no caso de a realidade frustrar a satisfação de um deles, a satisfação de outro pode proporcionar compensação completa.

A deslocabilidade e a facilidade de aceitar substitutos deve atuar poderosamente contra o efeito patogênico da frustração.

Mas a plasticidade ou livre mobilidade da libido não se mantém absolutamente preservada em todas as pessoas, e a sublimação jamais tem a capacidade de manejar senão determinada parcela de libido; acresce-se o fato de que muitas pessoas são dotadas de uma escassa capacidade de sublimar.

A tenacidade com que a libido adere a determinadas tendências e objetos - o que se pode descrever como 'adesividade' da libido- surge como fator independente, e suas causas são praticamente desconhecidas; contudo, sua importância das neuroses certamente não mais subestimaremos.

O conflito surge pela frustração, em conseqüência da qual a libido, impedida de encontrar satisfação, é forçada a procurar outros objetos e outros caminhos.
A precondição do conflito é que esses outros caminhos e objetos suscitem desaprovação em uma parte da personalidade.

Uma parte da personalidade defende a causa de determinados desejos, enquanto outra parte se opõe a eles e os rechaça. Sem tal conflito não existe neurose.

A transição do princípio de prazer para o princípio de realidade é um dos mais importantes passos na direção do desenvolvimento do ego.

É como se a totalidade de nossa vida mental fosse dirigida para obter o prazer e evitar o desprazer- que é automaticamente regulada pelo princípio do prazer. Porém, com a frustração advinda da realidade, a tarefa de evitar desprazer vai se tornando mais importante que a de obter prazer.

Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise.
Teoria Geral das Neuroses I- Sigmund Freud.

Teoria Geral das Neuroses- Sintomas

Toda descoberta é feita mais de uma vez, nenhuma se faz de uma só vez.

A análise das ações sintomáticas não lhes diz nada que já não soubessem antes: a tese de que elas não são ações casuais, mas que tiveram um motivo, um sentido, e uma intenção, que se localizam num contexto psíquico específico e que informa, mediante uma pequena indicação, acerca de processos psicológicos mais importantes.

A única coisa tangível que resta da doença, depois de eliminados os sintomas, é a capacidade de formar novos sintomas.

Se não se pode eliminar um delírio mediante uma referência à realidade, então sem dúvida ele não se originou da realidade.

Devemos contentar-nos com supor tratar-se de algo sem importância, ou de um capricho, algo que não se pode explicar por quê aparece de um ou de outro tipo?

O delírio seria em si, de certa maneira desejado, uma espécie de consolação.

Na neurose obsessiva, o paciente obriga-se, contra sua vontade, a remoer pensamentos e a especular, como se tratasse dos seus mais importantes problemas vitais.
Tarefas como ir deitar, lavar-se, vestir-se ou andar a pé, se tornam, contudo, tarefas extremamente fatigantes e quase insolúveis.

Existe uma coisa que ele pode fazer: realizar deslocamentos, trocas, pode substituir uma idéia absurda por outra um pouco mais atenuada, em vez de um cerimonial pode-se realizar outro.

Ao repetir muitas vezes um ritual sem sentido vemos que não é só um modo de repetir certa cena, mas de continuá-la e ao mesmo tempo corrigi-la, de conserta-la.

Mas por mais que repita seu ato obsessivo, o paciente não sabe que este ato deriva de alguma experiência que tenha passado, nem qual foi essa experiência.

É como se esses pacientes não tivesse findado com a situação traumática, como se ainda estivessem enfrentando-a como tarefa imediata ainda não executada; e levamos muito a sério está impressão.

Uma parte da personalidade defende a causa de determinados desejos, enquanto outra parte se opõe a eles e os rechaça. Sem tal conflito não existe neurose.

As duas forças em luta encontram-se novamente no sintoma e se reconciliam, por assim dizer, através do acordo representado pelo sintoma formado. E, por essa razão, que o sintoma é tão resistente, é apoiado por ambas as partes em luta.

Assim, o sintoma emerge como um derivado múltiplas-vezes-distorcido da realização de desejo libidinal inconsiente, uma peça de ambigüidade engenhosamente escolhida, com dois significados em completa contradição mútua.

A neurose apareceria em virtude da incapacidade de lidar com uma experiência cujo tom afetivo foi excessivamente intenso.

A construção de um sintoma é o substituto de alguma outra coisa que não aconteceu.

Ao analisar cada sintoma histérico isoladamente, descobre-se, geralmente, toda uma seqüência de impressão de eventos que, quando tornam a emergir, são descritos explicitamente pelo paciente como tendo sido esquecidos até então.

A tese, segundo a qual os sintomas desaparecem quando se fazem conscientes seus motivos predeterminantes inconscientes, tem sido confimada por todas as pesquisas subseqüentes, embora nos defrontemos com as mais estranhas e inesperadas complicações ao tentarmos pô-la em prática.

Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise.
Teoria Geral das Neuroses I- Sigmund Freud.