terça-feira, janeiro 18, 2011

Masculinidades na Revista Vip Exame

Revistas como Placar, especializadas em esportes; Trip, com uma pauta de esportes radicais, música e comportamento jovem; as tradicionais revistas eróticas como Palyboy, Ele Ela, Sexy, Hustrler, entre outras, com a tradicional ênfase na nudez feminina; e uma diversidade de títulos econômicos, como Exame, Você S.A., Info Exame, Isto É Dinheiro, que têm nos homens seu principal público.

Diante de tantos títulos assim enumerados, o leitor pode ser levado a pensar que se torna cada vez mais difícil definir pontos em comum entre propostas tão díspares.

Ou seja, além de seres “homens”, não há necessariamente muito em comum entre o leitor de Palyboy, Placar ou Exame. Aparentemente, num mercado vibrante e concorrencial, no qual revistas nascem e se multiplicam constantemente em busca de seu nicho específico, cada vez mais os estilos de vida diferenciados de cada leitor são uma força desagregadora da noção de “masculino” como unificadora dos homens.
A questão que me orienta neste trabalho, portanto, é exatamente esta: tendo em vista esse contexto de um mercado de revistas masculinas pluralizado e diversificado, a idéia de masculinidade como um atributo que une todos esses leitores ainda faz sentido? Será que, ao analisar as diversas revistas voltadas a esse público, perceberemos que não há nada nelas que recoloque o masculino como um fator de unificação? Ou, pelo contrário, apesar da grande diversidade, poderemos falar sim em um substrato comum de masculinidade, que é de certa forma recorrente em todas as propostas editoriais?
Para realizar este estudo, não fiz um levantamento exaustivo de todo o mercado de revistas masculinas. Concentrei-me em três delas, que apresentam propostas editoriais consideradas discrepantes (pelos próprios sujeitos que as produzem) daquilo que é considerado hegemônico pelo mercado.
A Vip Exame, como buscarei demonstrar, apesar de ser uma tentativa de alargamento das possibilidades do “masculino” na representação, recoloca uma oposição fundamental entre masculino/feminino e entre homossexual/heterossexual. Da mesma forma o faz a revista gay Sui Generis, na qual, além disso, vemos uma tradução para o contexto brasileiro de pressupostos de uma identidade gay norte-americana, ou seja, um público gay relativamente uniforme e coeso em torno de alguns atributos fundamentais, em oposição aos heterossexuais. A revista Homens se destaca desse conjunto por ser a única que não trabalha de forma clara com nenhuma oposição fixa entre homossexual/heterossexual. Nessa revista, os atos sexuais e os sujeitos neles envolvidos transitam de forma muito mais fluida entre essas categorias. O que não significa que ela seja de alguma maneira “libertária” ou mais arrojado do que as outras.
Como procurarei aclarar, se as revistas VIP e Sui Generis trabalham com recortes de classe, de gênero e de idade bastante monolíticos, valorizando somente o homem jovem, de classe média, branco, de corpo saudável e recolocando divisões entre masculino/feminino e hetero/homossexual, a revista Homens, por sua vez, reonstrói uma ordem de gênero eminentemente hierárquica, em que o masculino domina o feminino, o ativo domina o passivo, como princípios recorrentes.
O fenômeno da fragmentação do mercado editorial em nichos diferenciados de leitores não leva necessariamente à desconstrução de algumas distinções extremamente arraigadas no nosso pensamento.
O anunciante que deseja atingir aquele leitor em potencial irá anunciar na revista feita sob medida para receber seu anúncio. As redações trabalha, portanto, em larga medida, com potencialidades, quase nunca tendo clareza de quem lê a revista de fato ou se ela é consumida a partir dos objetivos traçados pelos jornalistas.
Segundo Mira, a partir dos anos 70, a Abril busca uma mudança nas suas práticas de produção, monitorando cada vez mais o leitor. Assim, as suas revistas buscarão, progressivamente consolidar uma imagem específica, que fale a um certo público e não outro. Surge a percepção no interior do mercado publicitário, de que essa especialização é necessária e mais rentável em termos da eficiência da propagando.

Mencionei a Playboy por ser ela constantemente citada pelos editores da VIP como seu contraponto principal dentro do mercado. Ao buscarem fazer uma revista masculina diferente, tinham a Playboy como referência principal desse tipo de publicação, do que seria a proposta tradicional de uma revista masculina. Ensaios de nudez, um machismo mais exacerbado, uma proximidade maior com a pornografia era características das quais a VIP queria se afastar por serem mais próprias da Playboy.
Segundo Mira (1997), a Playboy se firmou a partir de 1975, quando é lançada no país pela Editora Abril, como o novo padrão para as revistas masculinas. Nessa época, ainda era chamada de Homen, devido à censura à marca Playboy.

Pornografia entendida como o discurso por excelência veiculador do obsceno: daquilo que se mostra e deveria ser escondido. A exibição do indesejável: o sexo fora do lugar. Espaço do proibido, do não dizível, do censurado: daquilo que não deve ser, mas é. A pornografia grita e cala, colocando lado a lado o escândalo e o silêncio. É nesse jogo de esconde-esconde que encontramos o seu sentido, mas é também por causa dele que se torna difícil defini-la.
Todas abordam as imagens eróticas como consumíveis, de certa forma isentas de emoção, bastante padronizadas em sua apresentação do sexo, seja em imagens masculinas ou femininas.

Vip
Apesar de o sexo ainda ser o elemento mais importante do conteúdo das reportagens e mulheres serem mostradas em profusão, elas nunca aparecem totalmente nuas.
A redação é composta de dez membros (quatro homens e seis mulheres), o que por si só já é interessante por trata-se de uma revista masculina cujos produtores em sua maioria são mulheres. Mesmo assim, predomina uma estrutura hierárquica em que os homens retêm cargos superiores.
Já uma revista gay apresenta um questionamento fundamental da masculinidade: o desejo do homem não precisa ser necessariamente por mulheres; ao contrário, pode se apresentar múltiplo e indefinido.
G Magazine: desde que dois famosos jogadores de futebol do time paulista Corinthians (dinei e vampeta) decidiram se despir completamente para a revista, algo antes impensável para celebridades, a mídia vem dando destaque e incorporando a existência desse periódico com maior facilidade, anternado o contexto de invisibilidade e boicote que essas publicações sofriam pelo mercado mais amplo.
Uma questão fundamental na comparação entre as duas revistas são as suas diferentes perspectivas do que significa ser gay com relação ao preconceito, à necessidade de “assumir-se gay”, ou “sair do armário”, assim como em relação à dinâmica do desejo homoerótico. Enquanto a Sui Generis é muito mais militante no tocante à auto-estima, assumindo uma postura bem próxima aos movimentos gays norte-americanos de busca de uma identidade unívoca e coesa, a Homens trata do desejo de forma muito mais fluida.
Cerca de 40% das matérias de cada edição são fotos e os trabalhos em que predomina o texto não passam de 20%. É uma revista, portanto, muito mais vista do que lida.
A publicidade aqui atua com todo seu poderia econômico, ainda que com fins comerciais, com base na luta contra o preconceito. Pos mais questionáveis que possam ser as boas intenções desse anunciante, elas são muito mais explícitas do que em qualquer propaganda existente em nosso país. Não nos esqueçamos também de que qualquer revista, seja nacional ou estrangeira, gay ou heterossexual, necessita de um bom contingente de público leitor para atrair anunciantes. A questão econômica é implacável: uma publicação que não mobiliza um público potencialmente consumidor não obtém anunciantes.

SG Press
Com exceção de uma única mulher, todos os jornalistas eram homens gays.
Na publicação gay, o tema do preconceito é fundante. Mesmo não se tratando de um veículo militante ligado a um grupo político, a revista assume uma espécie de “militância de mercado”, trabalhando positivamente a auto-estima do leitor.
A fim de dar conta de como as revistas analisadas produzem suas representações sobre a masculinidade, busquei conjugar a análise do conteúdo com a observação da dinâmica de trabalho nas duas redações. A combinação de ambas as estratégias de pesquisa permite melhor compreender como são produzidas as mensagens impressas, como os repórteres interagem e como as relações intersubjetivas no contexto da produção interferem na mensagem final.
Esta questão é importante, pois, como mostrarei adiante, as diretrizes que norteiam o trabalho dos repórteres são objetos de embates, conflitos e discussões constantes dentro da redação. Esses conflitos não são livres, ou seja, os agentes não têm todos o mesmo poder de decisão e de interferência sobre o que será publicado. A imagem de uma equipe coesa e unificada em torno de uma proposta editorial está longe daquilo que pude observar nas redações.
A questão do leitor se associa a um outra, quando penso no tipo de trabalho específico realizado na redação, o trabalho jornalístico. Durante as minhas observações, quando estava interessado em perceber relações entre os repórteres e suas representações de gênero, na verdade o que eles buscavam o tempo todo era fabricar uma boa matéria, dentro do padrões do que seria considerado “bom jornalismo”, seguindo as regras específicas daquele campo. Para chegar aonde eu queria, que eram as percepções de gênero que orientam os repórteres, não podia basear-me diretamente em seus textos, pois não havia um discurso elaborado sobre a masculinidade, era produto de um embate de uma multiplicidade de discursos, dissonantes, provenientes dos mais variados autores, que colidiam e interagiam na chamada prática jornalística. Ao tentarem fazer uma boa reportagem, esses agentes, imbuídos de suas representações plurais de gênero e recorrendo às mais diversas fontes para apoiar suas afirmativas, acabavam por constituir materiais culturais, as reportagens, reveladoras de uma coerência própria, não revelando o processo de produção das mensagens e os conflitos nele envolvidos.
Claro que há textos que explicitamente apresentam uma certa ideologia de homem ou do que deva ser a masculinidade, ou que expressam posições específicas. Mas não se deve negligenciar que a maioria dos materiais ali presentes foi feita por vários atores, que nem sempre concordam sobre o que seja ou deva ser o homem. Eles tentavam apenas seguir as normas do “bom jornalismo”.
Uma redação não representa um grupo uniforme de opiniões e nem todos estão de acordo quanto ao que deve ser publicado.
Outro debate recorrente na redação, que demonstra a preocupação constante com a “construção do leitor”, era sobre como deveria se portar um homem, qual masculinidade deveria ser debatida e promovida nas páginas da revista.(...) Esse exemplo mostra como cada profissional, ao ter uma visão ligeiramente destoante do que é o homem (e do que ele deve buscar ser), desloca também a implementação das diretrizes editoriais, que não definem quais roupas o homem deve usar ou quanto dinheiro deve gastar.
A influência do material estrangeiro, como fui descobrindo, é constante, desde a concepção do periódico até o trabalho diário de elaborar reportagens, ensaios fotográficos e temas para discussão naquele número.
A discussão sobre a “garota da capa” ocorre meses antes de a matéria ser publicada. Isso porque ela é o primeiro chamativo da revista, aquele que captura o leitor nas bancas. Ter na capa a foto certa faz toda a diferença na hora de calcular as vendas.
O interessante, do ponto de vista etnográfico é, portanto, que a dinâmica de trabalho desse periódico se pauta também sobre um leitor imaginado, sobre sua representação. As discussões na reunião de pauta da VIP, por exemplo, eram bastante fixadas ao tema sexo; era de suma importância para os repórteres e editores definir a “atitude” da revista frente a esse assunto; quanto espaço lhe deveria ser destinado, qual a linguagem a ser utilizada, até onde se deve ir com a liberalidade no seu tratamento, qual deve ser o “tom” utilizado ao abordar assuntos a eles relacionados. Todo o trabalho conjunto na reunião de pauta estava voltado para afinar o grupo em torno de uma proposta mais ou menos comum de atitude frente à revista, dadas as características específicas do leitor visado.
Uma função do jornalista ao elaborar representações sobre o leitor, inspirando-se em publicações estrangeiras: a de tradutor cultural. De alguma forma, esses profissionais operam uma investigação dos imaginários brasileiros da masculinidade ao pensar quem é o seu público-alvo, do que ele gosta e quais são seus anseios.
O “leitor da VIP”, que é real e está empiricamente dado, é também criado no processo mesmo de produção da revista, que tenta supostamente agradá-lo. Nesse processo de busca do consumidos, de seus gostos e características, os repórteres criam representações que orientam, em boa medida, o trabalho de reportagem. (p. 78)

These views are discerned through market research and letters to the editor, but the reader is also a product of the imagination of staff members who, as we have seen earlier, sometimes pay little attention to market research or reader feedback and intentionally let their own intuitions and ideas about ideal coverage stand for those of their readers. (Lutz e Collins, 1993: 217).

55 % dos leitores são homens.

Um homem que se preocupa com aparência e moda, cada vez mais autoconsciente de sua masculinidae enquanto atributo a ser construído e enquanto objeto de desejo sexual.
Há também o recurso da “garota da capa”, a inevitável figura feminina sensual chamando a atenção do público masculino, e o uso constante de imagens de mulheres seminuas, com a quase ausência de imagens de homens. Existe um apelo à heterossexualidade “natural” dos leitores, ao sensual e ao sexual, mesmo que de forma mais “refinada” ou “inteligente”, como os editores gostam de dizer.
Coloca o desejo heterossexual como pressuposto básico de qualquer masculinidade. Todas as matérias se direcionam ao homem que deseja mulheres e quer agradá-las ao máximo.
A editora faz recorrentemente matérias de comportamento e se vale de seus anos de experiência como especialista nessa área para validar a sua posição no mercado editorial, onde é conhecida como “jornalista de comportamento”, embora não tenha nenhuma formação específica ou formação acadêmica em Psicologia.
Os imaginários sobre o masculino e o feminino circulantes passam assim pelo crivo desse processo jornalístico e são tornados “notícia” ou “jornalismo”. Ou seja: ao passar por um método de trabalho desenvolvido e aprendido em faculdades, tais imaginários que circulam em toda a sociedade, as vivências dos repórteres, tornam-se matérias jornalísticas na mídia à qual esses personagens têm acesso. Dessa forma, tornam-se “informação”, pautada por especialistas (o que confirma a sua veracidade e validade científica) e pronta para ser consumida.

Nossa infinitamente rica pletora de identidades sexuais, nossos homens, mulheres, bichas, michês, viados, travestis, sapatões, monas, ades, monocos, saboeiras e assim por diante não são simples traduções dos homossexuais, heterossexuais e bissexuais que povoam as terras anglo-saxônicas. São personagens de um cenário de significações que têm sua história e lógica próprias.
Perceber que a multiplicidade existente na categoria “homem” pede uma abordagem que valorize a práticas e as negociações constantes de identidade que ocorrem diariamente nas relações sociais.
“Comer cu”, “ser chupado” são atividades sempre possíveis a esses sujeitos, duplamente personagens: nas fotos, representam dois rapazes que trabalham no borracheiro; na entrevista, encenam dois modelos viris ou “machos” que, por acaso, fizeram fotos para gays. Nunca temos acesso à prática sexual real desses sujeitos, o que nesse caso não interessa tanto quanto o imaginário que os circunda.
Mas essa heterossexualidade parece invocada muito mais vezes do que efetivamente praticada. Como os michês entrevistados “em profundidade” o revelam, gabar-se de heterossexualide soma pontos perante os clientes, que, em grande parte, procuram rapazes que não sejam homossexuais.
Um “hétero” estaria no topo da escala de masculinidade em relação aos outros, enquanto o travesti e o transexual estariam na proporção menos masculinas. A tendência é os mais femininos desejarem os mais masculinos, e vice-versa, mas não há um padrão fixo ou excludente.
A pluralidade de práticas homoeróticas no Brasil é enorme, não se esgotando nas concepções elaboradas no gueto ou no interior de movimentos políticos. A vivência “homossexual” ou “homoerótica” brasileira transcende o gueto e confunde-se com o modelo dominante heterossexual.

As novas teorias sobre o gênero, muitas delas realizadas sob o rótulo do “pós-estruturalismo”, fazem a crítica de categorias como “homem” e “mulher” enquanto identidades solidamente articuladas e imutáveis, ou mesmo necessárias ou inevitáveis.
Assim, aqueles segmentos que não se sentiam representados pelas reivindicações dos homossexuais libertários começaram a criticar as táticas desse movimento, que buscava uma estratégia de assimilação (gays e lésbicas não são diferentes de heterossexuais na essência) e constituía uma base identitária sólida, coerente para o sujeito gay, a partir do chamado “orgulho gay”. Esse tipo de essencialismo identitário começou a ser criticado por se basear em valores de classe média brancos e não ser representativo de todos os sujeitos não heterossexuais.

Portanto, da mesma forma que a VIP, a Sui Generis investe na produção de uma lógica identitária, operando uma diferenciação entre homem e mulher (pois o gay nunca deve deixar de ser homem, recaindo nos estereótipos populares e homofóbicos da “bicha efeminada”, entre homo e heterossexual. O gay possui uma série de diferenciais que o colocam em situação privilegiada: segundo a revista, ele é mais sensível, consome mais cultura, cuida mais de si e, por não constituir família, se torna um consumidor mais atraente de produtos em geral, com um maior orçamento para si e seus gastos exclusivamente pessoais. A constituição do gay “socialmente aceitável” na Sui Generis passa não somente pela cristalização de uma identidade gay específica, que busca ser homogênea e coerente, mas também pela constituição de um consumidor específico. Para a Sui Generis, um dos principais referenciais do estilo de vida gay contemporâneo é o consumo de perfumes, filmes, roupas, viagens, etc. Além disso, um dos motivos pelos quais o gay deve ser aceito enquanto cidadão legítimo é exatamente a sua capacidade especial de consumir.

Uma dessas diretrizes é a superioridade da masculinidade enquanto virilidade, esteja ela alojada em corpos masculinos ou femininos. Isso explica as situações eróticas criadas em torno de encontros fugazes com policiais e soldados, exemplo de masculinidade exacerbada que exercem fascínio sobre os leitores da Homens. Sempre a relação sexual está embutida em códigos de autoridade rígidos (o parceiro ativo domina, penetra e subjuga o parceiro passivo), de acordo com os quais a mesma submissão à autoridade confere o caráter erótico à situação.

A multiplicação de títulos voltados para o homem ou para o público masculino opera um alargamento das possibilidades de imaginários associados ao masculino? Numa primeira leitura, pode parecer que sim, pois as revistas buscam incorporar referências do mundo feminino na masculinidade heterossexual, sugerindo uma diluição das fronteiras entre homem/mulher; e a proliferação de revistas gays e seus crescentes cruzamentos com as publicações heterossexuais podem também sugerir uma recente diluição da oposição hetero/homossexual. Mas como procurei mostrar, com base nas páginas das revistas, o processo não é tão simples. Longe de ocorrer uma diluição das oposições mencionadas, na marioria dos contextos elas são reconstruídas nas situações mais inusitadas, em que aparentemente estavam sendo questionadas, como na “masculinização” dos cosméticos para homens ou na constituição de uma identidade gay de classe média que se opõe frontalmente ao mundo heterossexual.

O que tentei mostrar, no entanto, é que, mais do que recolocadas, repetidas, mantidas, essas oposições são recontextualizadas, o que inevitavelmente provoca um deslocamento nesses imaginários. Confrontados com novos elementeos, esses campos de percepção buscam se reorganizar, mas muitas vezes incorporam referências estranhas a eles mesmos, o que resulta num novo contexto que, mesmo não sendo totalmente novo, também não é totalmente antigo.

Revista Júnior

Pode-se dizer que as instituições midiáticas formam uma espécie de sistema carregado de valores e padrões de conduta que são transmitidos constantemente aos indivíduos de maneira que estes, embora sejam atingidos direta ou indiretamente, nem sempre têm consciência dessa influência em suas formas de autocompreensão, na maneira como vivem e se relacionam com outras pessoas.

Assim como a noção de “homem”, que é sempre aplicada em sua plenitude àqueles que se relacionam e se interessam sexualmente por mulheres, a de “masculinidade” é comumente tida como singular, única e heterossexual, restringindo muito a sua utilização.

Dada a complexidade das relações sociais e da forma como as categorias gênero, sexualidade, raça, geração e classe social se intersectam, o estudo busca – dentro do possível - associá-los na análise.

Afinal, as influências culturais marcam relações de autocontrole internas ao sujeito - em esforço para se adequar ao modelo tido como correto e natural. Este modelo, ou modelos, não são neutros nem passíveis de livre escolha, pois a coletividade cria – assim como a mídia dissemina - representações valorativas, articulando uma rede de hierarquias: homem x mulher, normal x desviante, hegemônico x subalterno, dominante x dominado.

Mesmo que o padrão dos modelos da maioria das revistas –tanto masculinas quanto femininas- seja dificilmente alcançado por grande parte das pessoas (principalmente com as intervenções do Photoshop, que corrigem defeitos e deixam os modelos próximos da “perfeição”), há uma ilusão de que ele é saudável, obtido através de uma conduta positiva de exercícios físicos e alimentação natural, ou seja, por meio de uma vida regrada e baseada na autoperitagem. Pessoas acima do peso estariam não apenas fora do desejável no âmbito estético, mas também muito mais propensas a doenças- ainda que remédios para emagrecer, doenças como bulimia ou anorexia e anabolizantes sejam alternativas nada benéficas, e constantemente utilizadas por quem deseja alcançar o corpo tido como ideal.

O culto à disciplina alimentar e de exercícios elude a distância socioeconômica de forma a parecer que o padrão corporal em voga é alcançável por qualquer um e sua não-obtenção a prova do “fracasso” do indivíduo, uma falha “moral” perceptível no estereótipo de preguiça e falta de autocontrole que nossa sociedade atribui a obesos em geral.

A revista Júnior, dirigida a um público gay jovem exposto a estas demandas corporais, reforça estas idéias por meio de capas, matérias e – sobretudo – anúncios publicitários em que a adesão a um corpo ideal acenasse com uma possibilidade promissora: a de alcançar aceitação social plena.

A revista Júnior, assim como o circuito de consumo de seus leitores, revela uma norma tão paradoxal quanto difícil de ser seguida à risca: a de que se deve ser gay, mas dentro de uma conformidade ou flexibilidade de gênero, de forma que a masculinidade hegemônica possa ser acionada quando seja necessário “passar por hetero”. No fim das contas, um valor dos mais altamente erotizados em todo o meio gay brasileiro, nosso equivalente do norte-americano straight-acting.

Os “culpados” são os gays veteranos, é a mídia, é o marketing, é a indústria, o mercado, mas a revista Júnior se isenta desta responsabilidade já que abre suas páginas para que esse tipo de discussão seja feita- ainda que as abra também para o mercado, o marketing e a indústria, fortalecendo a noção do gay sofisticado e consumista. Essa duplicidade é vista como uma qualidade, já que logo no editorial de estréia se explicita que a Júnior seria “assumida sem ser militante, sensual sem ser erótica, cheia de homens lindos, com informações pra fazer pensar e entreter”. O “pensar” fica por parte desses textos mais sérios, de estudiosos renomados e com questões espinhosas, enquanto o “entreter” se estende pelo resto da revista, com suas fotos sensuais, dicas de moda, festas famosas, viagens para o exterior e sugestões de artigos “indispensáveis”.

Como grupo social, em um passado não muito distante, ou seja, durante as décadas de 1960 e 1970, os gays foram avaliados por muitos como possíveis contestadores da ordem hegemônica, criando formas totalmente novas de relações e construção de subjetividade. Tal esperança não se concretizou completamente, a partir do momento em que forças do controle social moveram o grupo do gueto questionador para um âmbito mercadológico, baseado em consumo e voltado à adequação aos valores impostos pela sociedade (MISKOLCI, 2006 p.691).

Matérias sobre almas gêmeas, loucuras de amor e falas que explicitam a busca por “alguém para a vida toda” dividem espaço com questionamentos sobre a existência de relacionamentos duradouros no “mundo gay”.

Essa visão foi mantida durante um longo tempo e, embora obtivesse reações contrárias em protesto, além de uma constante busca dos homossexuais a maior reconhecimento na sociedade, só começou a ser fortemente enfrentada a partir de 1969, quando eclodiu a Revolta de Stonewall. Respondendo à costumeira repressão policial sobre o bar nova iorquino Stonewall Inn, cujo público era formado por homossexuais femininos, masculinos, travestis e drag queens, os freqüentadores se revoltaram e enfrentaram violentamente a força policial, em um confronto que durou cinco dias e, conforme foi noticiado, angariou mais e mais ativistas contra a violência e o preconceito.

Em um período ainda marcado pela contracultura, os grupos homossexuais representavam a possibilidade de uma inovação sem precedentes sendo que muitos deles pregavam mudanças do cerne da sociedade tradicional como
(...) a abolição dos papéis sexuais, a transformação da instituição familiar, a desconstrução das categorias monolíticas da homo e da heterossexualidade, o desenvolvimento de um novo vocabulário do erótico e, sobretudo, a compreensão da sexualidade como prazerosa e relacional ao invés de reprodutiva ou definidora de um status moral aceitável ou reprovável socialmente. (MISKOLCI, 2007, p.107)

Na década de 1980, entretanto, o movimento de busca por mudanças sociais foi preterido devido a um assunto mais urgente: o surgimento da AIDS. Atingindo fortemente os homossexuais, principalmente homens, a doença causou a morte de um número incalculável de pessoas. Durante esse período, a informação era escassa e a pecha de doença exclusivamente de um grupo de risco- encabeçado pelos gays, mas que contava também com a presença de usuários de drogas, africanos e haitianos (pois se acreditava que a doença tinha surgido na África ou no Haiti), hemofílicos e prostitutas- foi assimilada de modo quase irrevogável sob o título de “praga gay”. A AIDS criou um verdadeiro pânico sexual25e como tal acabou gerando como resposta um retorno aos valores tradicionais, inclusive por parte dos gays.
O movimento político nesse momento se reconfigurou de maneira a priorizar a obtenção de direitos civis para os homossexuais, voltando seus esforços à união com o Estado e rejeitando práticas consideradas “marginais”. Assim, buscando uma integração maior do grupo na sociedade - objetivo que continua sendo perseguido nos dias atuais- adotou como bandeira principal, em nossos dias, a busca pelo direito ao casamento civil. Essa luta de gays e lésbicas para alcançar os mesmos direitos concedidos aos heterossexuais é válida no que diz respeito à obtenção de igualdade, visibilidade e aceitação. No entanto, analisando o potencial modificador já creditado ao grupo, essas lutas que se dão em um âmbito conservador acabam sendo normalizantes.

Enquanto os homens são mais livres de amarras sociais no que diz respeito ao seu prazer, as mulheres ainda cultivam preocupações com a sua “honra” e “reputação”: se fala de sexo mais abertamente e existiu de fato uma maior liberação feminina, que possibilitou uma vida sexual muito mais ativa, entretanto até mesmo em revistas vistas como ousadas (Nova Cosmopolitan, por exemplo, que traz guias de sexo lacrado, com imagens gráficas) retoma questões extremamente conservadoras como “fazer ou não sexo no primeiro encontro”, explicitando o medo que a mulher tem de ser julgada por sua sexualidade. Se os homens heterossexuais muitas vezes fazem uma diferenciação entre a mulher que merece ser valorizada e a que não (mulher pra casar X mulher pra sexo), os homossexuais não parecem considerar um parceiro menos digno exclusivamente por ter aceitado fazer sexo sem compromisso, e assim estariam mais abertos a esse tipo de relação rápida e fugaz

Este chamado à “tradição” não parece mais ser motivo de dúvidas ou questionamentos como nos relatos de quem viveu o período da contracultura e os obstáculos à realização do “conto de fadas” parecem estar mais na legislação do que nas particularidades dos relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo. O ideal amoroso monogâmico, quiçá legalizado e até mesmo reprodutivo se converte ele mesmo em algo a ser “consumido”, mas ainda como um ideal enquanto predomina o suposto “hedonismo” do presente.

As Adolescentes Negras no Discurso da Revista Atrevida

É como uma categoria culturalmente aprendida que a beleza e também a beleza negra
foram analisadas na revista Atrevida. Objeto de desejo de mulheres brasileiras de todas as idades e classe social, a beleza pode ser alcançada seguindo-se as instruções das publicações do gênero, porém sem perder de vista que todas as “orientações” que as revistas oferecem às mulheres visam a um alvo maior: não é apenas ser bela e, sim, ser bela aos olhos dos representantes do sexo oposto.

A leitora branca é de novo chamada ao texto, como leitora-alvo da publicação, como se dissesse a ela se acalmar, já que, na disputa estética, ela não perderá o seu lugar para a adolescente negra. O discurso produzido chama a atenção para o fato de que ser negra é bom, mas elas têm desvantagens, vejamos: “Uma baita sorte! (elas terem mais colágeno). Em compensação, elas correm o risco de ficar com cicatrizes”. Ou seja, elas são menos flácidas, mas tem outras desvantagens. A autora ainda alerta que a negra deve pensar antes de usufruir as opções de ornamentação corporal, como uso de piercing e furos na orelha, mas não apresenta alternativas viáveis ao seu tipo de pele.

Perpassando todo o texto, a negritude é tratada de forma homogênea, e as particularidades de ser negra são ignoradas. Em um país fortemente miscigenado, como o Brasil, é difícil imaginar que todas as negras tenham o mesmo tom de pele, textura de cabelo e, o mais importante, a mesma concepção de beleza. Será que todas querem cabelos com movimento? Temem as cicatrizes? Preocupam-se em se depilar?

Ao privilegiar um público ideal, marcado por um recorte étnico-racial, isto é, a
adolescente branca, a revista faz uma escolha e usa de várias estratégias discursivas para realizála.
Basta prestarmos atenção às seções e aos textos que antecedem e sucedem a matéria aqui analisada, na perspectiva da interdiscursividade e da intertextualidade, para percebermos que o imaginário racial que povoa os editores, as reportagens e as matérias de Atrevida não inclui a dimensão pluriétnica e multirracial da sociedade brasileira na qual essa mídia impressa é produzida.

Os dados revelam que Atrevida contribui para a manutenção do discurso hegemônico sobre beleza, gênero e raça, delegando a cada grupo social um lugar em uma escala de valores predefinidas pela sociedade brasileira. Como pretende, porém, atingir um
público jovem e diverso, elabora um discurso de falsa mudança. São admitidos o cabelo crespo e o cabelo cacheado como potenciais de beleza, contudo na posição de alternativos. Não se percebe um sentido político da ideia de alternativo como algo que se coloca independente em relação a um padrão dominante, mas, sim, como mais uma possibilidade.

A declaração da estilista também revela como o mito da democracia racial ainda povoa o pensamento do brasileiro. Nessa perspectiva, como resultado de uma miscigenação dos três povos fundadores da nação brasileira – índios, negros e brancos –, somos naturalmente tolerantes racialmente. A afirmativa da estilista não é válida; o avô negro que ela evoca não justifica a sua não disposição em contratar modelos negras e indígenas em número mínimo em seus desfiles.

O mérito, no discurso da negação da desigualdade e da discriminação racial, aparece como um recurso ideológico e retórico construído nas relações de poder que isola o sujeito que vivencia a desigualdade dos condicionantes sociais, históricos, culturais e políticos que a produziram. O mérito não é algo individual e natural. É também uma construção respaldada em critérios que paulatinamente foram impostos em nossa sociedade como padrão de conhecimento, de beleza, de racionalidade. Há muito que se questionar o esvaziamento político que o mérito assume no discurso das cotas, seja no mundo da moda, seja no mundo acadêmico.

As revistas femininas, geralmente, são alicerçadas em processos comunicativos. Elas
pretendem orientar suas leitoras sobre conduta, aparência, moda, celebridades, sem, no entanto, informar sobre esses assuntos. Os textos são imperativos e prescritivos, baseados na experiência de vida de outras pessoas. A opinião pessoal, individual, tem peso muito forte nessas publicações, maior que outras informações, elaboradas por autoridades no assunto. Estas últimas somente são consultadas para respaldar as opiniões da revista.

É muito comum confundir educação com escolarização. A introdução do campo da
cultura como importante elemento para se compreender os processos formativos vividos pela experiência humana poderá nos ajudar a entender que todo processo de aprendizagem é, antes de tudo, cultural, isto é, ele não se limita ao tempo, ao espaço e à forma escolar.
Reconhecemos que o processo escolar exerce influência sobre a aprendizagem nas sociedades em que a época de frequentar a escola é um tempo-forte e é capaz de construir formas de ensino-aprendizagem próprias desse contexto. Discutindo, porém, a aprendizagem como componente da cultura produzida ou modificada pelos sujeitos sociais, conseguimos delinear diversos espaços de educação e cultura para além dos muros da escola, quais sejam: os movimentos sociais, as festas, a Igreja, o trabalho, os sindicatos, os partidos políticos, a família, a interação com os pares, entre outros.

Apenas uma parcela da cultura produzida é ensinada pela escola, geralmente, aquela
parcela eleita como a legítima pelos grupos que têm a hegemonia do processo e da política educacional. Essa eleição se corporifica por meio do currículo na sua forma oficial, em ação e oculta. Ainda assim, considerando educandos como sujeitos, como nos propõe Arroyo (2000), sabemos que, ao chegar à escola, esses sujeitos estão repletos de crenças, valores, hábitos, conceitos e preconceitos, adquiridos em uma formação não escolar. A ação desses sujeitos pode modificar, tensionar e até mesmo implodir as concepções culturais e pedagógicas presentes de forma oficial nas escolas. Há universos culturais, sociais, políticos e discursivos em disputa. Isso se expressa nos rituais, nos currículos, nas práticas pedagógicas, na organização do trabalho da escola.

Com a predominância de pesquisas sobre a escolarização no campo educacional, a
mídia é pouco estudada na perspectiva de educação. Uma perspectiva “escolarizada” de
educação dificilmente captará o lugar da mídia como processo formador e educativo.

Como se pode notar, a mídia tem caráter educativo evidente e, sendo assim, não pode
deixar de ser objeto de estudo do campo da educação. Seu papel, paulatinamente, tem sido assunto de diversas áreas de conhecimento.

O masculino aparece nesse diálogo, porém, de forma pouco problematizada. Geralmente, ele se apresenta como a referência para determinados comportamentos e aspirações do tipo de mulher que essa mídia privilegia. Além disso, o masculino com o qual tais publicações dialogam diz respeito a um determinado recorte dentro da gama de possibilidades que esse universo incorpora.

Carolina dos Santos de Oliveira
AS ADOLESCENTES NEGRAS NO DISCURSO DA REVISTA ATREVIDA
Belo Horizonte- 2009
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS- FACULDADE DE EDUCAÇÃO

segunda-feira, janeiro 17, 2011

Do pecado ao perigo

A idéia de sexo desempenhou três funções no dispositivo da sexualidade. Em primeiro lugar, permitiu agrupar em uma unidade elementos anatômicos, funções biológicas, condutas, sensações, prazeres; esta unidade fictícia tem funcionado como princípio causal, significado presente em todos os segmentos, segredo que é preciso descobrir. Em segundo lugar a idéia de sexo tem servido para marcar a superfície de contato entre o saber da sexualidade e as ciências biológicas; deste modo, o saber da sexualidade recebeu, por vizinhança, a garantia de um saber biológico e fisiológico como princípio para estabelecer a sexualidade normal. Em terceiro lugar, a idéia de sexo permitiu inverter a representação das relações entre o poder e a sexualidade. De fato, se pensou esta relação em termos de repressão, de lei, de proibição; deste modo, sua dinâmica produtiva se tornou disfarçada.

A sexualidade é, segundo Foucault, o nome que se pode dar a um dispositivo histórico, no qual "a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação de conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e poder” (FOUCAULT, 2005-b, p. 100).

Quando questões como saúde, higiene, alimentação, natalidade e expectativa de vida
tornam-se preocupações social e política, ocorre a atuação de políticas públicas que intervêm no conjunto da população. Constitui-se aqui o bio-poder, ou o poder sobre a vida, consolidando uma “grande medicina social que se aplica à população a fim de governar a vida: a vida faz, portanto, parte do campo do poder”.

Algumas palavras a respeito de dois termos que têm sido utilizados para definir o
processo de abordagem do tema sexualidade nas escolas: educação e orientação sexual.
Alguns manuais desenvolvidos por Organizações Não Governamentais (ONG) e livros mais
recentes de autores a elas vinculados adotam o termo orientação sexual, considerando-o como o mais adequado, pois este definiria um processo sistemático, planejado e desenvolvido por profissionais capacitados, ao contrário de educação sexual, que consistiria num processo informal construído ao longo de toda a vida do indivíduo com a participação de familiares, amigos, comunidade e mídia.

Entretanto, educação sexual permanece como o termo mais utilizado na maioria dos países, pela imprensa, pelo público em geral e pelas pessoas envolvidas com este tema nas escolas. Outro fator que considero desfavorável ao uso de orientação sexual é que esta é a mesma expressão utilizada para definir a identidade erótica dos indivíduos em heterossexuais, homossexuais ou bissexuais. Nesta dissertação adoto o termo educação sexual, por considerar que o mais adequado é utilizar os conceitos de educação formal e informal. O primeiro preenche os requisitos que estão sendo requeridos para a orientação (planejado, sistemático, organizado, efetuado por pessoas tecnicamente preparadas), enquanto que o segundo se enquadra na educação adquirida na vivência individual, nas trocas com pais, amigos, colegas
e meios de comunicação.

Em relação à adolescência, é prevalente entre pais, professores e outros profissionais a justificativa de condutas individuais como “típicas” da idade, como a “natureza” rebelde, imatura, inconseqüente ou irresponsável, conceitos que se organizam para proporcionar a construção do discurso que constitui a adolescência. Atualmente pouco se utiliza o conceito de instinto, mas a justificativa mais freqüente para o comportamento dos adolescentes é a ação hormonal, a qual além dos aspectos biológicos determinaria um amplo conjunto de comportamentos.

É o jovem masculino que precisa ser preparado para encontrar forças que lhe permitam
resistir ao “instinto copulador de macho”, no qual o coito se torna uma necessidade imperiosa e onde “o excesso de seiva que nele borbulha” exige uma solução. O
padre Negromonte (1951) justifica a atração carnal mais forte no homem como disposição da Divina Providência, pois o resultado desse comportamento agressivo e ativo seria a geração dos filhos. Segundo esse autor, se no homem a grande força sexual, a primeira que aparece, a que mais se salienta, é o desejo do prazer, na mulher este desejo é muito atenuado e vago, permanecendo quase sempre silencioso e adormecido antes do casamento

Enquanto a moça quer apenas sentir que é amada, quer o carinho de um gesto, o amparo de um braço a que se apóie, de um ombro a que se acoste, o rapaz, mesmo que procure o conforto deste amor puro, a presença desta que lhe será a companheira, nunca excluirá disso a preocupação sexual. Aquelas carícias que para as moças talvez sejam inocentes e quase diríamos infantis, que não lhes deixam senão a impressão agradável e até pura de que são amadas, estão provocando incêndios no coração do rapaz. A moça, porque “não sente nada com aquilo”, porque “aquilo não lhe faz mal nenhum”, não imagina, e nem pode mesmo imaginar o que sente o moço, o mal que faz aquilo. Ele arde, as mais das vezes, em desejos sexuais. O que para ela é uma carícia, é para ele uma provocação (NEGROMONTE, 1951, p. 152).

As frases do médico francês Daniel Alduc (1951 p. 32) - “O amor, propagador da vida,
é, também, um poderoso difundidor da morte” e “este incansável semeador é um rude
manejador de foice” – sintetiza e leva ao extremo o conceito de sexualidade como uma área de alto risco, plena de ameaças e armadilhas, que esconde graves conseqüências para aqueles que nela se aventuram sem a devida orientação. Entre os argumentos em defesa da educação sexual, antes e depois da metade do século, está a necessidade de preparar o jovem para ingressar nesse território representado como perigoso e fornecer-lhe uma espécie de mapa para o seu desbravamento.

Ainda segundo o entendimento da maioria dos autores até os anos sessenta, a preocupação quanto à vulnerabilidade era com os rapazes, pois estes seriam mais suscetíveis aos clamores do instinto, enquanto que as adolescentes não estariam incluídas nesta situação de risco por não apresentarem comportamentos nesse sentido. Apenas aos rapazes era exigido um controle sobre a atividade sexual, evitando a procura de prostitutas e o contágio com doenças venéreas, valorizando a castidade como uma atitude que enobrece o indivíduo.

Nesse período, as jovens recebiam orientações sobre menstruação, cuidados higiênicos e postura social, conduzindo-as para o futuro papel de esposas e mães. Não havia preocupações quanto à possibilidade de atividade sexual, algo considerado improvável para uma moça solteira. Delas não era exigido o combate ao próprio instinto sexual, mas precisavam enfrentar o dos namorados e noivos e para isso eram orientadas a não cederem às pressões destes, que muitas vezes exigiam prova de amor ou ameaçavam com a ruptura da relação.

Apenas nos livros publicados na década de oitenta é que a atividade sexual das jovens começa a ser reconhecida e o “sexo fora do casamento só não escandaliza mais as ‘boas’ famílias quando é banalizado nas novelas de televisão” (COLLING, 1997, p. 42). A partir de então a gravidez na adolescência torna-se um problema a ser prevenido e motivo de preocupação para os profissionais da saúde, educadores, pais e sociedade em geral.

A partir dos anos setenta, com o uso de novos antibióticos, cuja eficácia e acessibilidade – por receita médica ou livre acesso nas farmácias – evoluíram rapidamente, a incidência e a gravidade das doenças venéreas diminuíram significativamente e com isso a preocupação com a sua disseminação. Mas esta situação não durou por muito tempo. No início dos anos oitenta a Aids surgiu como ameaça à vida, inicialmente para os então denominados “grupos de risco” e a seguir para toda a população. E as doenças venéreas ressurgiram (agora com outro nome:
doenças sexualmente transmissíveis) como o grande perigo a ameaçar os jovens em suas
experiências sexuais.

Novos tempos, novos perigos. Considerando-se os desajustes e as anomalias comportamentais, a possibilidade de contaminação pelas doenças venéreas, a epidemia da Aids e a possibilidade de uma gravidez considerada como precoce, percebe-se que o sexo nunca deixou de ter a seu lado “más companhias”.

O estímulo a falar de sexo foi o que construiu o discurso e a verdade sobre o sexo. Os manuais médicos sobre atendimento ao adolescente recomendam que durante a entrevista individual o paciente seja questionado sobre namoro, envolvimento físico, preferências sobre práticas sexuais, número de parceiros, conhecimento e/ou uso de métodos anticoncepcionais e doenças sexualmente transmissíveis, conduta compatível com o discurso generalizado de que ao chegar à adolescência o sexo torna-se algo intenso, forte, inevitável, que precisa de ajustes, controle e supervisão.

A preocupação, aprendida nos manuais médicos e assumida como correta e adequada,
de investigar sobre sexo, fazer perguntas, desvendar os segredos, nos trouxe não a resposta esperada de desvelamento do “mundo sexual dos adolescentes”, mas um questionamento de que talvez sejamos nós adultos, enquanto pais, professores e profissionais, que estamos mais preocupados do que os próprios jovens e produzindo um contexto de “importância do sexo”.
E nessa prática de estimular a falar de sexo, estamos dando continuidade ao processo de construção dos discursos e da verdade sobre o sexo.

Cumpre falar do sexo como de uma coisa que não se deve simplesmente condenar ou tolerar, mas gerir, inserir em sistemas de utilidade, regular para o bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão ótimo. O sexo não se julga apenas, administra-se. Sobreleva-se ao poder público; exige procedimentos de gestão; deve ser assumido por discursos analíticos (FOUCAULT, 2005-b, p. 27).

Além dos temas relacionados nos tópicos anteriores, há outras justificativas para a
educação sexual: a) o risco de receber orientações inadequadas – “Os colegas sempre são maus mestres neste assunto” (NEGROMONTE, 1951, p. 76) e “o silêncio precipitará os filhos nas mãos dos corruptores” (ibidem, p. 19); b) as influências negativas dos “perigosos contatos com o cinema, as revistas ilustradas, os cartazes, as conversas levianas de casa, a semi-nudez das praias e piscinas” (ibidem, p. 91), das leituras pornográficas (NÉRICE, 1961) e dos meios de comunicação que usam e abusam da sensualidade como técnica de marketing (VITIELO, 1997); c) a precocidade do envolvimento com as questões sexuais desencadeada pelo meio social, fazendo com que “a inquietação sexual, que só deveia chegar com a puberdade” se antecipe e faça “dos nossos meninos uns precoces sexuais” (NEGROMONTE, 1951, p. 91);
d) os perigos que o segredo pode representar ao gerar curiosidade, insatisfação e
intranqüilidade, pois a idéia de que a inocência protege é falsa e a ignorância freqüentemente gera angústia, culpa e gravidez indesejada (SUPLICY et al, 2000).

São justificativas que caracterizam o adolescente como despreparado nesta área, sendo o seu desconhecimento uma realidade que “é triste e desoladora entre nós, [...] levando o adolescente a percorrer caminhos penosos, quando em seu lugar poderia ter gratas alegrias e uma vida mais sadia” (COSTA, 1986, p. 7). Vitielo (1997, p. 63) ressalta ser chocante o nível de desinformação exibido por adolescentes numa sociedade como a nossa que tanto preza e valoriza o fato de estar bem informado, o que leva a sexualidade a ser exercida, em todas as camadas sociais, sem qualquer preparo formal ou informal, “iniciando-se habitualmente na
hora errada, com a pessoa errada e pelos motivos errados”. Percebe-se nesta construção de uma imagem de incompletude como característica da sexualidade adolescente a justificativa para a necessidade de fornecimento das devidas
informações, pois sem elas, conforme Suplicy (2000), o indivíduo poderá ver comprometida as suas possibilidades de ter uma vida sexual harmoniosa e ser conduzido a uma vida sexual e afetiva infeliz e empobrecida. Outra opinião que segue o mesmo argumento é o de Egypto (2003), ao afirmar que a ignorância não protege ninguém de nada, ao contrário, torna o jovem mais vulnerável às situações por não saber lidar adequadamente com elas ou por não dar conta dos medos, das ansiedades, das dúvidas e dos questionamentos que vão se desenvolvendo ao longo da vida. Em relação a esta preocupação com os perigos da desinformação, percebe-se
que mesmo quando associamos o final do século com novos tempos, os discursos
permanecem velhos.

Aparentemente não, pois os dados a respeito “da alta incidência de gravidez precoce, do elevado número de mortes ou seqüelas em mulheres provocadas por
aborto clandestino, do crescente número de recém-nascidos infectados pelo vírus HIV”5 são indicadores do “analfabetismo da sexualidade da adolescência contemporânea” (BOARINI, 2004, p. 188-9).

Conclui-se que a educação sexual, segundo esses autores, é necessária porque o
adolescente precisa ter acesso às informações adequadas e de alguém que lhe mostre o
caminho, que lhe diga como agir, o que fazer e o que evitar, caso contrário ele será
incompetente sexualmente, talvez não seja feliz, não fará o outro(a) feliz, além de estar correndo graves riscos quanto à sua integridade física. Inserido nesta linha de pensamento está o conceito do acesso à informação repassada pelos adultos como condição indispensável para que os jovens tenham aptidão para tomarem decisões com responsabilidade.

Ainda nesta mesma linha de argumentação, eles precisariam, portanto, de um
passaporte, um salvo-conduto que lhes permita, futuramente, ingressar no mundo da
sexualidade adulta, mundo no qual, finalmente, seus integrantes estariam em condições privilegiadas de controlar os instintos, tomar decisões, desviar-se das situações de risco e estar consolidado na prática da virtude.

Estado, igreja, medicina, justiça e educação atuam na família no sentido de interferir nas suas ações, designar os papéis de seus integrantes, definir quais normas ela deve seguir, quantos indivíduos deve conter, qual tipo de vestuário deve usar, o que deve consumir, em quantos e quais cômodos deve viver e como e com quem deve se relacionar. Esta atuação das instituições sobre a família é perceptível do casamento à separação, do nascimento dos filhos ao óbito de seus integrantes, da aquisição à venda de bens, da renda familiar às despesas efetuadas, sendo constante a exigência de que tudo seja documentado, registrado em cartório, assinado com testemunhas e comprovado com recibos.

A parte mais substancial do investimento no dispositivo da sexualidade aplicado pela
igreja, pelo Estado e por outras instâncias, como a mídia e a propaganda, foi aplicada na família. É no seu interior e nas relações entre seus integrantes que se ergueram as regras mais elaboradas e as interdições mais sólidas a respeito do sexo. É onde também se detectaram os maiores problemas, os desvios mais sérios e a necessidade de intervenções terapêuticas mais amplas.
É ainda a família o eixo que liga os dispositivos da aliança e da sexualidade. Enquanto o da aliança está relacionado ao matrimônio, à reprodução, ao parentesco, à transmissão de nomes e bens e estrutura-se em regras para manter a homeostase social, o da sexualidade, apesar de também se articular entre parceiros sexuais, está vinculado ao prazer e à economia do corpo que produz e consome (FOUCAULT, 2005-b). Através do corpo feminino, da sexualidade infantil, do controle da natalidade e dos comportamentos perversos, os discursos articularam estes dispositivos através da família, os quais se materializaram na mulher nervosa, frígida e indiferente, no marido impotente ou perverso, na criança precoce e no
jovem homossexual.
Desde a consolidação, no final do século XIX e início do XX, da família brasileira
como local de investigação, de controle e de permanente vigilância a respeito da sexualidade infantil e adolescente, dos quais devia exigir as confissões mais íntimas e a temer suas manifestações sexuais, algumas mudanças ocorreram.
Mas se estas mudanças resultam do fato de alguns valores, costumes e normas não serem mais os mesmos, não significaram a perda da vigilância sobre a família nem o fim da necessidade de intervenção. Agora os medos deixaram de ter origem nas crianças e nos adolescentes do sexo masculino, e se deslocaram para a gravidez considerada precoce da adolescente e o desejo sexual dos pais e o que estes “gostam
de fazer com (e a) seus filhos”, os quais passam a ser considerados principalmente objetos sexuais e vítimas potenciais de seus pais como sujeitos sexuais.

gravidez na adolescência e o abuso sexual, temas vinculados a políticas públicas, assumiram uma visibilidade antes nunca experimentada, desencadeando campanhas na mídia, programas preventivos e medidas punitivas.

Atualmente, na opinião de muitos, o seu lugar é o de coadjuvante, e na de outros, situa-se no limbo entre a omissão, a incompetência e a situação de risco. Considerada há muito tempo como o local ideal para a intervenção de ações religiosas, médicas, políticas e econômicas, a família não poderia deixar de ser envolvida na formação sexual de seus filhos, e, mesmo quando a escola é convocada para assumir essa função, ela não deixa de participar, seja como produtora, permissionária ou, mais recentemente, como estorvo.
Na família, o enfoque sobre sexo tende a tomar formas indiretas, pouco claras, envolvidas em subterfúgios, reticências, segredos, as quais nem sempre se caracterizam como diálogos entre pais e filhos (BRANDÃO, 2004). A desigualdade hierárquica, o envolvimento afetivo, o tipo de relacionamento conjugal e parental, são fatores que determinam uma especificidade à educação sexual familiar que a torna única e insubstituível, pois ela estará ocorrendo sempre, mesmo que não utilize palavras ou prescrições.

A partir dos anos 80, os discursos favoráveis a consolidação da escola como local para a educação sexual e à necessidade de formação de professores para desenvolverem programas nesta área deslocam a família para um papel secundário. Neste sentido, ocorreu a descaracterização da competência dos pais como educadores sexuais e a família não apenas perdeu a autonomia sobre a sexualidade de seus filhos, como foi responsabilizada por enviar às escolas alunos desinformados e com atitudes negativas em relação ao sexo. Neste cenário, a escola é incumbida da função de reverter um quadro considerado tenebroso, no qual os alunos são recebidos com uma forte carga de tabus, preconceitos, conflitos, sentimentos de culpa e dúvidas:
Parece-nos claro que a melhor educação seria a que fosse propiciada pelos próprios pais, pois nenhuma estrutura social consegue atuar tão precocemente, com adultos tão significativos, por tanto tempo e de forma tão importante sobre o ser humano em sua fase de formação de personalidade, como a família. No entanto, como regra geral, os pais têm notória dificuldade em falar de sexo com os seus filhos. [...] São dificuldades de cunho cultural, que somente serão superadas com muito esforço pessoal e grandes lutas internas pois nós, adultos, somos filhos de nosso meio e de
nossa época, sendo ao mesmo tempo agentes e vítimas dos preconceitos vigentes. Assim sendo, pelas dificuldades enfrentadas pelos pais, somos obrigados a nos valer do ensino formal, que nos parece ser, a médio e longo prazo, a solução mais viável no momento histórico que nossa sociedade está vivendo (VITIELLO, 1997, p. 101-2)

Além da alegada incompetência dos pais, surgiram outros argumentos em detrimento da
família. Um deles é defendido por Suplicy (2000, p. 33) ao caracterizar a adolescência como problema e durante a qual “normalmente a família se constitui num lugar de tensão e conflito”, dificultando a abordagem de certos assuntos pelos pais, os quais poderiam ser discutidos na escola com mais liberdade.

A família foi, com o evoluir das décadas do século XX, de certo modo deslocada em
relação à função de educadora sexual e, além de ceder esta função para a escola e assumir sua condição de incapacidade e de produtora de tabus e insegurança, passou à condição de suspeita. Estes e outros discursos conduziram os pais a se convencerem de sua incapacidade e da necessidade de terceirizarem a educação sexual de seus filhos, levando-os a confirmarem nas pesquisas que sim, preferem que a escola assuma essa função. E, de certa forma, a desconsiderarem que em sua convivência diária são responsáveis por alguns aspectos da educação sexual:
A educação sexual informal que se realiza no âmbito da família tem importância particular sobre o desenvolvimento da criança e a formação de grande parte de suas idéias sobre família, amor e sexualidade, dependendo da organização e estrutura da família, pelas suas condições de vida, pelas dinâmicas de relacionamentos entre seus membros e pelas características individuais de pais e filhos.
Os pais desempenham o papel de educadores do domínio da sexualidade, muitas vezes inconscientemente, educando mais pelo que fazem do que pelo que dizem. São modelos de homens e mulheres, marido e mulher e como pessoas sociais, que ensinam o que cada um destes papéis representa, incluindo os conceitos de masculinidade e feminilidade, construindo ou reforçando estereótipos (WEREBE, 1998, p. 148).

Exige-se hoje da escola não apenas a produção, a transmissão e a aquisição de conhecimento, mas a solução de inúmeros problemas relacionados a questões tão diversificadas como saúde e higiene, prevenção do uso de drogas, preservação do meio ambiente, disciplina e comportamento, as quais antes eram assumidas pelas famílias.

Há uma outra forma que, embora explícita, também não é reconhecida. Ela se dá nos
interstícios da escola e dos relacionamentos, deixando seus rastros nos corredores, nos pátios de recreios ou nos locais de atividades físicas. Suas marcas mais visíveis ficam nas classes rabiscadas, nas portas e paredes dos banheiros, nos bilhetes trocados e nas agendas compartilhadas. E as mais sutis, mas também duradouras, se instalam nos corpos e nas mentes daqueles que se empurram, se tocam e se abraçam. A única maneira em que as questões sexuais são formalmente admitidas na escola, recebidas com solenidade na porta da frente e divulgadas como investimento no bem estar dos alunos é quando ela convida um profissional para proferir uma palestra ou quando assume um programa de educação sexual.
Em seu cotidiano, a escola finge que ignora o sexo e diz que, no seu interior, sobre ele não se fala. E quando ele aparece e assinala sua presença de forma que não possa ser ignorado, é considerado como um intruso cuja responsabilidade é das famílias “desestruturadas”, que não souberam contê-lo em seus filhos, ou de uma sociedade e uma mídia que o banalizam e estimulam comportamentos inadequados. A escola não se reconhece como produtora de atitudes sexuais, mas apenas como responsável por corrigir os comportamentos considerados desviantes e de risco que seus alunos trazem para dentro de seus muros.

A escola é, portanto, um espaço sexualizado, onde alunos e professores vivenciam
experiências, definem conceitos de normalidade, determinam as diferenças e estabelecem verdades sobre sexo, gênero e relacionamentos.

Autores como Ribeiro (1990), Sayão (1997) e Reis e Ribeiro (2004) relatam a história dos programas pioneiros em educação sexual em diversas escolas de algumas capitais brasileiras até os anos sessenta, tendo o Colégio Batista, no Rio de Janeiro sido o primeiro a incluir em seu currículo o ensino da evolução das espécies e da educação sexual em 1930, embora posteriormente o professor responsável pela iniciativa tenha sido processado e demitido.

O padre Negromonte (1951, p. 76) condenou a abordagem de temas sexuais de forma coletiva, consideradas como contraproducente por colocar em circulação entre os alunos “um assunto de que seria conveniente eles nunca falarem entre si”.

Havia uma concessão em relação ao ensino coletivo: as escolas católicas poderiam
abordar questões sexuais, pois eram as únicas capazes de desempenharem esta função, ao contrário dos ginásios e escolas não religiosos, “onde meninos e meninas, rapazes e moças brincam encurralados, numa promiscuidade sem par, [...] não são portas escancaradas à perdição?” (ALMEIDA, 1946, p. 27). Esta concessão era viável porque nas escolas católicas existia a possibilidade de por em ação o discurso religioso sobre sexualidade, no qual se louvava a castidade e defendia a reprodução como única finalidade do ato sexual.

A partir da década de oitenta outros fatores reforçaram a posição da escola na educação sexual: o surgimento da epidemia de Aids e a preocupação com os índices de gravidez na adolescência. Estas questões foram importantes para legitimar a educação sexual na escola e justificar os discursos em sua defesa, os quais receberam a conotação científica necessária para superar as opiniões em contrário. Simultaneamente, a família foi definida como uma instituição incompetente para proporcionar informações adequadas, reforçando a sua condição de ambiente produtor de tabus, preconceitos, medos e insegurança quanto à sexualidade de seus filhos.

É nessa linha de argumentação que no livro “Sexo se aprende na Escola” (SUPLICY et
al., 2000), os autores defendem ser função do Estado propiciar à sociedade informação e orientação sobre sexualidade, bem como o acesso aos meios de anticoncepção, além de definir alguns objetivos da educação sexual na escola: a) reverter a freqüente situação de infelicidade na vida sexual e afetiva das pessoas, pois a falta de informações deixa o aluno enredado em medos e preconceitos; b) proporcionar o bem-estar sexual, ajudar na formação da identidade, abrir canais de comunicação e ajudar a repensar valores; c) desenvolver o potencial de felicidade a que os alunos têm direito.

E os argumentos em defesa da escola se multiplicam. No mesmo livro acima citado, os
autores afirmam que a escola não pode fugir à responsabilidade, pois além de transmitir a noção de que o assunto é um tabu, sobre o qual não se pode falar, perpetuando a vivência de uma sexualidade empobrecida, estaria sendo omissa em relação à influência da mídia e às ameaças representadas pela Aids, pela gravidez indesejada e pela violência sexual dentro e fora de casa. E acrescentam ser função da escola contribuir para uma visão positiva da sexualidade como fonte de prazer e realização do ser humano e que na ausência de um espaço para discussão, esta “se transforma em fonte de agressão, balbúrdia e exibicionismo”.

Os defensores da escola também se utilizam de uma descrição idealizada da realidade escolar em seus argumentos, descrevendo-a como um ambiente no qual o aluno pode “desenvolver o pensamento e a capacidade crítica, no sentido de não aceitar nem rejeitar valores sem antes analisá-los” (SUPLICY et. al., 2000, p. 13) e onde a educação sexual pode ser abordada com “ampla liberdade de expressão, num ambiente
acolhedor e num clima de respeito” (ibidem, p. 8-9).
Se a igreja ignora que a família pode ser uma situação problemática e conflituosa, também em relação à escola fica obscurecida uma realidade que não se caracteriza por ser relativista, estimulante e afável.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), publicados pelo Ministério da Educação
e Desporto em 1997, têm, entre outros, os objetivos de constituir-se numa ferramenta
disponibilizada aos professores brasileiros para ser utilizada no sentido de promover uma reflexão sobre os currículos escolares e como um referencial para a renovação e reelaboração da proposta curricular, além de apontar metas de qualidade que ajudem o aluno a enfrentar o mundo atual como cidadão participativo, reflexivo e autônomo, conhecedor de seus direitos e deveres (BRASIL, 1997). Constituído por dez volumes distribuídos às escolas, os PCNs contêm um documento introdutório, seis documentos referentes às áreas de conhecimento (língua portuguesa, matemática, ciências naturais, história, geografia, arte e educação física) e seis documentos referentes aos Temas Transversais (ética, meio ambiente, pluralidade cultural, saúde, orientação sexual e trabalho e consumo).
Os Temas Transversais procuram, segundo o texto introdutório dos PCNs, traduzir as
preocupações da sociedade brasileira e correspondem à questões importantes, urgentes e presentes sob várias formas na vida cotidiana. Propõem, também, um desafio às escolas para que estas promovam um debate sobre estes temas introduzindo-os nas áreas já existentes nas atividades educativas da escola, sem criar novas disciplinas, organizando o trabalho didático na forma de transversalidade.

Os PCNs foram definidos como uma proposta às escolas brasileiras, não se tratando de uma normativa a ser obrigatoriamente adotada e sim como um material aberto e flexível a adaptações regionais que pode ou não ser utilizado, preservando a autonomia de professores e equipes pedagógicas.

Os PCNs consideram como objetivos gerais dos programas de educação sexual para o
ensino fundamental proporcionar ao aluno condições de, entre outras habilidades, respeitar a diversidade de valores, crenças e comportamentos existentes e relativos à sexualidade; compreender a busca de prazer como uma dimensão saudável da sexualidade humana; conhecer seu corpo e valorizar e cuidar de sua saúde; reconhecer como determinações culturais as características socialmente atribuídas ao masculino e ao feminino; proteger-se de relacionamentos sexuais coercitivos ou exploradores; conhecer e adotar práticas de sexo protegido; ao iniciar relacionamento sexual evitar contrair ou transmitir doenças sexualmente
transmissíveis, inclusive o vírus da Aids; desenvolver consciência crítica e tomar decisões responsáveis a respeito de sua sexualidade e procurar orientação para a adoção de métodos contraceptivos (BRASIL, 1997)8.

As viradas para os séculos XX e XXI não alterou a necessidade de corrigir os problemas familiares e os especialistas permanecem empenhados em estabelecer medidas de controle, interpretar os problemas das famílias consideradas como desestruturadas, normatizar o sexo e prescrever exercícios. Os especialistas contemporâneos permanecem fortemente vinculados ao cienticifismo e, segundo Costa (1979, p. 16), ao repetirem os mesmos discursos dos higienistas, promovem “maior disciplina, maior vigilância e maior repressão”. As ONGs e os especialistas assumiram a função dos higienistas.

É impreciso o limite entre o que a educação sexual, através de seus discursos, contribui para construir, como o conceito de gravidez precoce, e o que ela primeiro precisa entender e assimilar, para só então incluir em seus textos, como é o caso do comportamento relacional entre adolescentes contemporâneos denominado ficar. Mas mesmo que estejam ora produzindo cenários no qual organiza a condução de seus atores, ora atuando no entorno destes cenários e atores, os discursos sobre educação sexual não se diferenciam dos demais ao não se tratarem simplesmente de descrições dos atos, mas da incessante produção dos roteiros.

Schwartz (1974, p. 145) reconhecia que não era verdade ter o fluxo menstrual um
caráter venenoso como lhe foi atribuído durante séculos, mas afirmava que a “mucosidade nele contida parece possuir, às vezes, qualidades irritantes e capazes de fazer mal”. Segundo este autor, a menstruação poderia estar ainda relacionada às doenças venéreas: “Numerosos fatos parecem comprovar, realmente, que a secreção de pus pela uretra do homem pode provir do contato com o fluxo menstrual”. Esta associação entre menstruação e os mais diversos problemas estão vinculadas a muitos outros discursos produzidos pelos homens que tinham como objetivo desqualificar a mulher e ressaltar a diferença entre os sexos, em que os atributos femininos ocuparam o lugar negativo, inferior e produtor de doenças.

É neste contexto idealizado como universal e a-histórico que o adolescente é concebido por um discurso que diz compreender sua essência e ser portador de alternativas para corrigir os seus problemas. E é neste mesmo contexto que o adolescente é objeto de uma educação sexual cuja utilidade é inseri-lo numa sexualidade adulta e responsável, livre dos riscos considerados típicos desta fase da vida ainda em construção. Do início ao fim do século, e talvez durante os próximos, os discursos sobre educação sexual não se afastarão do princípio de falar com um adolescente único.

Um texto do papa João Paulo II intitulado “Carta às Famílias” e divulgado em 1994
reafirma a posição da igreja no sentido de que a educação sexual deve estimular a disciplina de guardar-se sexualmente para a pessoa amada.
A educação sexual, direito e dever fundamental dos pais, deve fazer-se sempre sob a sua solícita guia, quer em casa quer nos centros educativos escolhidos... Neste contexto é absolutamente irrenunciável a "educação para a castidade" como virtude que desenvolve a autêntica maturidade da pessoa e a torna capaz de respeitar e promover o 'significado nupcial' do corpo.
Por isso a Igreja opõe-se firmemente a uma certa forma de informação sexual, desligada dos princípios morais, tão difundida, que não é senão a introdução à experiência do prazer e um estímulo que leva à perda – ainda nos anos da infância – da serenidade, abrindo as portas ao vício.
O conhecimento deve conduzir a educação para o autocontrole: daqui a absoluta necessidade da castidade e da permanente educação para ela. Segundo a visão cristã, ela significa antes a energia espiritual que sabe defender o amor dos perigos do egoísmo e da agressividade e sabe voltá-lopara a sua plena realização. O resto é incitar o sexo fora de hora e fora de lugar.

A interpretação atual do tema castidade começou a se constituir nos livros publicados a partir da década de oitenta. Autores – como médicos e psicólogos – escrevem para os leitores adolescentes que a castidade não é uma imposição e sim uma opção para ambos os sexos. O psiquiatra Costa (1986), num dos capítulos de seu livro intitulado “Virgindade: necessária ou obsoleta?”, aconselha que a decisão dos adolescentes (masculinos e femininos) sobre a conservação ou não da virgindade deve ser uma opção definida por escolha pessoal e não partir de um condicionamento, preconceitos ou pressão familiar e social. E a psicóloga Sayão (1995, p. 19) afirma aos seus leitores que “sexo é bom, é gostoso, é natural, dá prazer” e que há muitas maneiras de contato sexual - “tem o tradicional papaimamãe, tem sexo oral, tem sexo anal, tem 69, tem tantas coisas!” (ibidem, p. 61) -, ressaltando que o mais importante é aquilo que cada um está a fim de curtir, reconhecendo o que deseja, pode e consegue fazer, desde que respeite seus limites e os de seu par. A autora
desvincula o ato sexual do amor e sugere aos adolescentes desfrutar do sexo o que ele pode dar de positivo, não transformando ou permitindo que transformem uma “coisa tão legal em algo assustador, aterrorizante” (ibidem, p. 125).

Durante muito tempo a virgindade feminina necessitou de proteção e vigilância.
Somente a partir da segunda metade do século XX, quando os métodos contraceptivos mais eficazes e de acesso mais fácil romperam o vínculo secular entre o ato sexual e a reprodução, que a interdição do ato sexual antes do casamento deixou de prevalecer para ambos os sexos.
É verdade que ainda permanece certo limite quanto ao número de parceiros com os quais a adolescente se relaciona, capaz de ser o fator divisor entre o comportamento socialmente aceitável e o que ainda é considerado promiscuidade, mas os textos leigos a partir dos anos 80 sobre educação sexual não ignoram que manter atividade sexual antes do casamento não é mais prerrogativa dos rapazes.

Atualmente os livros sobre educação sexual trazem propostas de debates sobre um
conceito (virgindade), uma escolha (ser ou não virgem) e um momento simbólico: a primeira vez. Em suas páginas é possível constatar o grande investimento sobre este marco na vida do indivíduo através de orientações que se constituem em algo semelhante a um manual de instruções: o que fazer, não fazer e como fazer, quais são os medos e as dúvidas, o acontecimento ou não de sangramento e dor, quais as posições e o local adequados.

Os argumentos utilizados para condenar a masturbação se basearam em associações
com eventos normais da puberdade (como o crescimento de pelos nas mãos e o surgimento de espinhas), com doenças (como a cegueira e a loucura) e em argumentos biológicos como o consumo de espermatozóides (que iriam faltar mais adiante). Estas associações oportunistas, falsas e ameaçadoras desencadearam nos pais a necessidade de vigiar e investigar e, nos jovens, a angústia da culpa e a necessidade da confissão.

O ato masturbatório não teria se constituído da importância que lhe foi devida se, como tantos outros hábitos humanos, não tivesse proporcionado a possibilidade da indução da vigilância permanente e com ela a penetração no íntimo das famílias e dos indivíduos, estratégia tão cara aos sistemas de poder. Tratou-se na verdade não de combater, evitar ou condenar, mas de estimular e valorizar como algo íntimo, um segredo, algo que exige da consciência um constante envolvimento e atenção em relação ao corpo e uma permanente necessidade de confessar seus excessos.

A abordagem do tema homossexualidade nos livros de educação sexual é um dos
exemplos da transitoriedade não apenas dos discursos, mas das verdades científicas. Durante o transcorrer do século XX é possível observar os deslocamentos discursivos que conduziram a homossexualidade da condição de perversão ao reconhecimento de que se trata de uma das maneiras do indivíduo vivenciar sua sexualidade, tendo transitado também pela categoria de doença.
Os primeiros livros sobre educação sexual abordavam o tema homossexualidade (na
época ainda denominada de homossexualismo) com o intuito de destacar o seu caráter de anormalidade e de chamar a atenção para o fato de que ela poderia se manifestar
eventualmente em qualquer indivíduo que não tomasse certos cuidados, seja em conseqüência de problemas de saúde, seja por comportamentos inadequados. A vigilância tanto dos pais como dos próprios adolescentes era necessária para preservar a heterossexualidade.

A opinião da igreja, entretanto, não acompanhou esta trajetória de absolvição.
Apoiando-se na Sagrada Escritura, os textos católicos ainda incluem a homossexualidade na categoria de depravação grave e contrária à lei natural ao fechar o ato sexual ao dom da vida.
Este comportamento considerado anormal e oposto à lei de Deus é, segundo os autores
católicos, devido a desequilíbrios que se desenvolvem na criança ou no jovem por problemas familiares – separações, brigas dos pais, mãe dominante, pai fraco, obsessão da mãe pelo filho, desinteresse e grosseria do pai, forte insegurança, experiência sexual fracassada ou traumática na adolescência ou educação sexual mal conduzida. – (AQUINO, 1996).
Considerando este conjunto de fatores desencadeantes, a igreja defende que a prevenção é a melhor terapia.

Um dos caminhos adotados no trajeto cujo destino era a absolvição da homossexualidade como desvio ou anormalidade foi o do reconhecimento do direito da opção individual. Caminho que não obteve sustentação por muito tempo devido à conclusão de que a homossexualidade ou a heterossexualidade não são objetos de escolha pessoal, de que não há um momento na vida do indivíduo no qual ele possa escolher entre as duas alternativas e de que provavelmente poucos homossexuais, se essa opção lhes fosse proporcionada, teriam escolhido o caminho da exclusão, discriminação e vitimização que lhes é imposta.

Esta trajetória para liberar a homossexualidade do estigma de anormalidade lembra
uma outra que há muito já atingiu seu objetivo: a questão da lateralidade. Aproximadamente dentro dos mesmos índices reconhecidos de indivíduos homossexuais (cerca de 10% da população), os canhotos foram durante muito tempo discriminados, corrigidos – inclusive com o uso de violência – e classificados de anormais. Atualmente o fato de escrever com a mão esquerda pode até chamar a atenção de algumas pessoas, mas está distante dos rótulos pejorativos e não se cogita em corrigir a criança com esta característica. Por algum motivo, que não cabe aqui desvendar, a necessidade de repressão aos canhotos deixou de ser interessante.

O reconhecimento de que existem diversas formas de relacionamentos amorosos, sem
que nenhum deles esteja no centro ou na periferia da normalidade consolidou-se nos livros sobre educação sexual do final do século XX. O discurso considerado politicamente correto que condena qualquer tipo de discriminação e defende o respeito pelas diferenças torna-se preponderante e os autores adotam a defesa da diversidade, desvelando mais uma vez a mobilidade dos marcadores que definem as fronteiras entre o normal e o desviante.

Ou seja, na conversa informal entre iguais o gay continua um desviante, motivo de
piada e ironia, mas durante uma atividade coletiva formal são raros aqueles que ainda defendem uma postura condenatória.

A constituição do normal sempre precisou não apenas de constante vigilância, mas da condenação do que nele não se enquadra, tendo sido a homossexualidade o objeto necessário de rejeição para permitir a produção da heterossexualidade. Mesmo quando
ocorreu o deslocamento da perversão para a doença, o indivíduo homossexual permaneceu estigmatizado. Segundo Badinter (1993, p. 106), “uma vez que a nossa concepção de masculinidade é heterossexual, a homossexualidade desempenha o útil papel de contraste, e sua imagem negativa reforça a contrário o aspecto positivo e desejável da heterossexualidade” (grifo da autora).

Discursos que, ao tomarem todos os lugares, destituíram de muitas
adolescentes o direito de vivenciarem a gravidez e a maternidade como algo positivo e desejável.

No último quarto do século diversos deslocamentos sócio-culturais, como o uso da
pílula anticoncepcional, o ingresso da mulher no mercado de trabalho, a afirmação dos direitos femininos, as alterações nos critérios sobre índices de natalidade adequados, ente outros, conduziram a mudanças significativas nos conceitos sobre a idade apropriada para o casamento e a gravidez, o número de filhos e os papéis de marido e esposa. Instituiu-se a partir de então o consenso de que uma gravidez deveria ser postergada para um período no qual a mulher já estivesse com seus estudos concluídos e inserida no mercado de trabalho.
A partir deste novo contexto, os argumentos contrários à gestação na adolescência
foram sendo construídos e divulgados, contando com o apoio essencial de considerações médicas sobre o assunto, o que contribuiu para torná-la semelhante a uma enfermidade a ser evitada e controlada em termos epidemiológicos. Os meios de comunicação abordam este tema com freqüência, geralmente adotando o discurso alarmista da precocidade, dos riscos, da irresponsabilidade, das conseqüências danosas e da necessidade da prevenção, reforçando o senso comum destas gestações como problemas a serem evitados. Foi dentro deste contexto que a gravidez adolescente teve seu perfil alterado e foi incluída no rol da ilegitimidade, da
irresponsabilidade, do mal a ser incessantemente combatido.

É necessário ressaltar que durante as décadas iniciais do século XX a mulher entre 15 e 18 anos era considerada como adulta e apta a estabelecer vínculos conjugais e maternais, evidenciando a mobilidade dos limites etários da adolescência conforme a época.

O contexto do final do século XX conduziu a educação sexual no sentido de adotar seus maiores e mais contundentes investimentos na prevenção da gravidez na adolescência.
Compatibilizando uma liberdade sexual, na qual todos os adolescentes têm o direito de, se esta for a vontade, ter uma vida sexual ativa, com a inadequação de uma gravidez não planejada e não inserida num relacionamento conjugal, a educação sexual proporcionou uma contribuição efetiva para a construção de um discurso incisivo de condenação da gravidez na adolescência. Neste tema, como em outros incluídos na educação sexual, os discursos adotam o critério do conceito único, válido para todos, de todas as idades e contextos sócioeconômicos.
A regra geral e que deve ser adotada por todos é evitar a gravidez.

Entretanto, diversas pesquisas têm demonstrado que em um número significativo de adolescentes, longe de significar um problema, a gravidez está inserida dentro de um projeto de vida no qual a convivência conjugal e a maternidade são fatores importantes. Nestas situações, a gravidez, independentemente da idade materna, está longe de representar uma crise, pois se situa dentro de um contexto de normalidade, considerando-se este conceito como algo previsível, esperado, desejado e não causador de conflitos. Os dados destas pesquisas mostram um perfil da gravidez na adolescência diferente do conceito de gestação imprevista, indesejada ou conflituosa, e sugerem que muitas adolescentes das classes populares mantêm um
comportamento semelhante aos das mulheres de gerações anteriores em relação à idade
adequada para assumirem a maternidade e o matrimônio.

O discurso único da educação sexual sobre a gravidez na adolescência, ao promover a
conscientização dos adolescentes para que adiem uma gravidez para mais tarde, traz consigo o efeito colateral de conduzir à discriminação e à condenação social àquelas adolescentes que, juntamente com seus companheiros, gostariam de vivenciar com alegria e felicidade a sua gestação.

Condenação que pode ser um dos principais motivos do elevado índice de abandono
escolar das adolescentes grávidas, ao lado de fatores como baixo rendimento escolar e várias repetências. Ao adotar o argumento da inadequação, poucas escolas conseguem sustentar em sala de aula uma aluna que, voluntária ou involuntariamente engravidou.

Outro aspecto que se associa à justificativa de prevenir a gravidez não planejada em
adolescentes, nesta educação sexual que adota o discurso amplamente condenatório, é a substituição do impedimento da relação sexual antes do casamento imposto às jovens. Se antes a adolescente não podia ter atividade sexual, hoje ela não pode engravidar, mesmo quando mantém um relacionamento estável com seu companheiro e deseje esta gravidez, pois esta não será reconhecida como legítima.

O outro discurso é o da igreja católica, que considera a abstinência como a única
conduta aceitável na prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e condena o incentivo ao uso do preservativo, pois isto estaria induzindo a promiscuidade. Esta postura tem se mantido ao longo do século e está presente em textos escritos por Barros (1956, p. 132) – “a continência é o único meio de se garantir a si e à própria descendência contra os desastres de infecções que envenenam” – e de Campos (1951, p. 121) ao reconhecer que “quando bate o rijo vendaval das paixões, o medo do contágio não é âncora suficientemente forte para reter a nau desgovernada”, e que só a força da fé cristã e de um ideal religioso são capazes de garantir a castidade e evitar a promiscuidade.
A igreja defende que a educação sexual para os adolescentes deve se fundamentar na
moral, na ética e no ensino do autodomínio e que a outra face do discurso do sexo seguro seria o incentivo ao sexo livre e à imoralidade. Em nota oficial sobre a distribuição de preservativos em escolas, uma proposta dos Ministérios da Saúde e Educação, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) declara que há urgência de um verdadeiro plano de educação sexual que valorize a afetividade, a responsabilidade e a fidelidade. A nota10 afirma também que a verdadeira e plena expressão da relação sexual se encontra no matrimônio e que a população,
especialmente dos adolescentes e jovens, deve ter acesso às informações necessárias que proporcionem um estilo de vida saudável e comportamentos pautados nos valores humanos e cristãos e não apenas na distribuição de preservativos11.

Com os nomes de doenças venéreas ou doenças sexualmente transmissíveis (DST), a
prevenção das doenças vinculadas ao sexo acompanhou a trajetória da educação sexual
durante todo o século. Vincent (1992, p. 382) relata que a primeira metade do século viu-se assombrada pelo avanço da sífilis e por discursos apocalípticos que anunciavam a “sifilização de toda a espécie humana, caso a moral não prevaleça sobre os impulsos”, situação que começou a se reverter após a Segunda Guerra Mundial com o surgimento dos antibióticos. Na segunda metade do século a sífilis e as outras doenças sexualmente transmitidas perderam importância no contexto da saúde pública.

Inserida nesta diretriz, a educação sexual assumiu a função essencial de atuar como um dos instrumentos através dos quais os adolescentes são induzidos a modificar os
comportamentos considerados de risco e assimilarem o uso do preservativo como uma atitude racional e responsável. O sexo seguro tornou-se o aval da sociedade para o exercício da sexualidade adolescente.

A preocupação com a questão dos prazeres, principalmente os sexuais, a relação que se pode ter com eles e o uso que deve ser feito deles, permanece atual. Como atual ainda é a constatação de que não são as interdições, mas a insistência sobre a atenção que convém ter para consigo mesmo, a importância de se respeitar a si mesmo, suportando a limitação e a privação dos prazeres.

A educação sexual reproduz textos que valorizam o cuidado de si, esta “intensificação da relação consigo pelo qual o sujeito se constitui enquanto sujeito de seus atos” (FOUCAULT, 2005-a, p. 47). E mantém, para intensificar e valorizar esta relação de si para consigo, vínculos estreitos com o pensamento e a prática médica, os quais definem maneiras de viver – com o próprio corpo, com o alimento, com a vigília e o sono e com o sexo –, propondo “sob a forma de um regime, uma estrutura voluntária e racional de conduta”(ibidem, p. 106).

O ato sexual é, há muito tempo, considerado algo perigoso, localizado muito próximo
do pecado ou da doença, necessitando ser constantemente vigiado e inserido num sistema de permanente controle.

É constante a tendência de responsabilizar o indivíduo – pela contaminação por doenças, pela obesidade, pela gravidez considerada inoportuna, pelos acidentes –, sem uma análise mais adequada das condições sociais que determinam a vulnerabilidade deste indivíduo a estas situações.

O ficar é um tipo de relacionamento cujas marcas são o descompromisso, a transitoriedade e onde o contato corporal entre os envolvidos é assumido como um
componente esperado desde o primeiro encontro. O desejo de manter contato físico, tocar e ser tocado, sentir excitação e prazer, explorar, conhecer tudo num momeno, não está vinculado a qualquer necessidade de interações posteriores entre os pares.

Agora os amores não são necessariamente únicos e podem ter prazo de validade. Os relacionamentos eventuais são nomeados como possibilidade de vivenciar intimidade, prazer e também, mas não necessariamente, amor.

Uma das normas atuais é a necessidade ou obrigatoriedade da proteção no início dos
relacionamentos sexuais, passando a ser consideradas desviantes, problemáticas ou de risco as relações desprotegidas. A exigência do uso do preservativo vai além do medo da contaminação ou de uma gravidez indesejada ao se configurar numa atitude socialmente responsável e que representa o cuidado consigo que o indivíduo desenvolveu. A substituição de controles e disciplinas externos praticados pelos pais para mecanismos internos dos indivíduos transferiu aos jovens a responsabilidade de “conciliar a exigência de reciprocidade com a realização individual; manifestar simultaneamente espontaneidade e autocontrole; comprovar flexibilidade e coerência em todas as situações” (BOZON, 2004-a, p. 152).

A possibilidade pode ter se tornado um imperativo no qual o sujeito é induzido a
perceber que aquilo que antes era proibido, agora não é apenas permitido ou opcional, mas tornou-se a única opção possível. Ao assumir o conceito de que “se eu posso, eu devo”, o indivíduo adota a obrigação de ter prazer e um bom desempenho sexual como norma, levando-o a buscar recursos artificiais que estimulam uma demanda por medicamentos, como o uso de Viagra por jovens, por implantes de silicone e por métodos que proporcionem o aumento dos órgãos genitais masculinos.

Entre as críticas à sexualidade contemporânea – nomadismo sexual dos indivíduos,
tirania do prazer e do desejo, permissividade e promiscuidade – e os elogios - consagra o direito ao prazer, liberação das minorias sexuais, igualdade sexual entre mulheres e homens, acesso generalizado à contracepção –, Bozon (2004-a) considera que a parte essencial das transformações dos comportamentos sexuais a partir dos anos 60 decorre de mudanças que, em princípio, não dizem respeito à sexualidade, como a massificação da educação ou o crescimento da participação das mulheres no mercado de trabalho. E que, por outro lado, as transformações das relações sociais, na e pela sexualidade, talvez sejam menos radicais do que se tem afirmado: elas antes constituem uma interiorização do que um relaxamento dos controles sociais.

Nesta redisposição dos papéis sexuais é perceptível que as transformações de maior
significado se refletiram mais no comportamento feminino do que no masculino. Esta
influência é evidente no rompimento da exigência do casamento para que a mulher tivesse direito à atividade sexual, na autonomia para iniciar e desfazer relacionamentos, na liberdade de decidir sobre o momento adequado para assumir a maternidade. Mas alguns conceitos ainda prevalecem, como o de que os homens se encontram submetidos a impulsos sexuais incontroláveis enquanto as mulheres detêm maior domínio sobre sua sexualidade e de que a multiplicidade abusiva de parceiros sexuais continua comprometendo a honra feminina:

Enquanto os homens são encarados como sujeitos do desejo independentes, as mulheres continuam a ser vistas como objetos a serem possuídos, ou como sujeitos cujo desejo é moderado. Incumbe às mulheres resolver as tensões da sexualidade: espera-se que elas tentem estabilizar e regular o desejo dos homens, contendo-os dentro de uma relação amorosa ou dentro de um casal (BOZON, 2004-a, p. 94).

Esta coexistência de valores resulta de um processo demorado que tenta reverter
conceitos consolidados há mais de um século19. Contribui também para esta ambivalência a distância ainda presente entre o que diz a educação sexual e o que a escola produz, fala e pratica. Definida como o local mais adequado para o desenvolvimento de programa de educação sexual, a escola, em geral, “não disponibiliza outras formas de masculinidade e feminilidade, preocupando-se apenas em estabelecer e reafirmar aquelas já consagradas como sendo ‘a’ referência” (FELIPE e GUIZZO, 2004, p. 33). Os modos diferentes daqueles estereótipos masculino e feminino definidos como adequados desde a intervenção higienista na sociedade não têm visibilidade no espaço da escola, onde ainda predomina o investimento na produção de um determinado tipo de homem e mulher e não de outros.

O maior esforço educativo deve ser dirigido para mostrar ao jovem que o sexo não é fonte exclusiva de prazer e sim principalmente de responsabilidade. O aviltamento do homem está em transformar uma de suas mais importantes funções, que é a sexual, em apenas fonte de gozo, com o desvirtuamento completo de suas autênticas finalidades. Na verdade, o sexo, com suas conseqüências individuais e sociais, é fonte de responsabilidades. [...] Assim sendo, homem e mulher precisam considerar o sexo como fonte de responsabilidades com relação a eles mesmos, aos filhos e à sociedade (NÉRICE, 1961, p. 161).

Na década de noventa é no mesmo sentido que os pais são orientados a proporcionarem
condições para que seus filhos adolescentes possam “usufruir de uma sexualidade com afeto e responsabilidade, o que significa valorizar as relações amorosas, respeitar os parceiros e tomar as medidas para evitar uma gravidez indesejável e doenças sexualmente transmissíveis” (SOUZA e OSÓRIO, 1993, p. 99). O sexo nunca perdeu a característica de estar associado ao risco, à possibilidade de queda e a ameaças de doenças e morte, o que tornou permanente a exigência de cuidados. A responsabilidade para consigo e com o outro nunca pode ser minimizada.

Mesmo quando os textos sobre educação sexual descortinaram o prazer como uma
possibilidade e um direito, numa relativa compensação aos temas prevalentes de prevenção de gravidez e Aids, – “a grande mudança que um trabalho de orientação sexual na escola traz é poder discutir a questão do prazer” (EGYPTO, 2003, p. 18), – ainda é necessário reconhecer até onde é possível e se quer, pode e consegue ir, respeitando os limites próprios e do outro, valorizando escolhas individuais e assegurando o direito de dizer não (SAYÃO, 1995).
A educação sexual sempre pretendeu falar do sexo sobre o ponto de vista purificado e
neutro da ciência, mesmo quando incluiu o corpo erótico como indissociável do reprodutivo.
Uma ciência feita de esquivas que conduziu a abordagem do sexo pelo viés das perversões, aberrações, patologias e extravagâncias, da vinculação essencial a normas médicas e que “a pretexto de dizer a verdade, em todo lado provocava medos” (FOUCAULT, 2005-b, p. 54).
Esta ciência do sexo preocupou-se em pesquisar, ouvir, catalogar e decifrar, embaralhando as relações entre poder, prazer e verdade para administrar o sexo através de discursos úteis e normativos, mantendo-o na função de atuar na integração social, na saúde pública e na reprodução da população.

Em resumo, poderíamos dizer que o ‘normal’ em sexualidade se resume ao satisfazer-se e satisfazer sexualmente seu parceiro ou parceira, desde que isto não traga riscos ou danos a si mesmo, ao (ou à) parceiro e ao meio social. Dentro desse princípio, o que cada pessoa ou cada par faz no âmbito restrito de suas vida privadas só a eles próprios interessa, cabendo a nós, como indivíduos e como membros da sociedade, respeitar as naturais eenriquecedoras diferenças que fazem do ser humano algo de tão maravilhoso (VITIELLO, 1997, p. 48).

O conceito de comportamento normal rompeu barreiras e segundo Sayão (1995, p. 99),
“se dá prazer para os dois, se os dois se curtem, não machuca o corpo, não humilha, não extrapola os limites de cada um, não perturba ninguém, está valendo! Os dois, juntos, é que decidem o que deve ser normal para o casal”. Esta maleabilidade da educação sexual em se adaptar às novas verdades aparenta uma preocupação com o indivíduo e sua liberdade. Mas se é para o sujeito que as orientações, os conselhos e as normas apontam, é no seu corpo que elas se fixam. É “no seu adestramento,na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos”, é neste corpo enquanto suporte de processos biológicos – “os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade” –, que se instalou uma tecnologia “recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida” (FOUCAULT, 2005-b, p. 131).

Estes programas vão propor uma educação sexual que promova a idéia da sexualidade
estar vinculada ao prazer, ou, como afirma Ribeiro (1990, p. 42), “contribuir para tornar a transmissão dos valores mais próxima de um padrão de comportamento voltado para o exercício de uma sexualidade sem culpa (na esfera pessoal) e sem opressão (na esfera social)”, pois, segundo este autor, investir na educação sexual é investir no crescimento global do indivíduo e aprimorar as relações humanas. Os manuais para a formação de professores educadores sexuais ressaltam a importância de fornecer aos alunos informações associadas à prevenção, a preservação da vida e da saúde e ao prazer, e não aquelas vinculadas à doença, à morte ou ao castigo.

Uma das conclusões freqüentes entre os autores é de que apenas a informação não muda
comportamentos e isto estaria evidente, segundo eles, no fato dos adolescentes engravidarem e se contaminarem, mesmo sabendo como evitar uma gravidez ou uma doença sexualmente transmissível. As mudanças comportamentais esperadas somente ocorreriam quando o adolescente integrar o conhecimento ao seu saber e ao seu cotidiano, o que seria mais factível de ocorrer através de debates sobre as dificuldades para o uso da camisinha entre os alunos do que uma palestra alertando sobre os riscos inerentes à negativa de usá-las nas relações sexuais (SUPLICY et. al, 1994).

Ellsworth (2001), ao descrever a teoria de endereçamento1, analisa a resistência dos
alunos ao conhecimento oficial, ou àquilo que estão aprendendo. Esta resistência
freqüentemente é analisada como algo que os estudantes fazem depois que eles já alcançaram a compreensão, ou seja, os estudantes “pegam” o conteúdo, mas, por questões que envolvem contextos sociais e culturais de desigualdade que incidem sobre a relação estudante/professor, se recusam a se conformar ou aceitar. Nesta perspectiva, quando o aluno resiste mesmo quando compreende o que supostamente deveria aprender, esta resistência é freqüentemente patologizada como alguma disfunção em sua capacidade de aprender ou assimilar conteúdos, resultante de problemas com suas capacidades cognitivas, grau de atenção ou motivação.
Esta interpretação equivocada ocorre, segundo Ellsworth, porque esta resistência não é analisada em termos do que acontece no espaço da diferença entre o lado de fora (o social, o currículo) e o lado de dentro (a psique individual, o estudante); porque o espaço da diferença entre o texto daquele que fala e a resposta daquele que escuta é ignorada; porque não há ajuste perfeito entre texto e leitura, modos de endereçamento e interpretações do espectador, currículo e aprendizagem, o estudante ideal ou imaginado e o real. O desenho da relação entre currículo e compreensão do estudante não pode ser o de uma estrada linear, de mão única, no
qual o currículo determina a compreensão, pois esta relação deve ser “desenhada como
constituída de oscilações, dobras e reviravoltas, voltas e retornos inesperados” (ibidem, p. 68).

A autora afirma ser impossível o ajuste perfeito entre o que um professor ou um
currículo quer e aquilo que um aluno compreende; entre o que uma instituição educacional quer e aquilo que o corpo estudantil responde; entre o que um professor ‘sabe’ e aquilo que ele ensina e entre o que o diálogo convida e aquilo que chega sem ser convidado. Além das informações não serem transmitidas para indivíduos “virgens” de conhecimentos sobre o tema, elas não serão apenas assimiladas, mas interpretadas de forma individual e misturadas a muitos outros componentes da vivência de cada aluno.

A idealização de uma escola cujo corpo docente tenha discernimento para detectar os
momentos adequados para introduzir questões sobre sexualidade, na qual o diálogo entre alunos e professores seja adequadamente aberto para proporcionar amplos debates sobre gravidez, aborto e Aids, onde a formação dos alunos permitirá a constituição de sujeitos conscientes e responsáveis, aptos a serem agentes transformadores da sociedade, tem dificuldades para se sustentar frente à realidade dos educandários brasileiros. Há vários motivos a reforçar esta dúvida sobre a capacidade da escola desenvolver programas de educação sexual dentro da metodologia proposta.

Um deles nos mostra que, enquanto o objetivo destes programas é produzir um aluno
livre e suficientemente orientado para fazer suas próprias escolhas, sua inserção ocorre no interior de práticas escolares que ainda atuam, em sua maioria, no sentido de definir o sujeito como centrado e unificado. Nas próprias propostas de programas de educação sexual, embora aqui e ali se perceba alguns breves destaques à pluralidade da adolescência, os autores adotam em geral a idéia do receituário único, onde falar é igual a falar para todos, não se detendo no entendimento de que os sujeitos / alunos são resultados de seus múltiplos relacionamentos, de seus recortes étnicos, de gênero, sociais e religiosos e produzidos no interior de
agenciamentos.

Estes discursos, entretanto, se mudaram de rumo, se excluíram o pecado, não perderam
suas características fundamentais de definir, enquadrar e rotular a sexualidade adolescente e, de algum modo, continuar a representá-la como algo que precisa ser vigiado e temido por suas possíveis transgressões. O objetivo, como escreveu Foucault (2006-c) em relação à sexualidade da criança no século XVIII, não é proibir, mas constituir, através da sexualidade adolescente, destacada como imortante e perigosa, uma rede de poder sobre a juventude. A sexualidade adolescente não é apenas objeto de análise, condenada ou tolerada, mas alvo de
intervenção e inserida num “sistema de utilidade”, regulada para o bem de todos e induzida a funcionar segundo um padrão ótimo (FOUCAULT, 2005-b).

Os manuais que orientam a implantação de programas de educação sexual nas escolas
extrapolam o objetivo de informar ou esclarecer. Os textos dos livros consultados em geral representam a sexualidade adulta como a “normal” ou o padrão a ser atingido e a adolescente como a diferente, imatura e incompleta, que precisa ser constantemente desvendada, cuidada e contida.

Neste início de século, por exemplo, pensar em educação sexual é promover estratégias para diminuir os índices de gravidez na adolescência e de contaminação
pelo vírus da Aids. Preocupações que não teriam o menor sentido na primeira metade do século XX.

Na introdução desta dissertação apresentei uma conceituação de bio-poder e, em outras passagens, a relação deste com alguns aspectos da educação sexual. Este poder sobre a vida das populações e dos indivíduos preocupa-se com o seu bem estar, com a sua saúde e segurança e, ao contrário da pregação católica, promete a boa vida e a salvação aqui na Terra. Para cumprir esta promessa, busca reforços em diversas instituições e utiliza alguns instrumentos, entre os quais o sexo é de importância fundamental.
A relevância do sexo como ferramenta para ações sociais, medidas sanitárias, controles e padronizações está reconhecida de longa data. A igreja há muito tempo, desde os primeiros séculos cristãos, percebeu a utilidade do sexo como um foco através do qual é possível atingir os indivíduos e as famílias, vinculando-o ao pecado e à necessidade de confissão. A partir do século XVIII, este tipo de influência foi assumido pelo Estado, o qual através da pedagogia (sexualidade da criança), da medicina (sexualidade das mulheres) e da demografia (regulação dos nascimentos), consolidou-se como o substituto do poder pastoral, alterando a metodologia e os objetivos, mas mantendo o foco.
Há no sexo tantas implicações cujas repercussões transitam do indivíduo até a
sociedade, que sua importância é constantemente valorizada. A relação sexual estabelece vínculos entre as pessoas, muitas vezes através de laços afetivos intensos; é a base dos índices de natalidade e da preocupação com a qualidade do pré-natal vivenciado pelas gestantes; é a fonte de doenças que se difundem com relativa facilidade, sendo algumas de acentuada morbidade e mortalidade; vincula-se a aspectos econômicos relevantes quando o sexo torna-se um produto a ser consumido. Estas implicações desencadeiam uma multiplicidade de discursos que tratam da sexualidade, sendo possível nomear entre eles os religiosos, os psicológicos, os médicos, os jurídicos e os pedagógicos, cujos objetivos aparentes são descrever e explicar, mas que na verdade nomeiam, elaboram e julgam. Trata-se de uma ampla mobilização para construir a verdade sobre o sexo, delimitar o terreno onde os
indivíduos podem transitar em relação a ele, definir as leis e as normas a serem cumpridas e estabelecer as penalidades aos infratores. Entre estes discursos, a relevância daqueles produzidos pelos médicos com o respaldo da ciência é essencial e está presente durante todo o transcorrer do século XX. Foram os médicos higienistas do começo do século que ao transformarem as características epidemiológicas da sociedade brasileira e melhorarem as condições de higiene e saúde da população, estabeleceram as bases para os conceitos de comportamentos normais, sadios e adequados em relação à sexualidade dos brasileiros. Foi também com a contribuição dos médicos que as doenças sexualmente transmissíveis foram prevenidas e tratadas de forma mais adequada, que os conceitos transitaram entre a perversidade e a normalidade da masturbação e da homossexualidade e a idade adequada para a gravidez foi adiada para após a adolescência. Fundamental para o exercício do bio-poder, a medicina contribuiu para que a sociedade, na busca de segurança e bem estar, concordasse em abdicar de parte da liberdade e da espontaneidade e de acreditar em outras verdades.

A pedagogia que produz uma normalidade que homogeneíza condutas e opiniões,
eliminando ou obscurecendo as diferenças individuais. A maioria dos textos de educação sexual, incluindo desde os mais antigos até os mais recentes, adota uma linguagem padroniz da e dirigida a um hipotético público adolescente uniforme, constituída por indivíduos brancos, de classe média, católicos e heterossexuais, desconsiderando fatores cuja influência nos comportamentos sexuais dos sujeitos, incluindo todas as suas práticas, significados e relacionamentos, são relevantes. Entre estes fatores, além da idade e das características individuais, estão os contextos sócio-econômico e cultural, os quais são preponderantes para definir como a vivência sexual vai ocorrer em cada indivíduo.

Embora os modelos a serem seguidos se modifiquem no transcorrer do século XX, eles
permanecem como base desta pedagogia que transita entre o “não deve” e o “deve fazer isto ou aquilo”, obscurecendo a visibilidade das escolhas pessoais. Esta tendência decorre de uma sistemática que tenta resistir às mudanças culturais e que se vale atualmente da escola como lugar privilegiado de saber sexual por ter esta instituição a característica ímpar de produzir uma homogeneização dos indivíduos que a família não pode proporcionar.

Esta ânsia de determinar e vigiar o normal, de estigmatizar os diferentes, de colocar a maioria dentro de padrões definidos, há muito nos confunde e atrapalha. Enquanto discutimos se somos brancos ou pretos, masculinos ou femininos, hetero ou homossexuais, não percebemos quantos indivíduos são vítimas desse discurso único ao serem focos de censura e discriminação e ao não conseguirem evitar sentimentos de culpa e vergonha. E enquanto tentarmos fazer com que os adolescentes comportem-se como os seus pais quando adolescentes, estaremos andando em círculos e ignorando que “é preciso tornar-se adulto, ou seja, capaz de inventar, de certo modo, a própria vida, e não simplesmente de viver a vida inventada pelos outros” (SAVATER, 2005-a, p. 42).

Esta relação entre educação sexual e adolescentes – ou generalizando, entre escola e
alunos –, não pode ser interpretada como uma via de sentido único cujo destino é a disciplina, a formação de indivíduos obedientes, conformados e defensores dos conceitos vigentes. Esta interpretação restritiva não vislumbra outras características destas relações que se tornam evidentes na análise dos espaços por onde emergem as dúvidas, as contestações, as práticas de liberdade e o surgimento de novos estilos de vida.

Em vez da tediosa pergunta ‘quem é você sexualmente?’, deveríamos perguntar ‘como podemos ser mais solidários entre nós?’. O que fazer para reinventar uma amizade, no sentido pleno da palavra, onde sexo deixasse de ser bicho-papão e pudesse ser só mais um ingrediente de nossas possibilidades de auto-realização? Por que, em vez de educação sexual, não começamos a pensar em novos experimentos sentimentais, amorosos, amigáveis? Quem sabe, assim, pudéssemos ver-nos livres de 200 anos de
sexualidade que só produziram intolerância, violência e perda de tempo.

Transitou por todo o século XX e permanece atual o enfrentamento entre os discursos católico e leigo, os quais falam de modo diferente das mesmas coisas. O primeiro condena o segundo por considerar que este induz à promiscuidade ao estimular o uso de preservativo. O segundo condena o primeiro por expor os adolescentes aos riscos de contaminação pelo vírus HIV e de uma gravidez indesejada ao condenar os métodos preventivos. O que se observou de deslocamento foi uma maior visibilidade aos argumentos leigos, aqueles que fazem a apologia do perigo.

Montardo