segunda-feira, janeiro 17, 2011

Gênero, Sexualidade e Educação

Ainda que movimentos coletivos mais amplos sejam certamente importantes, no sentido de interferir na formulação de políticas públicas — em particular políticas educacionais — dirigidas contra a instituição das diferenças e a perpetuação das desigualdades sociais, também parece urgente exercitar a transformação a partir das práticas cotidianas mais imediatas e banais, nas quais estamos todas/os irremediavelmente envolvidas/os. Há, no entanto, um modo novo de exercer essa ação transformadora, pois, ao reconhecer o cotidiano e o imediato como políticos, não precisamos ficar indefinidamente à espera da completa transformação social para agir.

O processo de "fabricação" dos sujeitos é continuado e geralmente muito sutil, quase imperceptível. Antes de tentar percebê-lo pela leitura das leis ou dos decretos que instalam e regulam as instituições ou percebê-lo nos solenes discursos das autoridades (embora todas essas instâncias também façam sentido), nosso olhar
deve se voltar especialmente para as práticas cotidianas em que se envolvem todos os sujeitos. São, pois, as práticas rotineiras e comuns, os gestos e as palavras banalizados que precisam se tornar alvos de atenção renovada, de questionamento e, em especial, de desconfiança.
A tarefa mais urgente talvez seja exatamente essa: desconfiar do que é tomado como "natural".

Trata-se de pôr em questão relações de poder que compartilhamos, relações nas quais estamos enredadas/os e que, portanto, também nos dizem respeito.

Dentre os múltiplos espaços e as muitas instâncias onde se pode observar a instituição das distinções e das desigualdades, a linguagem é, seguramente, o campo
mais eficaz e persistente — tanto porque ela atravessa e constitui a maioria de nossas práticas, como porque ela nos parece, quase sempre, muito "natural". Seguindo
regras definidas por gramáticas e dicionários, sem questionar o uso que fazemos de expressões consagradas, supomos que ela é, apenas, um eficiente veículo de
comunicação. No entanto, a linguagem não apenas expressa relações, poderes, lugares, ela os institui; ela não apenas veicula, mas produz e pretende fixar diferenças.

A linguagem é um turbilhão e nos usa muito mais do que nós a usamos. Ela nos carrega, molda, fixa, modifica, esmaga (seria talvez a depressão: sou
esmagada pela palavra) e ressuscita (não há a "palavra da salvação"?).

E impossível esquecer que uma das primeiras e mais sólidas aprendizagens de uma menina, na escola, consiste em saber que, sempre que a professora disser que
"os alunos que acabarem a tarefa podem ir para o recreio", ela deve se sentir incluída. Mas ela está sendo, efetivamente, incluída ou escondida nessa fala? Provavelmente é impossível avaliar todas as implicações dessa aprendizagem; mas é razoável afirmar que ela é, quase sempre, muito duradoura.

A conformidade com as regras de linguagem tradicionais pode impedir que observemos, por exemplo, a ambigüidade da expressão homem — que serve para designar tanto o
indivíduo do sexo masculino quanto toda a espécie humana. Aprendemos que, em muitas situações, a palavra supõe todas as pessoas, englobando, portanto,
homens e mulheres.

Além disso, tão ou mais importante do que escutar o que é dito sobre os sujeitos,
parece ser perceber o não-dito, aquilo que é silenciado — os sujeitos que não são, seja porque não podem ser associados aos atributos desejados, seja porque não
podem existir por não poderem ser nomeados. Provavelmente nada é mais exemplar disso do que o ocultamento ou a negação dos/as homossexuais — e da
homossexualidade — pela escola.

A ampla diversidade de arranjos familiares e sociais, a pluralidade de atividades exercidas pelos sujeitos, o cruzamento das fronteiras, as trocas, as solidariedades e os conflitos são comumente ignorados ou negados.

Tornar visível aquela que fora ocultada foi o grande objetivo das estudiosas feministas desses primeiros tempos. A segregação social e política a que as mulheres foram historicamente conduzidas tivera como conseqüência a sua ampla invisibilidade como sujeito — inclusive como sujeito da Ciência.

Deborah Britzman (1996, p. 74) afirma:
Nenhuma identidade sexual — mesmo a mais normativa— é automática, autêntica, facilmente assumida; nenhuma identidade sexual existe sem negociação
ou construção.
Não existe, de um lado, uma identidade heterossexual lá fora, pronta, acabada,
esperando para ser assumida e, de outro, uma identidade homossexual instável, que deve se virar sozinha. Em vez disso, toda identidade sexual é um constructo instável, mutável e volátil, uma relação social contraditória e não finalizada.

A proposição de desconstrução das dicotomias — problematizando a constituição de cada pólo, demonstrando que cada um na verdade supõe e contém o outro, evidenciando que cada pólo não é uno, mas plural, mostrando que cada pólo é, internamente, fraturado e dividido — pode se constituir numa estratégia subversiva e fértil para o pensamento.

Desconstruir a polaridade rígida dos gêneros, então, significaria problematizar tanto a oposição entre eles quanto a unidade interna de cada um.

Jonathan Katz (1996, p. 27), em livro no qual busca escrever uma história da heterossexuahdade, aposta num argumento interessante:
A não ser pressionado por vozes fortes e insistentes, não damos nome à norma, ao normal e ao processo social de normalização, muito menos os consideramos desconcertantes, objetos de estudo. A análise do anormal, do diferente e do outro, das culturas da minoria, aparentemente tem despertado um interesse muito maior.

Que detalhe parecerá a cada um/a deles/as mais significativo, mobilizador
de sua atenção, provocador de sua fantasia?

Os sentidos precisam estar afiados para que sejamos capazes de ver, ouvir, sentir as múltiplas formas de constituição dos sujeitos implicadas na concepção, na organização e no fazer cotidiano escolar. O olhar precisa esquadrinhar as paredes, percorrer os corredores e salas, deter-se nas pessoas, nos seus gestos, suas roupas;
é preciso perceber os sons, as falas, as sinetas e os silêncios; é necessário sentir os cheiros especiais; as cadências e os ritmos marcando os movimentos de adultos e crianças. Atentas/os aos pequenos indícios, veremos que até mesmo o tempo e o espaço da escola não são distribuídos nem usados — portanto, não são concebidos
— do mesmo modo por todas as pessoas.

O modo de sentar e andar, as formas de colocar cadernos e canetas, pés e mãos acabariam por produzir um corpo escolarizado.

Gestos, movimentos, sentidos são produzidos no espaço escolar e incorporados por meninos e meninas, tornam-se parte de seus corpos. Ali se aprende a olhar e a se
olhar, se aprende a ouvir, a falar e a calar; se aprende a preferir. Todos os sentidos são treinados, fazendo com que cada um e cada uma conheça os sons, os cheiros e os sabores "bons" e decentes e rejeite os indecentes; aprenda o que, a quem e como tocar (ou, na maior parte das vezes, não tocar); fazendo com que tenha algumas habilidades e não outras... E todas essas lições são atravessadas
pelas diferenças, elas confirmam e também produzem diferença.

No entanto, hoje, outras regras, teorias e conselhos (científicos, ergométricos, psicológicos) são produzidos em adequação às novas condições, aos novos instrumentos
e práticas educativas. Sob novas formas, a escola continua imprimindo sua "marca distintiva" sobre os sujeitos.
Através de múltiplos e discretos mecanismos,escolarizam-se e distinguem-se os corpos e as mentes.

Afinal, é "natural" que meninos e meninas se separem na escola, para os trabalhos de grupos e para as filas? É preciso aceitar que "naturalmente" a escolha
dos brinquedos seja diferenciada segundo o sexo? Como explicar, então, que muitas vezes eles e elas se misturem" para brincar ou trabalhar? É de esperar que
os desempenhos nas diferentes disciplinas revelem as diferenças de interesse e aptidão "características" de cada gênero? Sendo assim, teríamos que avaliar esses alunos e alunas através de critérios diferentes? Como professoras de séries iniciais, precisamos aceitar que os meninos são "naturalmente" mais agitados e curiosos do que as meninas? E quando ocorre uma situação oposta à esperada, ou seja, quando encontramos meninos que se dedicam a atividades mais tranqüilas e meninas que preferem jogos mais agressivos, devemos nos "preocupar", pois isso é indicador de que esses/as alunos/as estão apresentando "desvios" de comportamento?

Currículos, normas, procedimentos de ensino, teorias, linguagem, materiais didáticos, processos de avaliação são, seguramente, loci das diferenças de gênero,
sexualidade, etnia, classe — são constituídos por essas distinções e, ao mesmo tempo, seus produtores. Todas essas dimensões precisam, pois, ser colocadas em
questão. É indispensável questionar não apenas o que ensinamos, mas o modo como ensinamos e que sentidos nossos/as alunos/as dão ao que aprendem. Atrevidamente
é preciso, também, problematizar as teorias que orientam nosso trabalho (incluindo, aqui, até mesmo aquelas teorias consideradas "críticas"). Temos de estar
atentas/os, sobretudo, para nossa linguagem, procurando perceber o sexismo, o racismo e o etnocentrismo que ela freqüentemente carrega e institui.
Os questionamentos em torno desses campos, no entanto, precisam ir além das perguntas ingênuas e dicotomizadas.

A presença da sexualidade independe da intenção manisfesta ou dos discursos explícitos, da existência ou não de uma disciplina de "educação sexual", da inclusão ou não desses assuntos nos regimentos escolares. A sexualidade está na escola porque ela faz parte dos sujeitos, ela não é algo que possa ser desligado ou algo do qual alguém possa se "despir".

Não há dúvidas de que o que está sendo proposto, objetiva e explicitamente, pela instituição escolar, é a constituição de sujeitos masculinos e femininos heterossexuais — nos padrões da sociedade em que a escola se inscreve. Mas, a própria ênfase no caráter heterossexual poderia nos levar a questionar a sua pretendida "naturalidade". Ora, se a identidade heterossexual fosse, efetivamente, natural (e, em contrapartida, a identidade homossexual fosse ilegítima, artificial, não natural), por que haveria a necessidade de tanto empenho para garanti-la? Por que "vigiar" para que os alunos e alunas não "resvalem" para uma identidade
desviante"?
Por outro lado, se admitimos que todas as formas de sexualidade são construídas, que todas são legítimas mas também frágeis, talvez possamos compre-ender melhor o fato de que diferentes sujeitos, homens e mulheres, vivam de vários modos seus prazeres e desejos.

Há ainda uma difícil barreira de sentido a superar: para que um/a jovem possa vir a se reconhecer como homossexual, será preciso que ele/ela consiga desvincular
gay e lésbica dos significados a que aprendeu a associá-los, ou seja, será preciso deixar de percebê-los como desvios, patologias, formas não-naturais e ilegais
de sexualidade. Como se reconhecer em algo que se aprendeu a rejeitar e a desprezar? Como, estando imerso/a nesses discursos normalizadores, é possível articular sua (homo)sexualidade com prazer, com erotismo, com algo que pode ser exercido sem culpa?

Se acentuei as práticas comuns foi por supor que "prestamos pouca atenção" à eficiência da normalização cotidiana, continuada, naturalizada.

A linguagem, as táticas de organização e de classificação, os distintos procedimentos das disciplinas escolares são, todos, campos de um exercício (desigual) de poder. Currículos, regulamentos, instrumentos de avaliação
e ordenamento dividem, hierarquizam, subordinam, legitimam ou desqualificam os sujeitos.

Para Tomaz, o poder é precisamente "aquilo que divide o currículo — que diz o que é conhecimento e o que não é — e aquilo que essa divisão divide — que estabelece desigualdades entre indivíduos e grupos sociais".

Portanto, se admitimos que a escola não apenas transmite conhecimentos, nem mesmo apenas os produz, mas que ela também fabrica sujeitos, produz identidades étnicas, de gênero, de classe; se reconhecemos que essas identidades estão sendo produzidas
através de relações de desigualdade; se admitimos que a escola está intrinsecamente comprometida com a manutenção de uma sociedade dividida e que faz isso
cotidianamente, com nossa participação ou omissão; se acreditamos que a prática escolar é historicamente contingente e que é uma prática política, isto é, que se
transforma e pode ser subvertida; e, por fim, se não nos sentimos conformes com essas divisões sociais, então, certamente, encontramos justificativas não apenas para observar, mas, especialmente, para tentar interferir na continuidade dessas desigualdades.

Mas, não há como negar que a disposição de questionar nosso próprio comportamento e nossas próprias convicções é sempre muito mobilizadora: para que resulte em alguma transformação, tal disposição precisará ser acompanhada da decisão de buscar informações, de discutir e trocar idéias, de ouvir aqueles e aquelas que, histórica e socialmente, foram instituídos como "outros".

Guacira Lopes Louro
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pósestruturalista.5. ed. Petrópolis: Vozes, 2003.