sexta-feira, dezembro 19, 2008

Tem que ter por quê?

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Saudosa Amnésia

Memória é coisa recente
Até ontem, quem lembrava?
A coisa veio antes,
ou, antes, foi a palavra?
Ao perder a lembrança,
grande coisa não se perde.
Nuvens, são sempre brancas.
O mar? Continua verde.

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Se tudo existe para acabar num livro,
se tudo enigma a alma de quem ama!

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Como se a gente tivesse
metades que não combinam,
três partes, destempestades,
três vezes ou vezes três,
como se quase, existindo,
só nos faltasse o talvez.

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Paulo Leminski- Distraídos Venceremos.

domingo, novembro 23, 2008

Fim de Semestre

Mas professores são habitantes de um mundo diferente, onde o "educador" pouco importa, pois o que interessa é um "crédito" cultural que o aluno adquire numa disciplina identificada por uma sigla, sendo que, para fins institucionais, nenhuma diferença faz aquele que a ministra.
Por isso mesmo professores são entidades "descartáveis", da mesma forma como há canetas descartáveis, coadores de café descartáveis, copinhos plásticos para café descartáveis.
De educadores para professores realizamos o salto de pessoas para funções.

E isso se tornou tão arraigado que quando alguém nos pergunta o que somos, respondemos inevitavelmente dizendo o que fazemos.
Com essa revolução instarou-se a possibilidade de gerenciar a administrar a personalidade, pois que aquilo que se faz e se produz, a função, é passível de medição, controle, racionalização.
A pessoa praticamente desaparece, reduzindo-se a um ponto imaginário em que várias funções são amarradas.

É a ciência pouco ortodoxa da psicanálise que nos informa que o discurso sobre as ausências- discursos dos sonhos, das eperanças- tem o seu lugar na interioridade de nós mesmos, explodindo, emergindo, irrompendo sem permissão, para invadir e embaraçar o mundo tranquilo, racional e estabelecido de nossas rotinas institucionais.

Porque a conversação, este tênue fio que sustenta o mundo, é como a água em que nadamos. "os limites do seu poço denotam os limites do seu mundo."

Muito do esforço do homem para conhecer o mundo ao seu redor resulta de um desejo de conhecer coisas que lhe são pessoalmente importantes.

E que recuperemos a coragem de falar na primeira pessoa, dizendo com honestidade o que vimos, ouvimos e pensamos. Escrever biograficamente, sem vergonha.
Vai-se a modéstia dos impessoais, modéstia que esconde a arrogância da pretensão de universalidade.


Quando a realidade está em jogo, quem toca em uma das minhas palavras é como se tocasse nas meninas dos meus olhos.

O que está em jogo, não é uma técnica, um currículo, uma graduação ou pós-graduação. Nenhuma instituição gera aqueles que tocarão as trombetas para que seus muros caiam.

Economia? Mas o que é a economia senão a luta do homem com o mundo, homem que é corpo e quer tranformar o mundo inteiro numa extensão do corpo?

E o corpo aprende a fazer as necessidades fisiológicas nos lugares e tempos permitidos, a conquistar o relógio biológico e acordar segundo o tempo convencional das atividades socialmente organizadas, a se disciplinar como guerreiro, como artista ou como puro cérebro.

Os verdadeiros sábios não têm outra missão que aquela de nos fazer rir por meio de seus pensamentos e pensar por meio de seus chistes. (Octavio Paz)

O corpo só preserva as idéias que lhe sejam intrumendos ou brinquedos, que lhe sejam úteis, que o estendam, para a incorporação da natureza como parte de si mesmo; que lhe dêem prazer, porque não se vive só de pão, mas também de jogo erótico e artístico.

É justamente nesse ponto que se insere a questão da dificuldade da aprendizagem. O que é imediatamente experimentado não precisa ser ensinado nem repetido para ser memorizado. Quanto mais separado da experiência um determinado conteúdo, maiores e mais complicadas as mediações verbais. Acontece que, com freqüência, se processa uma separação definitiva entre o falado e o ouvido e a ciência se torna um jogo de conceitos. Marabalismo verbal, virtuosismo conceitual: não é por acaso que, nas teses de mestrado e doutoramento, poucas (na maioria dos casos nenhuma) sejam as perguntas sobre a relevância do assunto, enquanto todos se parecem vitalmente preocupados em saber se as regras da gramática científica, a metodologia, foram seguidas adequadamente.

Temo que estejamos formando milhares de bonecos que movem as bocas e falam com a voz de ventríloquos. Especialistas em dizer o que os outros disseram, incapazes de dizer sua própria palavra.

Reprimidos pelo fantasma do rigor os pesquisadores se põem em campo não em busca de problemas interessantes e relevantes, mas de problemas que podem ser tratados com os magros recursos metodológicos de que dispõem.

As agências financiadoras funcionam, assim, em graus diferentes, como agências que encomendam pacotes de conhecimento, e o cinetista é o especialista que produz o conhecimento, sob medida. Mas ninguém encomenda conhecimento por amor ao conhecimento. Se uma empresa particular está pronta a investir numa pesquisa, é porque ela sabe que tal investiento pagará dividendos altos.

O pesquisador e sua pesquisa podem ser sempre manipulados. Mas a manipulação se tornará tanto mais difícil quanto mais consciente ele estiver de sua condição de cientista passível de ser manipulado.

Se é a ordem social que é problemática, um comportamento ajustado tem como resultado o agravamento dessa mesma problemática. Uma educação extremamente eficaz, nesse caso, só tornaria piores as coisas. A educação, em vez de ser dirigida, deveria criar a consciência inquieta e crítica, que exatamente por ser desajustada teria as condições para pensar essas mesmas transformações.

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Educação é o processo pelo qual aprendemos uma forma de humanidade. Ele é mediado pela linguagem. Aprender o mundo humano é aprender uma lingugaem porque "os limites da minha linguagem denotam os limites do meu mundo."

As coisas vêm a uma criança vestidas pela linguagem, não em sua nudez física, e esta roupagem de comunicação faz com que ela se tranforme em alguém que participa da mesmas crenças que aqueles ao seu redor.

Assim são as coisas: a linguagem tem a possibilidade de fazer curto-circuitos em sistemas orgânicos intactos, produzindo úlceras, impotências ou frigidez. Porque são palavras que carregam consigo as proibições, as exigências e as expectativas. E é por isso que o homem não é um organismo mas este complexo linguístico a que se dá o nome de personalidade.

A palavra é testemunho de uma ausência. Como tal, ela possui uma intenção mágica, a de trazer à existência o que não está lá... A intenção de manter viva a promessa do retorno. Mais do que simples símbolos operacionais, as palavras me ligam aos objetos do meu amor, ausentes.

Na verdade não dizemos o que dizemos. O significado do discurso não é a mensagem conscientemente enunciada. Todo discurso, entretanto, é dito de uma determinada forma. Ele é regido por um como- que não é dito, que está nas entrelinhas, no pathos... É justamente aqui, no nível do não-articulado, que se encontra o sentido do discurso.

Conversas com quem gosta de ensinar- Rubem Alves.

segunda-feira, outubro 27, 2008

As Causas Morais da Loucura

Com Pinel, o manicômio se torna parte essencial do tratamento, não sera mais apenas o asilo onde se enclausura ou se abriga o louco, será um "instrumento de cura", conforme o definiu Esquirol.

Na leitura do Traité de Pinel, fica nítido que a etiologia passional ou "moral", lesão mental e manicômio são, inevitavelmente, complementares.

No plano estritamente teórico, o Traité marca um tempo novo na psicopatologia. Ele trouxe duas inovações importantes: a classificação nosográfica da alienação e a revalorização das paixões como fatores da loucura.

A alienação não e a perda abstrata da razão nem do lado da inteligência, nem do lado do querer e da sua capacidade de deliberar; mas é apenas alienação, apenas contradição na razão que ainda existe (...) (Hegel, 1830).

Visto que a doença agora é desordem, um estado de desiquilíbrio, a intervenção terapêutica deverá restituir o equilíbrio, rompido pela doença. Ela visa a devolver o alienado à ordem da racionalidade e dos afetos, de modo a fazê-lo reentrar na vida social ordenada e racional.

Há uma visão elitizada, até poética da loucura, que alguns tentam hoje defender e segundo a qual a loucura seria uma forma de liberdade ou de independência em relação aos padrões sociais- e até às leis da lógica. É uma concepção demasiado gratuita, que não passaria pela mente de qualquer clínico ocupado com os dramas do manicômio. (p. 85)

As aberrações imaginativas são alucinações, visões religiosas, delírios paranóicos e até impulsos de "grande criatividade", como uma surpreendente imaginação poética:

A imaginação, faculdade do intelecto que, mesmo para o homem sensato, é difícil de manter nos justos limites, desencadeia nas relações sociais (...) cenas loucas, ridículas e deploráveis. E não pode, então, ser fonte de ilusões, desvios, extravagâncias na alienação mental? Ela mistura e confunde sensações incompletas, que chegam à lembrança. (Pinel, 1809, II, 126).

Na introdução do livro, Pinel deixa claro que, de um modo geral, a causa da loucura é a "imoralidade", entendida como excesso ou exagero. Daí a terapia ser chamada tratamento moral de "afeições morais" ou "paixões morais". A loucura é excesso e desvio, a ser corrigido pela mudança de constumes, mudança de hábidos.

As paixões em geral são modificações desconhecidas da sensibilidade física e moral, que se podem distinguir por traços particulares que se manifestam por sinais externos. Embora algumas paixões possam parecer opostas entre si, como cólera, terror, ternura doce, ou alegria imprevista, são todas caracterizadas por espamos dos músculos faciais e se manifestam exteriormente com expressões típicas. (Pinel, 1809, I, 30).

Uma relação dinâmica entre a sobrecarga afetiva ou passional e a perda da razão é apenas entrevista, não como nexo causal que ligasse paixão descontrolada e loucura e sim como mais uma "evidência", básica, de que a alienação deve ser tratada pela mudança de costumes, por um tratamento moral.

A reeducação visada pelo "tratamento moral", pelo que essas considerações insinuam, deve enquadrar o comportamento desviante dentro dos padrões éticos.

Loucura, para Pinel: deveria incluir todos os evidentes erros de imaginação e de julgamento que os homens cometem, tudo o que irrita ou provoca desejos fantásticos.

O Tratamento Moral

A loucura seria frequentemente um produto das paixões e o tratamento moral implicaria em situação especial, na qual o paciente, livre de influências agravantes do convívio social, seria encaminhado para uma recuperação de sua plena racionalidade.

Enquanto reordenador e corretor de desvios, o médio adquire, no tratamento moral, dois aspectos novos. Ele agora é um pedagogo e uma autoridade moral.

O internamento de um louco deve tender a dar novas direção às suas idéias e aos seus afetos e a impedir qualquer desordem, qualquer distúrbio do qual ele possa ser a causa, e para impedir o mal que ele pode fazer a si mesmo e aos outros, se for deixado em liberdade. Assegurando-lhe novas impressões, livrando-o de seus hábitos e mudando seu modo de vida, chega-se àquilo que se destina o isolamento. - Esquirol.

Já na primeira metade do século XIX, o modelo institucional de Pinel e Esquirol se deteriora não só pelos abusos de um tratamento moral desvirtuado: quanto menos o manicômio se demonstrava um recurso terapêutico, mais aparecia como instrumento de segregação social , como uma instituição de custódia do louco.

O tratamento moral, talvez, não vos conduzirá à cura do doente: mas sempre lhe dará uma disposição favorável à ação de outros remédios; pode torná-lo mais calmo, mais dócil, mais razoável; vos trará ordem e quietude no manicômio, ou seja, aquela atmosfera moral que é, para uma mente enferma, o que é o ar puro para um corpo doente. (Livi, 1862).

Há uma inegável violência nas práticas. Um inegável autoritarismo.

O Século dos Manicômios- Isaias Pessoti.

domingo, setembro 28, 2008

Fina Película

Postula-se, inicialmente, que a doença é uma essência, uma entidade específica indicada pelos sintomas que a manifestam, mas anterior a eles, e de um certo modo independente deles (...).

Fenômenos que levam a descrever sua doença em termos de funções abolidas: a consciência do doente está desorientada, obscurecida, limitada, fragmentada.
Mas este vazio funcional é, ao mesmo tempo, preenchido por um turbilhão de reações elementares que parecem exageradas e como tornadas mais violentas pelo desaparecimento das outras condutas.

Não se deve então ler a patologia mental no texto demasiadamente simples das funções abolidas:
a doença não é somente a perda da consciência, entorpecimento de tal função, obnubilação de tal faculdade.
No seu corte abstrato, a psicologia do século XIX incitava esta descrição puramente negativa da doença;
e a semiologia de cada uma era muito fácil:
limitava-se a descrever as aptidões desaparecidas; a enumerar, nas amnésias, as lembranças esquecidas, a pormenorizar nos desdobramentos de personalidades as sínteses tornadas impossíveis.
De fato, a doença apaga, mas sublinha;
abole de um lado, mas é para exaltar de outro;
a essência da doença não está somente no vazio criado,
mas também na plenitude positiva das atividades de substituição que vêm preenchê-lo.


Uma descrição estrutural da doença deveria então, para cada síndrome, analisar os sinais positivos e negativos, isto é, detalhar as estruturas abolidas e as estruturas realçadas.

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Matar um animal na caça é uma conduta;
contar, depois do fato, que se matou um animal, é uma outra conduta.
Mas no momento em que se espreita, em que se mata,
conta-se a si mesmo que se mata, que se persegue, que se espreita,
para poder, em seguida, contar a epopéia aos outros;
ter simultaneamente a conduta real da caça e a virtual do relato,
é uma dupla operação, muito mais complicada que cada uma das duas outras,
e que só é mais simples aparentemente:
é a conduta do presente, germe de todas as condutas temporais,
na qual se superpõem e se imbricam o gesto atual e a consciência de que esse gesto terá um futuro,
isto é, que mais tarde poder-se-á narrá-lo como um acontecimento passado.

Isto quer dizer que estas condutas aparentemente tão simples que constituem a atenção no presente, o relato, a palavra,
implicam todas numa certa dualidade, que é no fundo a dualidade de todas as condutas sociais.


Se, então, o psicastênico acha tão árdua a atenção no presente, é devido às implicações sociais que obscuramente ele encerra;
tornam-se difíceis para ele todas estas ações que têm um contrario
(olhar-ser olhado, na presença;
falar-ser falado, na linguagem;
crer-ser acreditado, na narrativa)
porque são condutas que se desdobram num horizonte social.

Na evolução, é o passado que promove o presente e o torna possível;
na história, é o presente que se destaca do passado, confere-lhe um sentido e torna-o inteligível.
O devir psicológico é, ao mesmo tempo, evolução e história.

Todo este jogo de transformações e repetições manifesta que, nos doentes,
o passado só é invocado para substituir a situação atual;
e que só é realizado na medida em que se trata de irrealizar o presente.

Pode-se então dizer que a vantagem encontrada pelo doente em irrealizar seu presente na sua doença tem por origem a necessidade de se defender contra este presente.

A doença tem como conteúdo o conjunto das reações de fuga e de defesa atravéss das quais o doente responde à situação na qual se encontra;
é a partir deste presente, desta situação atual que é preciso compreender e dar sentido às regressões evolutivas que surgem nas condutas patológicas,
a regressão não é somente uma virtualidade da evolução,
é uma conseqüência da história.

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Quando o paranóico reprova seu companheiro por enganá-lo, quando sistematiza em torno desta infidelidade todo um conjunto de interpretações, não faz senão censurar no outro o que censura em si mesmo.

Contradição imanente, na qual os termos se misturam de tal forma que o compromisso, longe de ser uma solução, é em última instância um aprofundamento do conflito.

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Mas será possível compreender tudo? A característica da doença mental, em oposição ao comportamento normal, não é exatamente de poder ser explicada, mas resistir a qualquer compreensão.

A consciência que o doente tem de sua doença é rigorosamente original. Nada mais falso, sem dúvida, que o mito da loucura, doença que se ignora;
o distanciamento que separa a consciência do médico da consciência do doente não é medido pela distância que separa o conhecimento da doença e sua ignorância.

Um fato tornou-se, há muito tempo, o lugar comum da sociologia e da patologia mental: a doença só tem realidade e valor de doença no interior de uma cultura que a reconhece como tal.

A doença, reconhecida como tal, vê-se conferir um status pelo grupo que a denuncia.
Nossa sociedade não quer reconhecer-se no doente que ela persegue ou encerra;
no instante mesmo em que ela diagnostica a doença, exclui o doente.


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Estas casas não tem vocação médica alguma,
não se é admitido aí para ser tratado,
mas porque não se pode ou não se deve mais fazer parte da sociedade.

O internamento que o louco, juntamente com muitos outros, recebe na época clássica não põe em questão as relações da loucura com a doença, mas as relações da sociedade consigo própria, com o que ela reconhece ou não na conduta dos indivíduos.

Por outro lado a loucura, no internamento, criou parentescos novos e estranhos.
Este espaço de exclusão que agrupava, com os loucos, os portadores de doenças venéreas, os libertinos e muitos criminosos maiores ou menores provocou uma assimilação obscura, e a loucura estabeleceu com as culpas morais e sociais um parentesco que não está talvez prestes a romper.

Certamente Pinel fez ruir as ligações materiais (não todas entretanto), que reprimiam fisicamente os doentes.
Mas reconstitui em torno deles todo um encadeamento moral, que transformava o asilo numa espécie de instância perpétua de julgamento: o louco tinha que ser vigiado nos seus gestos, rebaixados nas suas pretensões, contradito no seu delírio, ridicularizado nos seus erros:
a sanção tinha que seguir imediatamente qualquer desvio em relação a uma conduta normal.

E isto sob a direção do médico que está carregado mais de um controle ético que de uma intervenção terapêutica.
Ele é, no asilo, o agente das sínteses morais.


O essencial é que o asilo fundado na época de Pinel para o internamento não representa a “medicalização” de um espaço social de exclusão;
mas a confusão no interior de um regime moral único cujas técnicas tinham algumas um caráter de precaução social e outras de estratégia médica.

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As dimensões psicológicas da loucura não podem então ser reprimidas a partir de um princípio de explicação ou de redução que lhes seria exterior.

Fala-se muito da loucura contemporânea, ligada ao universo da máquina, e ao esmaecimento das relações afetivas diretas entre os homens. Este vínculo não é falso, sem dúvida, e não é por acaso que o mundo mórbido toma tão frequentemente, hoje em dia, o aspecto de um mundo onde a racionalidade mecanicista exclui a espontaneidade contínua da vida afetiva.
Mas seria absurdo dizer que o homem doente maquiniza seu universo porque projeta um universo esquizofrênico no qual se perde;
falso mesmo pretender que ele é esquizofrênico porque aí está, para ele, o único meio de escapar ao constrangimento de seu universo real.(...)
O mundo contemporâneo torna possível a esquizofrenia, não porque seus acontecimentos o tornam inumano e abstrato, mas porque nossa cultura faz do mundo uma leitura tal que o próprio homem não pode mais reconhecer-se aí.

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Esta relação que funda filosoficamente toda psicologia possível só pode ser definida a partir de um momento preciso na história da nossa civilização:
o momento em que o grande confronto da Razão e da Desrazão deixou de se fazer na dimensão da liberdade e em que a razão deixou de ser para o homem uma ética para tornar-se uma natureza.

Há uma boa razão para que a psicologia não posso jamais dominar a loucura; é que ela só foi possível no nosso mundo uma vez a loucura dominada e já excluída do drama.

A psicologia é somente uma fina película na superfície do mundo ético na qual o homem moderno busca a sua verdade- e a perde.
Nunca a psicologia poderá dizer a verdade sobre a loucura, já que é esta que detém a verdade da psicologia.

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Doença Mental e Psicologia- Foucault.

domingo, agosto 24, 2008

O inconsciente é o discurso do outro.

O progresso de Freud, sua descoberta, está na maneira de tomar um caso na sua singularidade.

A história não é o passado.
A história é o passado na medida em que é historiado no presente- historiado no presente porque foi vivido no passado.

O caminho da restituição da história do sujeito toma a forma de uma procura da restituição do passado.

O fato de que o sujeito revive, rememora, no sentido intuitivo da palavra, os eventos formadores da sua existência, não é, em si mesmo, tão importante.
O que conta é o que ele disso reconstrói.

Direi- afinal de contas, o de que se trata é menos lembrar do que reescrever a história.

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O que conta, quando se tenta elaborar uma experiência, não é tanto o que se compreende quanto o que não se compreende.Uma das coisas que mais devemos evitar é compreender muito, compreender mais do que existe no discurso do sujeito.
Interpretar e imaginar que se compreende, não é de modo algum a mesma coisa. É exatamente o contrário.

Na relação do imaginário e do real, e na constituição do mundo tal como ela resulta isso, tudo depende da situação do sujeito.
E a situação do sujeito é essencialmente caracterizada pelo seu lugar no mundo simbólico, ou, em outros termos, no mundo da palavra.

O que é a ligação simbólica?
É, para colocar os pingos no ii, que socialmente nós nos definimos por intermédio da lei.
É da troca de símbolos que nós situamos uns em relação aos outros nossos diferentes eus.

Que um nome, por mais confuso que seja, designe uma pessoa determinada, é exatamente nisso que consiste a passagem ao estado humano. É nesse momento em que se entra na relação simbólica.

Todos os seres humanos participam do universo dos símbolos. Estão incluídos aí e o suportam, muito mais do que o constituem. São muito mais os suportes do que os agentes.
É em função dos símbolos, da constituição simbólica da sua história que se produzem essas variações em que o sujeito é suscetível de tomar imagens variadas, quebradas, despedaçadas, e mesmo, no caso, inconstituídas, regressivas dele mesmo.


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Quando eu digo projeção, não digo projeção errada.
Há uma fórmula que, antes de ser analista, eu tinha- com meus fracos dons psicológicos- colocado na base da pequena bússola de que me servia para avaliar certas situações.
Eu me dizia, não sem gosto: - Os sentimentos são sempre recíprocos. É absolutamente verdadeiro, apesar da aparência.
Desde que se coloque em campo dois sujeitos- digo dois, não três-, os sentimentos são sempre recíprocos.

O eu é referente ao outro. O eu se constitui na relação com o outro.
Ele é o seu correlato.

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Em espelho, é o caso de dizer que a criança reveste os objetos da mesma capacidade de destruição da qual é portadora.

Assim, a equação simbólica que redescobrimos entre esses objetos surge, de um mecanismo alternativo de expulsão e introjeção, de projeção e de absorção, quer dizer, de um jogo imaginário.

A introjeção é sempre introjeção da palavra do outro, o que introduz uma dimensão muito diferente da de projeção.
É em torno dessa distinção que vocês podem fazer a separação entre o que é função do ego e o que é função do supereu.

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Imaginem que este espelho é um vidro. Vocês se vêem no vidro e vêem os objetos além. Trata-se justamente disto- de uma coincidência entre certas imagens e o real.

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Qual é o móvel concreto que determina o funcionamento da enorme mecânica sexual? Qual é o seu desencadeador?
Não é a realidade do parceiro sexual, a particularidade de um indivíduo, mas algo que tem a maior relação com o que acabo de chamar o tipo, a saber, uma imagem.

Qual é a definição da imagem em óptica?- a cada ponto do objeto deve corresponder um ponto da imagem, e todos os raios saídos de um ponto devem se recortar em algum lugar num ponto único.

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O outro tem para o homem valor cativante, pela antecipação que representa a imagem unitária tal como é percebida, seja no espelho, seja em toda a realidade do semelhante.
O outro, o alter ego, confunde-se mais ou menos, segundo as etapas da vida, com o Ich-Ideal, esse ideal do eu invocado o tempo todo no artigo de Freud.
A identificação narcísica, a do segundo narcisismo, é a identificação ao outro que, no caso normal, permite ao homem situar com precisão a sua relação imaginária e libidinal ao mundo em geral.

A estreita equivalência do objeto e do ideal do eu na relação amorosa, é uma das noções mais fundamentais na obra de Freud, e a reencontramos a cada passo.

Freud faz uma lista dos diferentes tipos de fixação amorosa, que exclui toda referência ao que se poderia chamar uma relação madura- o mito da psicanálise.
Há inicialmente, no campo de fixação amorosa, o tipo narcísico.
Ele é fixado pelo fato de que se ama- primeiramente o que se é enquanto si mesmo, quer dizer, Freud precisa isso entre parênteses, si mesmo- em segundo lugar, o que se foi- em terceiro lugar ,o que se quereria ser, em quarto, a pessoa que foi uma parte do seu próprio eu.

No homem, nós o sabemos, as manifestações da função sexual se caracterizam por uma desordem eminente.
Não há nada que se adapte.
Essa imagem em volta da qual nós, psicanalistas, nos deslocamos, apresenta, quer se trate das neuroses ou das perversões, uma espécie de fragmentação, de explosão, de despedaçamento, de inadaptação, de inadequação.
Há aí como um longo esconde- esconde entre a imagem e seu objeto normal- se é que adotamos o ideal de uma norma no funcionamento da sexualidade.

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Essa hiância faz com que haja uma diferença radical entre a satisfação de um desejo e a corrida em busca do acabamento do desejo- o desejo é essencialmente uma negatividade, introduzida num momento que não é especialmente original, mas que é crucial, de virada.
O desejo é apreendido inicialmente no outro, e da maneira mais confusa.
A relatividade do desejo humano com relação ao desejo do outro, nós a conhecemos em toda reação em que há rivalidade, concorrência, e até em todo o desenvolvimento da civilização.

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Que o ego seja um poder de desconhecimento é o fundamento mesmo de toda a técnica analítica.

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Eis o grande erro de sempre- imaginar que os seres pensam o que dizem.

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Antes que o desejo aprenda a se reconhecer pelo símbolo, ele só é visto no outro.

O desejo do sujeito só pode, nessa relação, se confirmar através de uma concorrência, de uma rivalidade absoluta com o outro, quanto ao objeto para o qual tende.
E cada vez que nos aproximamos, num sujeito, dessa alienação primordial, se engendra a mais radical agressividade- o desejo do desaparecimento do outro enquanto suporte do desejo do sujeito.

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Freud escreve que o eu é feito da sucessão das suas identificações com os objetos amados que lhe permitiram tomar forma.
O eu é um objeto feito como uma cebola, poder-se-ia descasca-lo, e se encontrariam as identificações sucessivas que o constituíram.


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A ausência é evocada na presença, e a presença na ausência.
Isso parece uma banalidade, e parece ser óbvio.
Mas ainda é preciso dizer e refletir sobre isso.
Porque é na medida em que o símbolo permite essa inversão, quer dizer,
Anula a coisa existente, que ele abre o mundo da negatividade,
O qual constitui, ao mesmo tempo, o discurso do sujeito humano e a realidade do seu mundo enquanto humano.

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Talvez eu vá um pouco depressa.
Retenham isso, que o desejo nunca é reintegrado senão numa forma verbal, por nominação simbólica- está aí o que Freud chamou o núcleo verbal do ego.

Associação livre, este termo define muito mal o de que se trata- são as amarras da conversa com o outro que procuramos cortar.
A partir de então, o sujeito encontra-se numa certa mobilidade em relação a esse universo de linguagem no qual o engajamos.
Enquanto acomoda seu desejo em presença do outro, produz-se no plano imaginário essa oscilação do espelho que permite,
A coisas imaginárias e reais que não têm o hábito de coexistir para o sujeito,
Reencontrarem-se numa certa simultaneidade, ou em certos contrastes.

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O desejo do homem é o desejo do outro.

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A palavra ou o conceito não é outra coisa para o ser humano do que a palavra na sua materialidade. É a coisa mesma.
Isso não é simplesmente uma sombra, um sopro, uma ilusão virtual da coisa, é a coisa mesma.

Se considerarmos que há um laço estreito, permanente, entre a maneira pela qual um sujeito se exprime, se faz reconhecer, e a dinâmica efetiva, vivida, das suas relações de desejo, devemos ver que só isso introduz na relação de espelho ao outro uma certa desinserção, uma flutuação, uma possibilidade de oscilações.

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Sartre faz girar toda a sua demonstração em torno do fenômeno fundamental a que ele chama o olhar.
O olhar de que se trata não se confunde absolutamente com o fato, por exemplo, de que eu vejo os seus olhos.
Posso me sentir olhado por alguém de quem não vejo nem mesmo os olhos, e nem mesmo a aparência.
Basta que algo me signifique que a outrem por aí.
Está janela, se está um pouco escuro, e se eu tenho razões para pensar que há alguém atrás, é, a partir de agora, um olhar.
A partir do momento em que esse olhar existe, já sou algo de diferente, pelo fato de que me sinto em mesmo tornar-me um objeto para o olhar de outrem.
Mas, nessa posição, que é recíproca, outrem também sabe que sou um objeto que se sabe ser visto.


O olhar não se situa simplesmente ao nível dos olhos.
Os olhos podem muito bem não aparecer, estar mascarados.
O olhar não é forçosamente a face do nosso semelhante, mas também a janela atrás da qual supomos que ele nos espia.
É um x, o objeto diante do qual o sujeito se torna objeto.

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A resistência define-se, muito bem, aliás, relacionando-a ao fenômeno da linguagem- é tudo o que freia, altera, retarda o débito, ou então o interrompe completamente. Não se vai mais longe.

Há o esquema lógico-simbólico bem conhecido em que Freud deduz as diversas formas de delírios, segundo as diversas maneiras de negar Eu o amo- Não sou eu que o amo- Não é ele que eu amo- Eu não o amo- Ele me odeia- É ele que me ama- o que dá a gênese de diversos delírios- o de ciúme, o passional, o persecutório, o erotomaníaco, etc.

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Cada vez que temos, na análise da linguagem, de procurar a significação de uma palavra, o único método correto é fazer a soma dos seus empregos.

A palavra não tem nunca um único sentido, o termo, um único emprego.
Toda palavra tem sempre um mais-além, sustenta muitas funções, envolve muitos sentidos.
Atrás do que diz um discurso, há o que ele quer dizer, e atrás do que ele quer dizer, há ainda outro querer-dizer, e nada nunca será esgotado- se não é que se chega ao fato de que a palavra tem função criadora e faz surgir a coisa mesmo,
que não é nada senão o conceito.

A palavra, tanto ensinada quanto ensinante, está, pois, situada no registro da equivocação, do erro, da tapeação, da mentira.
Admite que o sujeito mesmo que nos diz algo, muitas vezes não sabe o que nos diz, e nos diz mais ou menos o que ele quer dizer.
O lapso é mesmo introduzido.

Na análise, a verdade surge pelo que é o representante mais manifesto da equivocação- o lapso, a ação a que se chama impropriamente falhada.
Somos, pois, levados pela descoberta freudiana a escutar no discurso essa palavra que se manifesta através, ou mesmo apesar, do sujeito.

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Que o psicanalista acredite saber alguma coisa, em Psicologia por exemplo, e já é o começo da sua perda, pela boa razão de que em Psicologia ninguém sabe grande coisa, a não ser que a Psicologia seja ela mesma um erro de perspectiva sobre o ser humano.

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Essa imagem de si, o sujeito a reencontrará sem cessar como o quadro mesmo das suas categorias, da sua apreensão do mundo- objeto, e isso, por intermédio do outro.
É no outro que ele reencontrará sempre o seu eu-ideal, donde se desenvolve a dialética das suas relações ao outro.

A complementação do imaginário se realiza no outro, à medida que o sujeito assume no seu discurso, enquanto o faz ouvir pelo outro.

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Jacques Lacan- O Seminário- os escritos técnicos de Freud.

quinta-feira, agosto 14, 2008

Deformações

Eu creio que só aprendemos coisas que nos dão prazer.
Fala-se no fracasso absoluto da educação brasileira, os moços não aprendem coisa alguma.
O corpo, quando algo indigesto para no estômago, vale-se de uma contração visceral saudável: vomita.
A forma que tem a cabeça de preservar sua saúde, quando o desagradável é despejado lá dentro, não deixa de ser o vômito: o esquecimento.
E creio mais: que é só do prazer que surge a disciplina e a vontade de aprender.
E justamente quando o prazer está ausente que a ameaça se torna necessária.

Todos sabem que o objetivo da educação é executar a terrível transformação:
Fazer com que crianças se esqueçam do desejo de prazer que mora nos seus corpos, para transforma-las em patos domesticados, que bamboleiam ao ritmo da utilidade social.

Enganam-se os que pensam que os cursinhos são organizações escolares dedicadas a ministrar um saber avançado.
Entre as disciplinas que normalmente servem em suas dietas encontra-se sempre a ansiedade como tempero gratuito.
É que ela é parte integrante das liturgias que acontecem em volta dos vestibulares.
Sem a magia negra da ansiedade eles seriam eventos banais, sem maior importância.
É a ansiedade que lhes dá sua dignidade específica, qualidade quase religiosa perante a qual todos se curvam, sabedores de que ali se joga com o sentido da vida.
Daí seu poder para penetrar no corpo: aquele frio na barriga, os pulsos sobressaltados no meio do sono, os olhos abertos que se recusam a dormir, as diarréias, a agressividade que gostaria de quebrar muita coisa e se contenta em aparecer domesticada sob a forma de uma úlcera.

A educação tem estado piorando na razão inversa da dificuldade dos vestibulares.
Se nossa educação chegou aos níveis baixos em que ela agora se encontra, é porque os vestibulares chegaram, inversamente, aos níveis altos de dificuldade em questão.

Pois é, com medo ninguém aprende a gostar de estudar.
É o prazer de estudar, de investigar, de perguntar, que faz da educação uma coisa bonita, gostosa.
Mas foi precisamente isso que os vestibulares destruíram, estendendo sua sombra de terror até sobre as crianças, através da ansiedade dos pais, que passam a preferir os colégios apertados, sem nem se dar conta de que tudo aquilo que aperta acaba por deformar.

Claro que o dono do ratinho poderá alegar:
- Mas veja os saltos enormes que ele dá!
Ao que eu retrucaria:
- Pare de medir os saltos. Veja o seu pêlo. Está eriçado de pavor.

O que eles pensam é no tipo de conhecimento que vai ajudar os estudantes a pôr as cruzinhas nos quadradinhos certos. E os vestibulinhos e simulados vão se tornando práticas comuns. Os professores que fazem e vendem livros didáticos, sabedores disto, tratam de colocar entre os problemas a serem resolvidos alguns com: Ita, 1999, Fuvest, 2000.

Os exames vestibulares, assim, não devem ser pensados como instrumentos adequados ou não para entrada na Universidade, mas antes como instrumentos de terror que determinam os rumos da educação com muito mais poder que todas as nossas leis.

Empresas fazedoras de vestibular. Pergunto: quais são os critérios que determinam a feitura de tais exames? São critérios educativos, por acaso?
Claro que não, são critérios empresariais, de produção em massa.
As questões devem ser feitas de tal maneira que o computador não se confunda. Escolhas objetivas (?) havendo apenas uma resposta certa. Para quê?
Para que os dados sejam processados de maneira uniforme (leia-se maquinalmente) e rapidamente (leia-se economicamente).

É isto que o vestibular nega.
As respostas certas já estão prontas, competindo ao aluno simplesmente identifica-las.
Quem é assim deformado a vida inteira não apenas não sabe escrever, como também não sabe conversar.

Os cursinhos cantam glórias: “- Conseguimos abrir as portas”.
Os pais abrem champanhe e congratulam.
Os moços raspam a cabeça e pintam a cara, alegres.
Tudo termina em uma triunfal celebração.
Sugiro, ao contrário, que se faça uma análise dos aleijões e das deformações.
Que foi que se perdeu? A educação que não houve.
Conhecimento idiota que a memória sábia se encarregará de esquecer o mais rápido possível.

Penso no vestibular não pelas rumorosas e magras celebrações que acompanham os sobreviventes, mas pelas cicatrizes que ficam em todos os demais.
Qualquer coisa que assim deforme a nossa juventude não merece continuar. Está reprovado pela vida.

A moral já está pronta: por vezes, a maior prova da inteligência se encontra na recusa em aprender.

Rubem Alves- Estórias de Quem Gosta de Ensinar.

domingo, agosto 03, 2008

Culpa x Educação

O processo consistiu em colocar vinho novo em tonéis velhos,
em incorporar todos a um ensino que não havia sido configurado pensando na sociedade em seu conjunto,
mas em uma reduzida parte da mesma.

Presumia-se que o que era ou parecia ser bom para os que até então vinham desfrutando-o com exclusividade também o seria para os demais.

Para dizer de outra forma, desaparecido em boa parte seu valor extrínseco- baseado essencialmente em sua escassez- havia de chegar o momento de perguntar-se pelo valor intrínseco dos ensinos convertidos em patrimônio de todos ou da maioria, isto é, os de acesso garantido e os de fácil acesso.

Na verdade, a educação carrega hoje um fardo muito pesado.
Em uma época de escasso ou nenhum crescimento líquido e desemprego em massa,
o discurso oficial responsabiliza a educação por ambas as coisas.

Ao colocar ênfase na centralidade das reformas educacionais para continuar ou melhorar na competição internacional,
está-se afirmando que se o país não vai melhor é por culpa do sistema educacional.

Ao insistir permanentemente no desgastado problema do “ajuste” entre educação e emprego, entre o que o sistema educacional produz e o mercado requer,
está se lançando a mensagem que o fenômeno do desemprego é culpa dos indivíduos, os quais não souberam adquirir a educação adequada,
ou dos poderes públicos, que não souberam oferece-la,
mas nunca das empresas,
embora sejam essas que tomam as decisões sobre investimentos e emprego e que organizam os processos de trabalho.


Assim, através da educação, a sociedade pôde prometer igualdade sem tocar nas instituições do mundo econômico.

O resultado foi um conjunto de reformas destinadas, país a país, a prolongar os períodos de escolaridade obrigatória, igualar as condições de escolarização e ampliar o tronco comum até faze-lo coincidir, ou quase, com o período obrigatório: em breve, as reformas compreensivas e o que pomposa ou desdenhosamente se chamou de “democratização” ou de “massificação” do ensino superior.

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Ano após ano, a disciplina é assinalada como o primeiro problema das escolas pelos cidadãos norte-americanos nas pesquisas Gallup. Os empregadores não se queixam tanto das qualificações dos egressos da escola quanto de seu individualismo, seu escasso respeito pela autoridade hierárquica, sua pouca disposição a assumir tarefas rotineiras ou sua idéia de que o trabalho deve ser uma atividade pessoalmente gratificante.

Embora a escola continue sendo essencialmente uma organização burocrática, normatizadora e disciplinadora, cuja principal função, que desempenha basicamente bem, é a socialização da força do trabalho, ela passou por profundas mudanças em direção a uma abertura, uma tolerância, uma liberalização e uma democratização crescentes, assim como uma maior atenção às necessidades, interesses e desejos dos alunos considerados individualmente ou em grupo.
O trabalho, pelo contrário, não conheceu nenhuma evolução similar: é por isso que, desde o ponto de vista dos empregadores, a escola já não cumpre adequadamente sua função.

O discurso da qualidade e a qualidade do discurso.
Mariano Fernandez Enguita.

Conhecimento x Mercadoria

Ampliar o setor privado de forma que comprar e vender- numa palavra, a competição- seja a ética dominante da sociedade envolve um conjunto de proposições estreitamente relacionadas. Ela supõe que o auto-interesse e a competitividade sejam as máquinas propulsoras da criatividade.

Naturalmente, diz-se que não se quer privilegiar apenas poucos.
Entretanto, isto é equivalente a dizer que todos tem o direito de escalar o Everest, sem exceção, sendo necessário obviamente ser muito bom em escalar montanhas e ter os recursos institucionais e financeiros para isso.

Uma economia capitalista avançada exige autos níveis de produção técnico/administrativo por causa da competição econômica nacional e internacional e para se tornar mais sofisticadas na maximização de oportunidades de expansão econômica, para o controle cultural e comunicativo e para a racionalização.

Isto se liga com o contínuo crescimento na necessidade de “pesquisa de mercado” e da pesquisa de relações humanas que cada firma exige para aumentar a taxa de acumulação e o controle do local de trabalho.
Tudo isso precisa da produção de informação através de máquinas (e da produção de máquinas cada vez mais eficientes).

Esses produtos- a mercadoria do conhecimento- podem ser não materiais no sentido tradicional do termo, mas não há dúvidas de que eles são produtos economicamente essenciais.

O controle de aspectos principais da ciência e do conhecimento técnico é obtido através do uso do monopólio de patentes e da organização e reorganização da vida universitária (e especificamente de seus currículos e de sua pesquisa).

A luta para obter financiamento para a pesquisa, para edifícios e equipamentos e para novos e melhores programas obrigou a universidade a se adaptar cada vez mais às prioridades das empresas, das fundações, do governo e de outros doadores da elite.
Uma nova união emergiu, na qual o comércio, a indústria e o governo federal são os principais parceiros da universidade.

O que os pós-modernistas esquecem- capital cultural e conhecimento oficial.
Michael W Apple.

Eficiência

Entre essas condições transformadas, há uma nova economia do afeto e do sentimento, uma forma nova e muito mais sutil de envolvimento e engajamento dos sujeitos e das consciências que a crítica tradicional, baseada em noções racionais e instrumentais de poder e interesse, pode ser incapaz de perceber, captar, penetrar e contestar.
Nessa compreensão, os chamados meio de comunicação não são vistos propriamente como meios de “comunicação” ou como meios de representação da realidade, mas como meios de fabricação de representações e de envolvimento afetivo do espectador e do consumidor.

Nessa operação, os problemas sociais- e educacionais- não são tratados como questões políticas, como resultado- e objeto- de lutas em torno da distribuição desigual de recursos materiais e simbólicos de poder, mas como questões técnicas, de eficácia/ineficácia na gerência e administração dos recursos humanos e materiais.

Assim, a situação desesperadora enfrentada cotidianamente em nossas escolas é vista como resultado de uma má gestão e desperdício de recurso por parte dos poderes públicos, como falta de produtividade e esforço por parte dos professores e administradores educacionais.

O sujeito “autônomo, racional, participativo, responsável” é também proposto no discurso neoliberal.

Existe a idéia de que a educação não seja financiada diretamente pelo Estado, mas que o Estado repasse aos pais (redefinidos como consumidores) uma determinada quantia, os quais então escolheriam, no mercado, a escola que mais conviria a seus filhos. Isso faria com que as escolas tendessem à eficiência ao competirem no mercado pelo dinheiro dos consumidores, o que resultaria num produto educacional de melhor qualidade.

Novamente, supor que haja uma escolha racional e livre é apenas diminuir as chances daqueles que estão mal posicionados para fazer uma escolha racional e livre. Assim se estará produzindo mais desigualdade e assimetria.
É até possível que se aumente assim a produtividade e a eficiência, mas é ainda preciso perguntar a quem essa produtividade e eficiência, mais uma vez, estarão servindo.

A “nova” direita e as transformações na pedagogia da política e na política da pedagogia
Tomaz Tadeu da Silva.

sábado, agosto 02, 2008

E depois?

A expansão quantitativa do ensino superior brasileiro não beneficiou a população de baixa renda, que depende essencialmente do ensino público.

A universidade pública expandiu-se no período compreendido entre 1930 e 1970, mas desse período até os dias atuais as políticas mercantilistas do ensino superior fortaleceram o setor privado, que hoje detém aproximadamente 90% das instituições e 70% do total de matrículas.

Desse modo, uma análise sobre a presença de categorias sociais antes excluídas do sistema de ensino levanta necessariamente a questão: o acesso à universidade, sim; e depois?

Assim, torna-se redutor considerar indiscriminadamente os casos de estudantes que têm acesso ao ensino superior como de "sucesso escolar".
Evidentemente, caberia explicitar o que se quer dizer com "sucesso escolar".

Ele representa o acesso, ou vai além para definir tanto a chamada "escolha" pelo tipo de curso quanto as condições de inserção, ou seja, de "sobrevivência" no sistema de ensino?

Muito diferente do que observou Nogueira (2003) em um estudo feito com universitários provenientes das camadas médias intelectualizadas, para os estudantes entrevistados a decisão pelo ensino superior não tem, como para aqueles, a conotação de uma quase "evidência", um acontecimento inevitável.

Chegar a esse nível de ensino nada tem de "natural", mesmo porque parte significativa deles, até o ensino fundamental e, em muitos casos, ainda no ensino médio, possuía um baixo grau de informação sobre o vestibular e a formação universitária.

Uma matéria publicada na Folha de S.Paulo de 18 de agosto de 2002, apoiada em dados do vestibular de universidades públicas do Rio de Janeiro e São Paulo, argumenta que a baixa auto-estima faz estudantes de escolas públicas desistirem de entrar na universidade antes mesmo de tentar o vestibular.

Acrescenta a matéria que "o fenômeno, conhecido por educadores estudiosos do assunto como auto-exclusão, acentuou-se nos últimos anos, apesar do aumento significativo do número de alunos formados no ensino médio público".

Na pesquisa realizada nota-se, com certa freqüência, que quando a previsão do fracasso não se confirma e o estudante é aprovado no primeiro vestibular, ou mesmo após outras tentativas frustradas, não raro ele duvida de sua capacidade e atribui o resultado obtido à ocorrência de "uma chance", "uma sorte".

Para preencher a lacuna da formação básica, há uma forte demanda pelos cursinhos pré-vestibular, estratégia bastante generalizada entre os egressos do ensino médio.

Considerando esses dados relacionados à formação básica, as dificuldades no momento da escolha da especialidade a ser seguida no curso superior são grandes.

O ensino superior representa para esses estudantes um investimento para ampliar suas chances no mercado de trabalho cada vez mais competitivo, mas, ao avaliar suas condições objetivas, a escolha do curso geralmente recai naqueles menos concorridos e que, segundo estimam, proporcionam maiores chances de aprovação.

Essa observação suscita uma reflexão sobre o que normalmente chamamos "escolha".

Quem, de fato, escolhe? Sob esse termo genérico escondem-se diferenças e desigualdades sociais importantes.

Para a grande maioria não existe verdadeiramente uma escolha, mas uma adaptação, um ajuste às condições que o candidato julga condizentes com sua realidade e que representam menor risco de exclusão.

Do acesso à permanência no ensino superior: percursos de estudantes universitários de camadas populares*- Nadir Zago

Mérito, capacidade, esforço, perseverança e determinação...

Hoje, os jovens são desafiados a estudar cada vez mais para manter a posição social em que se encontram.

Surgiram os cursos preparatórios aos vestibulares,
que se expandiram na proporção em que aumentava a demanda pelo ensino superior e a necessidade de maior qualificação da mão-de-obra.

São cursos de natureza lucrativa, especializados por áreas, dirigidos aos segmentos mais favorecidos da população e que, por décadas, têm alimentado o caráter seletivo do ensino superior, legitimado como a expressão verdadeira de uma política de igualdade de oportunidades e mérito.

A Declaração Mundial sobre Educação Superior no Século XXI, de 1998, reproduz o art. 26, §1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
segundo a qual a admissão à educação superior deve ser baseada no mérito, capacidade, esforço, perseverança e determinação dos seus candidatos.

Nesse sentido, continua a dar preferência a uma política baseada no mérito individual, agora, porém, com base em uma visão da educação superior considerada componente de um sistema contínuo de educação, vinculada aos demais níveis educacionais aos quais ela deve promover.

Nesse sentido, são particularmente reveladores os estudos sobre o perfil dos candidatos e ingressantes nas escolas que oferecem ensino superior gratuito, particularmente nas universidades e nos cursos de maior prestígio acadêmico e social.
Os indicadores desses alunos retratam uma situação em que são visíveis os efeitos perversos do princípio de igualdade de oportunidades.

No Estado de São Paulo, como já se afirmou, 85% dos alunos de ensino médio estudam em escolas públicas estaduais. Contudo, apenas 20% dos aprovados pela Fundação Universitária para o Vestibular – Fuvest – são oriundos dessas escolas.

Este é um tipo de constatação que tem fundamentado fartamente as críticas às universidades públicas, conduzidas por interesses os mais diversos.

Em lugar de igualdade de oportunidades importa falar em igualdade de condições.

Pré-vestibulares alternativos- Eleny Mitrulis; Sônia Teresinha de Sousa Penin

Prouni

Em suma, o Prouni promove uma política pública de acesso à educação superior, pouco se preocupando com a permanência do estudante, elemento fundamental para sua democratização.

Orienta-se pela concepção de assistência social, oferecendo benefícios e não direitos aos bolsistas.

Os cursos superiores ofertados nas IES privadas e filantrópicas são, em sua maioria, de qualidade questionável e voltados às demandas imediatas do mercado.

O princípio do Prouni segue essa orientação: promove o acesso à educação superior com baixo custo para o governo, isto é, uma engenharia administrativa que equilibra impacto popular, atendimento às demandas do setor privado e regulagem das contas do Estado,
cumprindo a meta do Plano Nacional de Educação (PNE - Lei nº 10.172/2001) de aumentar a proporção de jovens de 18 a 24 anos matriculados em curso superior para 30% até 2010.

Pretende, ainda, atender ao aumento da demanda por acesso à educação superior, valendo-se da alta ociosidade do ensino superior privado (35% das vagas em 2002, 42% em 2003 e 49,5% em 2004).

O crescimento das IES privadas dependeu, em grande medida, desse incentivo.

A falta de controle sobre o Prouni é tanta que muitos bolsistas perderam o ano: suas turmas foram fechadas pelas IES.
Embora tenham a obrigação de destinar esses alunos a outras IES, para que eles não percam o semestre, o ano ou mesmo o curso, a fiscalização tem sido débil.
Chega-se ao ponto de os bolsistas terem de se reinscrever em nova seleção do Prouni após não conseguirem realocação em outras IES

Nesse sentido, traz uma noção falsa de democratização, pois legitima a distinção dos estudantes por camada social de acordo com o acesso aos diferentes tipos de instituições (prioridade para a inserção precária dos pobres no espaço privado), ou seja, contribui para a manutenção da estratificação social existente.

É, assim, uma medida de impacto popular, privatista e de baixo custo orçamentário.


PROUNI: democratização do acesso às Instituições de Ensino Superior?*
Afrânio Mendes Catani; Ana Paula Hey; Renato de Sousa Porto Gilioli

Prouni

Não é de se surpreender que os investimentos públicos sejam os mais baixos da história recente do país e, após as sucessivas privatizações, perderam o papel que tinham como articuladores das condições de crescimento.

O caminho privado de expansão de matrículas, cursos e instituições, que foi tão intenso nos anos de 1970 e teve um novo surto expansivo nos anos de 1990, principalmente entre 1998 e 2002, resultou na criação de um número excessivo de vagas que, segundo informações recentes do INEP, é superior ao número de formandos no ensino médio.

Embora a demanda potencial por ensino superior não se restrinja ao número de concluintes do ensino médio, é muito difícil estimar o número de pleiteantes.
Neste cálculo, inclui-se não apenas parte dos recém-formados, como também aqueles que retornam tardiamente aos bancos escolares.

Este fenômeno dá indícios de que o segmento privado disponibiliza um contingente de vagas não procuradas pelos estudantes.
Esta situação gerou um quadro de incerteza no setor, ainda mais quando se leva em conta o grau de inadimplência/desistência.
A queda nos rendimentos reais e o nível elevado de desemprego dificultam a sustentação dos gastos com as mensalidades pelos assalariados.

Neste contexto, o Programa Universidade para Todos (PROUNI) surge com o discurso de justiça social, tendo como público-alvo os estudantes carentes, cujos critérios de elegibilidade são a renda per capita familiar e o estudo em escolas públicas ou privadas na condição de bolsistas.

Além disso, o programa estabelece, obrigatoriamente, que parte das bolsas deverá ser direcionada a ações afirmativas aos portadores de deficiência e aos negros e indígenas. A formação de professores de ensino básico da rede pública também consta como prioridade.

Tais medidas corroboram com os interesses de parte da sociedade civil, dos movimentos sociais em prol das ações afirmativas, bem como dos egressos do ensino médio público, por não se considerarem uma demanda potencial às instituições públicas frente às barreiras impostas pelos exames vestibulares.

A legitimidade social do programa encontra ressonância na pressão das associações representativas dos interesses do segmento particular, justificada pelo alto grau de vagas ociosas.

O PROUNI surge como excelente oportunidade de fuga para frente para as instituições ameaçadas pelo peso das vagas excessivas.

Não se encontram disponíveis as informações sobre o PROUNI: total de bolsas por IES, a relação total das ies que aderiram ao programa, o detalhamento dos cursos disponíveis e/ou escolhidos, o perfil dos estudantes (dados econômicos e sociais), taxas de evasão e desempenho acadêmico dos beneficiários.

Diante do quadro social e educacional deletérios, cabe questionar a efetividade de tal programa, uma vez que as camadas de baixa renda não necessitam apenas de gratuidade integral ou parcial para estudar, mas de condições que apenas as instituições públicas, ainda, podem oferecer, como: transporte, moradia estudantil, alimentação subsidiada, assistência médica disponível nos hospitais universitários e bolsas de trabalho e pesquisa.

Coerente com a nova lógica das finanças públicas, o diagnóstico do aumento de vagas ociosas - no segmento privado -, combinado à procura por ensino superior das camadas de baixa renda, fundamentou a proposta do MEC de estatização de vagas nas instituições particulares em troca da renúncia fiscal.

As instituições mais beneficiadas parecem ser as lucrativas, que não apenas estão submetidas às regras mais flexíveis, como também obtêm maior ganho relativo em renúncia fiscal, em troca de um número reduzido de bolsas de estudos.

Considerando-se sua legitimidade social, o programa pode trazer o benefício simbólico do diploma àqueles que conseguirem permanecer no sistema e, talvez, uma chance real de ascensão social para poucos que estudaram no seleto grupo de instituições privadas de qualidade.

Mas, para a maioria, cuja porta de entrada encontra-se em estabelecimentos lucrativos e com pouca tradição no setor educacional, o programa pode ser apenas uma ilusão e/ou uma promessa não cumprida.

Cristina Helena Almeida de Carvalho- O Jogo Político em Torno da Educação Superior.

Acesso

Uma das tendências centrais do ensino superior contemporâneo, em escala internacional, diz respeito à ampliação do seu acesso, fenômeno que se iniciou a partir da segunda metade do século XX.

Paralelamente ao processo de ampliação de acesso ao ensino superior, tem ocorrido uma retração do financiamento público que, de modo geral, não tem acompanhado o ritmo da demanda, que tem assumido feições específicas em cada sociedade concreta.

(...) assim passou a ocorrer um crescente engajamento das instituições de educação superior com empresas privadas, como uma estratégia de captação de recursos, para compensar a tendência de retração do aparelho estatal no financiamento de universidades sob a sua responsabilidade.

Na mesma esteira, recomendam também a transferência de recursos financeiros do ensino superior para a educação básica, apoiando-se na premissa de que o ensino público subsidia uma camada média e/ou grupos privilegiados que possuem condições para arcar com os custos de seus estudos.

Torna-se fundamental rever a lógica que tem comandado o seu funcionamento ao longo das últimas quatro décadas, em larga medida, ancorada na intensificação do processo de privatização e na corrosão de parte significativa das universidades públicas.

Uma reforma necessária - Carlos Benedito Martins

terça-feira, julho 22, 2008

Distorções

Pois realidade, tanto quanto identidade, é representação; realidade é o complemento simétrico da identidade e tão característico do sujeito como esta.
Então, a pessoa também experimenta realidades distintas e provisórias, testa mundos, prova aproximações alternativas ao real.

A identidade, enquanto representação do desejo, e a realidade, enquanto representação do real, são portanto postas entre parênteses por representações disruptivas que a análise oferece, sob forma de interpretações. Para que fazemos isso? Não apenas por sadismo, quero crer.

É que nosso paciente sofria de imobilidade.
Algumas condições peculiares de desenvolvimento haviam paralisado sua história em torno de um sentido que se congelara.
É isto o trauma para a psicanálise:
um nó do desejo que obriga a repetir.

Por interpretação não devemos entender aqui formulações verbais concretas que o analista emite durante uma sessão, a interpretação não reside nas palavras do psicanalista.
O motor do efeito psicanalítico, a interpretação, ocorre por uma acumulação temporal.

Ele me conta algo, eu escuto como se, além desse algo, outro tema se quisesse mostrar, que ainda desconheço.
Em face do campo futuro que a interpretação proporá, o assunto de meu paciente é escutado como se fora uma metáfora: leva para lá, para onde não se sabe ainda.
Creio que todo analista comete o mesmo desencontro calculado.

Não me parece inteiramente correto dizer presente.
É antes o tempo da presença dos possíveis, gramaticalmente falando, o condicional.
Aqui e agora, construíremos o sentido do passado que, alterado, modifica seu sujeito futuro.
É um futuro do pretérito a sessão analítica, tempo em que o passado se futuriza em presença possível, para ser testado, mudado, negado, por fim, recordado.

Corriqueiro engano pressupor que a análise se propõe a atender o pedido implícito do paciente que, preocupado com o aspecto assustador de seu mundo,
sugere que se lhe mostrem as coisas como de fato são.
Em primeiro lugar, não há isto de coisas como de fato são.

Procede daí a conhecida fórmula sob a qual toda a análise se dá sob o signo da frustração.

Nossa prática proíbe justamente que discutamos,
como duas pessoas sensatas,
qualquer dos dados de realidade trazidos pelo paciente,
antes, estamos condenados a tudo tomar como interpretável,
como meio de desvelamento.

Ser é perceber e ser percebido.
Assim, a psicanálise propõe uma situação sem objetos, sem acontecimentos fatuais, despida de verificação externa.

Já que na análise o discurso do paciente vale antes de mais nada como veículo de fantasias.
Há porém uma função da palavra que se impõe imediatamente como relevante.
Quando procuro organizar minha experiência presente na forma de um dizer articulado,
estou simultaneamente: comunicando, ainda que para mim mesmo, o que acredito estar sucedendo na realidade, na imaginação, na memória;
mas também faço outras coisas:
construo uma realidade insuspeitada, evoco memórias perdidas, provoco reações no interlocutor, descubro o que não sabia ainda.
Isto é, além de comunicar certos fatos já pensados, estou criando uma experiência original que deveria poder expressar.

É a constante ambigüidade da palavra, que cria muito mais do que consegue exprimir.
De tal fracasso deriva a noção de fantasia.

Não há percepção que deixe de ser emocional.
Não se conhece o ódio em si mesmo,
apenas o ódio a alguém ou a alguma coisa,
mas também não se conhece nada sem ódio, ou interesse, ou convicção, ou tédio;
não existe percepção de objeto neutra para servir de comparação à apreensão emocional do objeto,
visão correta para opor-se à distorcida.

Em essência, o psicanalista opera por rupturas de campo,
que desestabilizam as representações do sujeito.

Na prática quotidiana, o desejo é falado, é assunto, precisamente quando não tem vigência e está distante.
Quando é vigente, as palavras fogem dele:
o sujeito realiza seu desejo, satisfaz-se e mata-o.
Ou, pelo menos, mata a vontade, pois o desejo é insaciável,
o fim de um desejo é sua satisfação.

Se o desejo tem a palavra, não se realiza,
ao realizar-se, cala e passa a ser assunto inerte do dizer e do fazer.

Donde se pode interferir que o imperativo da satisfação, em nossa cultura ao menos, serve ao propósito da repressão, de maneira sutil e eficientíssima.
Aquilo de que falamos, a sexualidade, a intimidade, as emoções, e de que nos pedem que falemos sempre mais, realiza-se no dito como assunto, e morre.


Contra a palvavra do desejo é que se arma a repressão,
não contra exprimi-lo como assunto de conversa,
nem contra realizá-lo irrefletidamente.

No quotidiano, o paciente é construído, à sua revelia,
pelas regras que lhes organizam as emoções.

São regras culturais, em duplo sentido: provêm da cultura e criam cultura.
A construção do desejo, porém, como os andaimens de um edifício, não aparece:
o paciente ignora-se construído pelo desejo.
É o desejo que constrói sujeito e objeto.
O mundo aparece-me ordenado pela lógica do meu desejo,
única forma de apreensão que me é facultada:
e creio que o mundo é naturalmente assim.


Andaimes do Real- Fábio Hermann

domingo, julho 13, 2008

Todo delírio é um conforto...

O que é imoral na mentira não é a violação da sacrossanta verdade.

A última coisa que tem o direito de apelar a esta é uma sociedade
que coage seus membros compulsórios a se explicarem,
de forma a poder então apanhá-los de modo ainda mais seguro.


Entre os pérfidos indivíduos práticos de hoje,
a mentira há muito perdeu sua honrada função de iludir a cerca do real.
Ninguém acredita ninguém, todos sabem disso.

Na Psicanálse nada é verdadeiro a não ser em seus exageros.

Hoje, self-conscious significa apenas a reflexão sobre o Eu como um embaraço.
Em muitas pessoas já é um descaramento dizerem: "Eu".

As alegrias de tais homens, ou melhor, de seus modelos-
aos quais dificilmente algum ser vivo se iguala com exatidão,
pois as pessoas ainda são um pouco melhores do que a cultura em que vivem-
têm todas algo de uma violência latente.

Se é verdade que todo prazer suprassume em si desprazeres passados,
então aqui é o desprazer, como orgulho de suportá-los,
que é de maneira imediata, sem transformação,
estereotipadamente elevado à consideração de um prazer.

O cisco em teu olho é a melhor lente de aumento.

Uma tal investigação mostraria necessariamente que a doença própria de nossa época consiste precisamente no que é normal.

É assim que o pensamento se sumbete ao controle social do desempenho,
não somente onde tal controle lhe é imposto profissionalmente,
mas ao assimilar toda sua complexão a ele.
Porque o pensamento se converte em solução de tarefas designadas,
até mesmo o que não é designado passa a ser tratado de acodro com o esquema da tarefa.

Espontaneamente, ele já tende a comportar-se como se a todo momento tivesse que mostrar sua valia.
Pensar não significa mais nada a nao ser vigiar o tempo todo a capacidade própria de pensar.

Porém só muito tarde eu compreendi a lição aí contida:
a razão so pode resistir no desespero e no excesso,
é preciso o absurdo para nao se sucumbir à loucura objetiva
.

Adorno- Minima Moralia

Adoecimento do Contato

O domínio do privado como um todo é devorado por uma enigmática operosidade
que apresenta todos os traços da atividade comercial,
sem que nela haja propriamente algo para comerciar.

E logo não haverá mais nenhuma relação que não tenha em vista fazer relações,
nenhum impulso que não seja submetido a uma censura prévia,
embora a pessoa não se desvie do que convém.

A irracionalidade dos sistemas exprime-se na psicologia parasitária do indivíduo
quase tanto quanto em seu destino econômico.

Antigamente, quando ainda havia algo como a famigerada separação entre o trabalho e a vida privada, da qual já se tem quase saudades,
olhava-se com desconfiança e como um intruso sem modos quem perseguisse fins na esfera privada.
Hoje parece arrogante, estranho e deslocado quem se entrega a algo privado sem que nele se possa notar uma orientação para algum fim.

É de bom alvitre desconfiar de tudo o que é ingênuo, descontraído.

A sujeição da vida ao processo produtivo impõe de maneira humilhante a cada um algo do isolamento e da solidão que somos tentados a considerar como objeto de nossa superior escolha.

Ele pensa por equivalências e toda a sua vida privada está submetida à lei de dar sempre menos que o recebido,
porém sempre o suficiente para que se receba algo em retorno.

Em toda amabilidade que consente pode-se notar a seguinte reflexão:
"Será que isso é necessário, será que é preciso fazê-lo?"

Sua característica mais segura é a pressa de "retribuir" atenções recebidas,
de modo a não deixar surgir nenhuma lacuna na cadeia de atos de troca
nos quais se entra por conta própria.

As ordenações práticas da vida, que se apresentam como se favorecessem o homem, concorrem, na economia do lucro, para atrofiar o que é humano,
e quanto mais elas se estendem, tanto mais podam tudo o que é delicado.

Cada envoltório que se interpõe no relacionamento entre os homens é sentido como perturbação do funcionamento da máquina,
na qual não só estão incorporados como orgulhosamente se contemplam a si mesmos.

É o adoecimento do contato.
A alienação se manifesta nos homens precisamente no fato de que as distâncias são eliminadas.
Pois, é só enquanto não se importunam uns aos outros com coisas como dar e tomar, discutir e executar, dispor e funcionar,
que sobra espaço espaço suficiente entre eles para os delicados laços que os ligam uns aos outros
(...).

Considera-se agora a reta como o vínculo mais curto entre duas pessoas,
como se estas fossem pontos
.

Quanto mais alguém toma para si o partido de sua agressão,
tanto mais perfeitamente representa o princípio repressivo da sociedade.

Neste sentido, mais talvez do que em qualquer outro,
é válida a afirmação de que o mais individual é o mais universal.

Adorno- Minima Moralia.

sábado, julho 05, 2008

Vida Danificada

Em face da existência da fábrica de pão, a prece pelo pão nosso de cada dia tenha-se tornado uma mera metáfora.

O garçom não conhece mais os pratos, e se ele próprio sugerisse alguma coisa, teria que estar preparada para censuras por ultrapassar o que é de sua competência.
Ninguém se apressa para servir o freguês que está esperando há muto tempo, quando a pessoa dele incubida está ocupada:
o cuidado com a instituição, que atinge sua culminância na prisão,
passa à frente, como na clínica, do cuidado com o sujeito,
que se vê administrado como um objeto.

Ir atrás dos outros, atropelar-se, fazer filas, tudo isso substitui por toda parte as necessidades de certo modo racionais.

Sob o primado absoluto do processo de produção,
desaparece a finalidade da razão,
até ela rebaixar-se ao nível do fetichismo de si mesma e do poder exterior,
assim também ela se transforma de novo num instrumento,
igualando-se a seus funcionários,
cujo aparato intelectual serve apenas à finalidade de impedir o pensar.


É a crença de que o trabalho intelectual pode ser administrado segundo os critérios que decidem se uma ocupação é necessária ou racional.
Decide-se então hierarquizar as urgências.
Mas, quando se priva o pensamento de seu caráter involuntário, é precisamente sua necessidade que se vê cassada.
Ele se reduz a disposições substituíveis, intercambiáveis.


Como não pensar assim, quando se vê uma comissão a examinar com toda seriedade a urgência de certos problemas,
antes de soltar a equipe de colaboradores na execução de tarefas cuidadosamente designadas.

Os mesmos pais, para quem era uma questão de prestígio que a criança trouxesse para casa boas notas, eram os que menos toleravam que esta, à noite, lesse por um período longo demais ou fizesse o que, no seu entender, seria algum desperdício intelectual exagerado.

Só o astucioso entrelaçamento de trabalho e felicidade deixa aberta, debaixo da pressão da sociedade, a possibilidade de uma experiência propriamente dita. Ela é cada vez menos tolerada.
Mesmo as profissões ditas intelectuais alienam-se por completo do prazer, através de sua crescente assimilação aos negócios.
A atomização não está em progresso apenas entre seres humanos, mas também no interior de cada indivíduo, entre as esferas de sua vida.
Nenhuma realização pode estar ligada ao trabalho, que perderia assim sua modéstia funcional na totalidade dos fins;
nenhuma centelha da reflexão pode invadir as horas do lazer,
pois ela poderia saltar daí para a esfera do trabalho e incendiá-la.

Enquanto em sua estrutura trabalho e divertimento se tornam cada vez mais semelhantes,
as pessoas passam a separá-los de um modo cada vez mais rígido com invisíveis linhas de demarcação.
De ambos foram expulsos, na mesma proporção, o prazer e o espírito.
Lá como cá imperam a seriedade sem humor e a pseudo-atividade.

Enquanto as escolas adestram as pessoas no uso da fala, os alunos emudecem cada vez mais.
Eles são capazes de fazer conferências, suas frases qualificam-nos para os microfones diante do qual se vêem colocados como representantes da média das pessoas, mas a capacidade de falarem uns com os outros se atrofia.
Pois esta pressupõe ao mesmo tempo experiências dignas de serem comunicadas, liberdade de expressão, independência e, ao mesmo tempo, relacionamento.
No sistema que tudo abrange, a conversação transforma-se em ventriloquismo.

Esse determinismo linguístico por adaptação é o fim da linguagem:
a relação entre as coisas e a sua expressão está cortada,
e assim como os conceitos dos positivistas devem ser apenas as fichas de jogo,
do mesmo modo os conceitos da humanidade positivista transformaram-se literalmente em moedas.
A pessoa quer fazer o maior número possível de pontos:
não há conversação em que não se insinua como um veneno a oportunidade de competir:
Os afetos, que nas conversas dignas de seres humanos diziam respeito ao assunto tratado,
aderem tenazmente à pura vontade de ter razão,
sem nenhuma relação com a relevância do que é afirmado.


Mas, como puros meios de poder, as palavras despidas de toda a magia adquirem um poder mágico sobre aqueles que as empregam.
Eles formam uma zona de contágio paranóico e é necessária toda a razão para quebrar seu encanto.
A magia que envolve os slogans políticos grandiosos e nulos repete-se no plano privado nos objetos aparentemente os mais neutros:
a rigidez cadavérica da sociedade estende-se até a célula da intimidade, que se julgava protegida contra ela.

A pressa, o nervosismo, a instabilidade, observados desde o surgimento das grandes cidades, alastram-se hoje de uma forma tão epidêmica quanto outrora a peste e a cólera.
Todas as pessoas têm necessariamente algum projeto.
O tempo de lazer exige que se o esgote.
Ele é planejado, utilizado para que se empreenda alguma coisa,

preenchido com visitas a toda espécie de espetáculo,
ou ainda apenas com locomoções tão rápidas quanto possível.
A sombra de tudo isso cai sobre o trabalho intelectual.
Este é realizado com má consciência, como se tivesse sido roubado a alguma ocupação urgente, ainda que meramente imaginária.
A fim de justificar-se perante si mesmo,
ele se dá ares de uma agitação febril, de um grande afã,
de uma empresa operando a todo vapor devido à urgência do tempo e
para a qual toda reflexão- isto é, ele mesmo- um estorvo.

A vida como um todo deve parecer uma profissão,
devendo dissimular através dessa semelhança o que ainda não está imediatamente consagrado ao lucro.
Tudo isso é feito com muita pressa, pois nos terremotos não se toca o alarme.
A pseudo-atividade é um resseguro, é a expressão da disposição para a auto-renúncia, único meio pelo qual ainda se presume garantir a autoconservação.

O vazio psicológico é ele próprio apenas o resultado da falsa absorção social.
O tédio de que as pessoas fogem é um mero reflexo do processo de fuga no que elas há muito tempo estão envolvidas.
É por essa razão, somente, que o monstruoso aparato de diversão mantém-se vivo e se expande cada vez mais, sem que um único indivíduo dele extraia divertimento.

O duplo caráter do progresso, que sempre desenvolveu o potencial de liberdade ao mesmo tempo que a realidade efetiva da opressão,
acarretou uma situação em que os povos ficavam cada vez mais integrados no processo de dominação da natureza e na organização social, tornando-se, porém, em virtude da coerção infligida pela cultura, ao mesmo tempo incapazes de compreender em que sentido a cultura ia além dessa integração.

As forças produtivas também não são o substrato último do homem, mas representam tão somente a forma histórica do homem, adequada à produção de mercadorias.

Até mesmo o prazer seria por isso afetado, visto que seu esquema atual é inseparável da industriosidade, do planejamento, intenção de impor sua vontade, da sujeição.

Minima Moralia- Reflexões a partir da vida danificada- 2a parte.
Theodor W. Adorno.

domingo, junho 29, 2008

Remorsos

De fato, há um prazer na própria intensidade dos sentimentos;
por isso,
desconfio um pouco das palavras com as quais os manifestamos.

Simplificando, há duas grandes categorias de expressões:
constatativas e performativas.

Se digo "Está chovendo", a frase pode ser verdadeira se estamos num dia de chuva ou falsa se faz sol;
de qualquer forma, mentindo ou não, é uma frase que descreve, constata um fato que não depende dela.

Pois bem, nunca sei se as declarações de amor são constatativas
("Digo que amo porque constato que amo")
ou performativas ("Acabo amando por dizer que amo").
E isso se aplica à maioria dos sentimentos.

É uma experiência comum: externamos nossos sentimentos para vivê-los mais.
Nada contra: sou a favor da intensidade das experiências,
mesmo das dolorosas.
Mas há dois problemas.

O primeiro é que o entusiasmo com o qual expressamos nossos sentimentos pode banalizá-los.
Ao declarar meu amor, por exemplo, esqueço conflitos e nuances.
No entusiasmo do "te amo",
deixo de lado complementos incômodos
("Te amo, assim como amo outras e outros" ou
"Te amo, aqui, agora")
e adversativas que atrapalhariam a declaração com o peso do passado
ou a urgência de sonhos nos quais o amor que declaro não se enquadra.

O segundo problema é que nossa verborragia amorosa atropela o outro.
A complexidade de seus sentimentos se perde na simplificação dos nossos,
e sua resposta ("Também te amo"),
de repente, não vale mais nada ("Eu disse primeiro").

Por isso, no fundo, meu ideal de relação amorosa é silencioso, contido, pudico.

A ausência da fala amorosa acaba sendo um presente que os amantes se fazem reciprocamente, uma forma extrema (e freqüentemente perdida) de respeito pela complexidade de nossos sentimentos e dos sentimentos do outro que amamos.

Amores silenciosos- Contardo Calligaris

sexta-feira, junho 20, 2008

A Desconstrução do Masculino

Tarzan, o arquétipo do herói viril e lutador, já começou este século decrépito. Homer Simpson, o pai do desenho Os Simpsons, da tevê, seria a imagem mais aceita pela mídia como protótipo do homem médio.
Mas quem já viu o cartoon sabe que ele é, também, o oposto da virilidade e da sedução, um anti-herói.

A partir do individualismo moderno a representação social masculina entra em declínio mergulhando em um longo processo de decadência.

Este declínio chega ao final do século XIX através das "crises de identidade" e posteriormente da "crise masculina", culminando com o fim dos "metarrelatos".

Uma crise necessária que beneficiou a consolidação dos movimentos sociais de emancipação permitindo a positivação de identidades até então negativadas (mulher, etnias e homossexuais).

Por outro lado, tal crise tornou-se um dispositivo gerador de situações violentas na medida em que, para as sociedades ocidentais, ser homem passou a significar sinônimo de truculência , boçalidade ou ainda daquele que é politicamente incorreto.

Desde então, a masculinidade se configura como o conceito que representa a um só tempo o mundo das tradições, combatido pelos discursos de "minoria" e também, o que deve ser aspirado por estes como parâmetro da consolidação dos direitos individuais.

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A lógica de construção da masculinidade é diferente daquela sob a qual se produz a feminilidade.
Parafraseando Simone de Beauvoir, a literatura recente sobre o tema diz que não se nasce homem, torna-se homem.
Eu não encontrei essa mesma lógica nas sociedades que analisei. Isso é um equívoco.
As sociedades não tratam a masculinidade como um vir a ser indivíduo.
É homem ou não.
As mães ficam preocupadas com a possibilidade de seus filhos se tornarem homossexuais.
Sobre os meninos há sempre vigilância: ele é homem ou não é homem?
Com as meninas, não. Não se duvida que uma menina vá se tornar mulher.
Há uma certeza: ela será uma mulher.
Poderá até se tornar uma homossexual, mas, mesmo assim, sua feminilidade não será colocada à prova.
Com os meninos, não acontece o mesmo.

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Mesmo diante da depressão social, existia a lembrança do vigor, do desejo de ir além.
Simpson é expressão da conformidade, da impotência e da inércia.
As sociedades ocidentais prescindiram do investimento para criar novas formas de representação daquilo que faz com que um homem se sinta homem.
No final dos anos 90, encontramos a representação de um homem banalizado. Homer

A história do Ocidente é assim: no passado, demandou um homem violento, agressivo, corajoso, vigoroso, necessário à demarcação de fronteiras e garantias do Estado.
A história valorizou este homem, mas hoje ele não tem mais função.

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As tecnologias reprodutivas nos apontam para uma tendência quanto à questão da reprodução humana.
Ela acontece cada vez mais fora do corpo.
As técnicas de reprodução in vitro, a clonagem, as estratégias de mapeamento de DNA, enfim, há vários sinais de que isso pode acontecer.
Diante disso, qual será a função da sexualidade?
Finalmente, ela ficará exclusivamente restrita ao prazer, sem nenhuma implicação com a reprodução.
Ou seja, ela deixará de ser regulada pela relação homem/mulher como convencionalmente conhecemos.
O homem, portanto, entra nesse mundo como objeto de entretenimento.
A sexualidade, tal e qual conhecemos tradicionalmente, não tem mais sentido nesse mundo regulado pela tecnologia.
Nem como força, vigor ou expressão da natureza.

Sócrates Nolasco

domingo, junho 15, 2008

O Luxo de um Remorso

Mas o mais corajoso homem entre nós tem medo de si próprio.
A mutilação do selvagem sobrevive tragicamente na autonegação que nos corrompe a vida.
Somos castigados pelas nossas renúncias.
Cada impulso que tentamos estrangular germina no cérebro e envenena-nos.

O corpo peca uma vez, e acaba com o pecado,
porque a ação é um modo de expurgação.
Nada mais permanece do que a lembrança de um prazer,
ou o luxo de um remorso.

A única maneira de nos livrarmos de uma tentação é cedermos-lhe.

Se lhe resistirmos, a nossa alma adoece com o anseio das coisas que se proibiu,
com o desejo daquilo que as suas monstruosas leis tornaram monstruoso e ilegal.

Já se disse que os grandes acontecimentos do mundo ocorrem no cérebro.
É também no cérebro, e apenas neste, que ocorrem os grandes pecados do mundo.

...

Há muitas coisas que atiraríamos fora se não receássemos que outros as apanhassem.

...

Não tenhas medo do passado.
Se as pessoas te disserem que ele é irrevogável, não acredites nelas.

O tempo e o espaço, a sucessão e a extensão,
são meras condições acidentais do pensamento.

A imaginação pode transcendê-las, e mais,
numa esfera livre de existências ideais.
Também as coisas são na sua essência aquilo em que decidimos torná-las.
Uma coisa é segundo o modo como olhamos para ela.

...

Oscar Wilde

O que acha? O que você sente sobre isso?

Uma tendência que aparece, por exemplo, como regra de trabalho para muitos articulistas de jornais e revistas, que não nos informam sobre fatos, acontecimentos e situações, mas gastam páginas inteiras nos contando seus sentimentos, suas impressõese opiniões sobre pessoas, lugares, objetos, acontecimentos e fatos que continuamos a desconhecer por conhecemos apenas sentimentos e impresões daqueles que deles fala.

Um ponto comum aos programas de auditório, às entrevistas, aos debates, às indagações telefônicas de rádios, revistas e jornais, aos comerciais de propagando.
Trata-se do apelo à intimidade, à personalidade, à vida privada como suporte e garantia para a ordem pública.

A sutileza consiste em aumentar propositalmente a obscuridade do discurso para que o cidadão se sinta tão mais informado quanto menos puder raciocinar, convencido de que as decisões políticas estão com especialistas que lidam com problemas incompreensíveis para leigos.

Cada acontecimento é preparado para ser transimitido.

A prática é substituída pelo pseudoconhecimento, pelo olhar irresponsável, por uma contemplação superficial, depreocupada e satisfeita.

A competição no mercado de construção de imagem passa a ser um aspecto vital da concorrência entre as empresas.
O sucesso é tão claramento lucrativo que o investimento na constução da imagem se torna tão importante quanto o investimento em novas máquinas, fábricas.

A aquisição de uma imagem se tona um elemento singularmente importante na auto-representação nos mercados de trabalho, e, por essa extensão,
passa a ser parte integrante da busca da identididade individual, auto-realização e significação da vida.

Simulacro e Poder- Uma Análise da Mídia.
Marilena Chauí

domingo, junho 08, 2008

Leaving one closet to another...

As recently as fifteen or twenty years ago, the assumption was that gay people could not have children unless they pretended to be heterossexual by marrying someone of the opposite sex.
More single and partenered LGBT people began to challenge this assumption, actively seeking ways to become parents. The impact has snowballed into something significant enough to now be called: "gayby boom".

With conservative voices adamantly arguing that children are damaged by having parents who are gay, it is not surprising that more reasonable voices in the gay-parenting debate strive to demonstrate how "nomal" these families are.

At the same time, however, children with gay parets who see how they are represented publicy begin to internalize a paradox: to be accepted for being different, they first have to prove that they are "just like" everyone else.

When media stories about gay parenting feature only high-achievers to show how "normal" these kids are, it becomes easy to see that not all children of gay parents have a circle of supportive friends, are class president, and lettering in three sports.

Being out as a gay family but always feeling the pressure to demonstrate that everything is "fine" can feel like leaving one closet to another.

(...) He has since discovered that "most families are dysfunctional regardless of sexual orientation".

In their minds children hear: "If you encounter any struggles regarding my sexual orientation, it will be very painful for me. I will feel like a bat parent. Don't disappoint me."
They're put in a caretaking role to affirm their parent's sucess as queer parents.

Many sons or daughter share stories of times when they felt they had to protect their parents from their real experience for fear that they would seen unsopportive.

When kids go with their gay parents to visit grandparents and other extended family members, they often watch their parents take on a personality that is unfamiliar to them.
Their parents revert to the role they played growing up, which involves being pseudo-closeted.
The transition might be so ingrained that the gay parent does not notice he is doing it, but it can be jarring for his children. They are not sure if they, too, are expected to take a step into the family closet.

Adding to the complications is that some same-sex couples are not sure of how they want their relationships recognized, especially in public setting.
Individual members within a family are known to have differing ideas about how they want their relationship presented.

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Families Like Mine- Children of Gay Parents Tell It Like It Is.
Abigail Garner

domingo, junho 01, 2008

Para alguns, a instituição familiar deve ser combatida, pois representa um entrave ao desenvolvimento social: é algo exclusivamente nocivo, é o local onde as neuroses são fabricadas e onde se exerce a mais implacável dominação sobre crianças e mulheres.
No entanto, o que não pode ser negado é a importância da família tanto ao nível das relações sociais, nas quais ela se iscreve, quanto ao nível da vida emocional de seus membros.

A família teria por função desenvolver a socialização básica numa sociedade que tem sua essência no conjunto de papéis.

Uma de suas principais finalidades seria a de garantir a transmissão da herança aos filhos legítimo do homem- responsável pela acumulação material- o que só seria possível com a garantia de que amulher exerceria sua sexualidade no âmbito exclusivo do casamento. Daí a impotância da virgindade e da fidelidade conjugal da mulher.

Além da reprodução biológica a família promove também sua própria reprodução social.

Marcuse, ao estudar as sociedades capitalistas mais avançadas, aponta uma descentralização da função da família, o que ele qualifica como um aperfeiçoamento dos mecanismos de dominação.

O pai e a mãe, alvos facilmente identificáveis como agentes dominadores, são substituídos. “A dominação torna-se cada vez mais impessoal, objetiva, universal e também cada vez mais racional, eficaz e produtiva”.
O que antes era uma função quase exclusiva da família é hoje disseminado por uma vasta gama de agentes sociais, que vão desde a pré-escola até os meios de comunicação de massa, que utilizam a persuasão na imposição de padrões de comportamento, veiculados como normais, dificultando a identificação do agente repressor.
Para Mark Poster “a família é o lugar onde se forma a estrutura psíquica e onde a experiência se caracteriza, em primeiro lugar, por padrões emocionais.(...) A família é o espaço social onde gerações se defrontam mútua e diretamente, e onde os dois sexos definem suas diferenças e relações de poder. Idade e sexo são presentes, claro, como indicadores sociais em todas as instituições. Entretanto, a família contém-nos, gera-os e realiza-os em grau extraordinariamente profundo.

A caracterização da família pelas vivências emocionais desenvolvidas entre seus membros e pela hierarquia sexual e etária conduz a análise de seu funcionamento a centrar-se no binômio autoridade/amor.

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Hoje pode-se perguntar, por exemplo, qual é a conseqüência, para a vida familiar, do ingresso maciço das mulheres na universidade e no mercado de trabalho.
(...) Outro fato importante da vida contemporânea é a presença da televisão na grande maioria dos lares. Essa presença provoca um rompimento das distâncias culturais e oferece o risco da padronização dos valores e dos costumes, esmagando as culturas periféricas.

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A família burguesa também definiu novos padrões de higiene, que contribuiram para uma progressiva redução da taxa de mortalidade infantil, a qual foi acompanhada por correspondente decréscimo da taxa de natalidade.

Grande importância foi atribuída ao asseio da casa e de seus moradores.

O aleitamento materno passou a ser valorizado e cercado de medidas higiênicas, além do grande envolvimento emocional da mãe.

O corpo das crianças burguesas primava por asseio.
Nesse contexto se destacou também o horror aos dejetos humanos, que caracterizou o aprendizado da fase anal.

A criança burguesa aprender a identificar no seu corpo algo que deveria ser objeto de constante fiscalização e ação de limpeza para que não fosse apenas um “recipiente e produtor de imundícies”.

O casamento burguês passou a caracterizar-se por uma dissociação entre sexualidade e afetividade.

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Um dos pontos colocados em destaque por esses estudos é a auto-representação da família, que se contradiz com as vivências concretas de seus membros. Quando se referem ao conceito de família, predomina a idéia de harmonia e disponibilidade incondicional de amor e proteção entre seus membros. Quando se fala das relações concretas, faz-se referência a conflitos, dominação, sensação de sufoco e opressão.

Exitem, em geral, duas referências à sexualidade: a sexualidade abstrata, que é apresentada como algo natural e prazeroro, outra a vivência concreta de cada um: nela a sexualidade é causadora de sentimento de culpa e angústia.

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Família, Emoção e Ideologia- José Roberto Tozoni Reis.

domingo, maio 25, 2008

Grandes Unidades

Mencionaríamos então que a descoberta feita pelo homem de que o amor sexual (genital) lhe proporcionava as mais intensas experiências de satisfação,
fornecendo-lhe, na realidade, o protótipo de toda felicidade,
deve ter-lhe sugerido que continuasse a buscar a satisfação da felicidade em sua vida seguindo o caminho das relações sexuais e que tornasse o erotismo genital o ponto central dessa mesma vida.

Prosseguimos dizendo que, fazendo assim, ele se tornou dependente, de uma forma muito perigosa, de uma parte do mundo externo, isto é,
de seu objeto amoroso escolhido.
Por essa razão, os sábios de todas as épocas nos advertiram enfaticamente contra tal modo de vida; apesar disso, ele não perdeu seu atrativo para um grande número de pessoas.

A incompatibilidade entre amor e civilização parece inevitável e sua razão não é imediatamente reconhecível.

Abordamos a dificuldade do desenvolvimento cultural como sendo uma dificuldade geral de desenvolvimento, fazendo sua origem remontar à inércia da libido, à falta de inclinação desta para abandonar uma posição antiga por outra nova.
Dizemos quase a mesma coisa quando fazemos a antítese entre civilização e sexualidade derivar da circunstância de o amor sexual constituir um relacionamento entre dois indivíduos, no qual um terceiro só pode ser supérfluo ou perturbador, ao passo que a civilização depende de relacionamentos entre um considerável número de indivíduos.

Já percebemos que um dos principais esforços da civilização é reunir as pessoas em grandes unidades.

A tendência por parte da civilização em restringir a vida sexual não é menos clara do que sua outra tendência em ampliar a unidade cultural.

O próprio amor genital heterossexual, que permaneceu isento e proscrição, é restringido por outras limitações, apresentadas sob a forma da insistência na legitimidade e na monogamia.

A vida sexual do homem civilizado encontra-se, não obstante, severamente prejudicada, dá, às vezes, a impressão de estar em processo de involução enquanto função, tal como parece acontecer com nossos dentes e cabelos.
Provavelmente, justifica-se supor que sua importância enquanto fonte de sentimento de felicidade, e portanto, na realização de nosso objetivo na vida, diminuiu sensivelmente.

Freud- O Mal-Estar na Civilização.