quinta-feira, agosto 14, 2008

Deformações

Eu creio que só aprendemos coisas que nos dão prazer.
Fala-se no fracasso absoluto da educação brasileira, os moços não aprendem coisa alguma.
O corpo, quando algo indigesto para no estômago, vale-se de uma contração visceral saudável: vomita.
A forma que tem a cabeça de preservar sua saúde, quando o desagradável é despejado lá dentro, não deixa de ser o vômito: o esquecimento.
E creio mais: que é só do prazer que surge a disciplina e a vontade de aprender.
E justamente quando o prazer está ausente que a ameaça se torna necessária.

Todos sabem que o objetivo da educação é executar a terrível transformação:
Fazer com que crianças se esqueçam do desejo de prazer que mora nos seus corpos, para transforma-las em patos domesticados, que bamboleiam ao ritmo da utilidade social.

Enganam-se os que pensam que os cursinhos são organizações escolares dedicadas a ministrar um saber avançado.
Entre as disciplinas que normalmente servem em suas dietas encontra-se sempre a ansiedade como tempero gratuito.
É que ela é parte integrante das liturgias que acontecem em volta dos vestibulares.
Sem a magia negra da ansiedade eles seriam eventos banais, sem maior importância.
É a ansiedade que lhes dá sua dignidade específica, qualidade quase religiosa perante a qual todos se curvam, sabedores de que ali se joga com o sentido da vida.
Daí seu poder para penetrar no corpo: aquele frio na barriga, os pulsos sobressaltados no meio do sono, os olhos abertos que se recusam a dormir, as diarréias, a agressividade que gostaria de quebrar muita coisa e se contenta em aparecer domesticada sob a forma de uma úlcera.

A educação tem estado piorando na razão inversa da dificuldade dos vestibulares.
Se nossa educação chegou aos níveis baixos em que ela agora se encontra, é porque os vestibulares chegaram, inversamente, aos níveis altos de dificuldade em questão.

Pois é, com medo ninguém aprende a gostar de estudar.
É o prazer de estudar, de investigar, de perguntar, que faz da educação uma coisa bonita, gostosa.
Mas foi precisamente isso que os vestibulares destruíram, estendendo sua sombra de terror até sobre as crianças, através da ansiedade dos pais, que passam a preferir os colégios apertados, sem nem se dar conta de que tudo aquilo que aperta acaba por deformar.

Claro que o dono do ratinho poderá alegar:
- Mas veja os saltos enormes que ele dá!
Ao que eu retrucaria:
- Pare de medir os saltos. Veja o seu pêlo. Está eriçado de pavor.

O que eles pensam é no tipo de conhecimento que vai ajudar os estudantes a pôr as cruzinhas nos quadradinhos certos. E os vestibulinhos e simulados vão se tornando práticas comuns. Os professores que fazem e vendem livros didáticos, sabedores disto, tratam de colocar entre os problemas a serem resolvidos alguns com: Ita, 1999, Fuvest, 2000.

Os exames vestibulares, assim, não devem ser pensados como instrumentos adequados ou não para entrada na Universidade, mas antes como instrumentos de terror que determinam os rumos da educação com muito mais poder que todas as nossas leis.

Empresas fazedoras de vestibular. Pergunto: quais são os critérios que determinam a feitura de tais exames? São critérios educativos, por acaso?
Claro que não, são critérios empresariais, de produção em massa.
As questões devem ser feitas de tal maneira que o computador não se confunda. Escolhas objetivas (?) havendo apenas uma resposta certa. Para quê?
Para que os dados sejam processados de maneira uniforme (leia-se maquinalmente) e rapidamente (leia-se economicamente).

É isto que o vestibular nega.
As respostas certas já estão prontas, competindo ao aluno simplesmente identifica-las.
Quem é assim deformado a vida inteira não apenas não sabe escrever, como também não sabe conversar.

Os cursinhos cantam glórias: “- Conseguimos abrir as portas”.
Os pais abrem champanhe e congratulam.
Os moços raspam a cabeça e pintam a cara, alegres.
Tudo termina em uma triunfal celebração.
Sugiro, ao contrário, que se faça uma análise dos aleijões e das deformações.
Que foi que se perdeu? A educação que não houve.
Conhecimento idiota que a memória sábia se encarregará de esquecer o mais rápido possível.

Penso no vestibular não pelas rumorosas e magras celebrações que acompanham os sobreviventes, mas pelas cicatrizes que ficam em todos os demais.
Qualquer coisa que assim deforme a nossa juventude não merece continuar. Está reprovado pela vida.

A moral já está pronta: por vezes, a maior prova da inteligência se encontra na recusa em aprender.

Rubem Alves- Estórias de Quem Gosta de Ensinar.