sexta-feira, fevereiro 29, 2008

Excitação, tensão, amortecimento, satisfação...

Somente em casos extremamente raros, a valorização psíquica dada ao objeto sexual como meta do instinto sexual, cessa nos órgãos genitais.
A apreciação se estende a todo o corpo do objeto sexual e tende a envolver toda a sensação dele derivada.

O fato de a excitação sexual possuir o caráter de tensão levanta um problema cuja solução não é menos difícil do que importante em ajudar-nos a compreender os processos sexuais.

Devo insistir que um sentimento de tensão envolve necessariamente o desprazer.

Se, contudo, a tensão da excitação sexual for contada como uma sensação desagradável, vemo-nos imediatamente diante do fato de que também é, sem dúvida, sentida como agradável.

Como então conciliar esta tensão desagradável e esse sentimento de prazer?

Se uma zona erógena numa pessoa não excitada sexualmente (por ex., a pele do seio de uma mulher) for estimulada pelo tato, o contato produz uma sensação agradável, mas, ao mesmo tempo, está fadado, mais que qualquer outra coisa, a despertar uma excitação sexual que exige um aumento do prazer.
O problema é como acontece que uma experiência de prazer possa dar lugar à necessidade de maior prazer.

O último prazer é de intensidade mais alta, e seu mecanismo difere do prazer anterior. É provocado inteiramente pela descarga: é inteiramente um prazer de satisfação, e, com ele, a tensão da libido fica temporariamente extinta.

O prazer anterior opera assim como uma 'gratificação de incentivo'.

O efeito sexualmente excitante de muitas emoções que são em si mesmas desagradáveis, tais como sentimentos de apreensão, medo ou horror, persiste em um grande número de pessoas por toda a vida adulta.
Não há dúvidas de que esta é a explicação do motivo por que muitas pessoas buscam oportunidade para sensações desta espécie, desde que a condição de gravidade do sentimento desagradável seja amortecida, tal como em sua ocorrência num mundo imaginário, num livro ou numa peça.

A análise das perversões e psiconeuroses mostrou-nos que a excitação sexual se origina de todas as partes do corpo.
Alcançamos assim a idéia de uma quantidade de libido, a cuja representação mental daremos o nome de 'libido do ego' e cuja produção, aumento ou diminuição, distribuição e deslocamento devem propiciar-nos possibilidades de explicar os fenômenos psicossexuais observados.

Esta libido do ego, contudo, só é convenientemente acessível ao estudo analítico quando tiver sido usada para dotar os objetos sexuais de energia libidinosa, quando se tiver tornado libido objetal.
Podemos vê-la então concentrando-se sobre os objetos, fixando-se neles ou abandonando-os, passando de um objeto para o outro e, destas situações, dirigindo a atividade sexual do paciente, que leva à satisfação, ou seja, à extinção temporária e parcial da libido.

Parece mais que a excitação sexual surge como um subproduto, por assim dizer, de um grande número de processos que ocorrem no organismo, tão logo alcançam uma certa intensidade, e muito especialmente de qualquer emoção relativamente poderosa, muito embora de natureza penosa.
As excitações oriundas de todas as fontes ainda não se combinam; cada uma segue seu objetivo isolado, que é simplesmente a consecução de determinada espécie de prazer.

Fomos com relutância obrigados a admitir que não podíamos explicar satisfatoriamente a relação entre a satisfação sexual e a excitação sexual, ou a existente entre a atividade da zona genital e a atividade das outras fontes de sexualidade.

O que descrevemos como o 'caráter' de uma pessoa é construído em grande parte com o material de excitações e se compõe de instintos que foram fixados desde a infância, de construções alcançadas por meio da sublimação, empregadas para eficazmente conter os impulsos que foram reconhecidos como inutilizáveis.

Parte da explicação desta pertinácia das primeiras impressões pode talvez situar-se em outro fator psíquico que não devemos negligenciar, a preponderância ligada na vida mental a traços de memória, em comparação com impressões recentes.

Não é fácil calcular a eficácia relativa dos fatores constitucionais e acidentais. Todavia, não se deve de forma alguma esquecer que a relação entre os dois é de cooperação e não mutuamente exclusiva.

Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade- Freud.

segunda-feira, fevereiro 25, 2008

Parecer, desaparecer...

Não fosse isso
e era menos
Não fosse tanto
e era quase...

Parece que foi ontem
Tudo parecia alguma coisa
o dia parecia noite,o vinho parecia rosas
Até parece mentira
tudo parecia alguma coisa
O tempo parecia pouco
E a gente parecia muito

O próximo eu mesmo
Tão facil ser semelhante
Quando eu tinha um espelho pra me servir de exemplo...

Mas vice-versa vide a vida
Nada se parece com nada
A fita não coincide
Com a tragédia encenada


...

No primeiro caso
onde começa o acaso
e onde acaba o propósito

Se tudo o que fazemos
é menos que amor
mas ainda não é ódio?

...

Se amor é troca
ou entrega louca
Discutem os sábios
entre os pequenos
e os grandes lábios...

...

Qual dos cindo mil sentidos
está livre de mal-entendidos?

...

Alguém parado é sempre suspeito
de trazer como eu trago
um susto preso no peito,
um prazo, um prazer, um estrago,
um de qualquer jeito,

sujeito a ser tragado
pelo primeiro que passar.

Parar dá azar.

...

O amor , esse sufoco , agora há pouco era muito,
agora, apenas um sopro

Ah , um troço de louco,
corações trocando rosas e socos .

...

ai daqueles que se amaram sem nenhuma briga,
aqueles que deixaram que a chaga nova
virasse a mágoa antiga,

ai daqueles que se amaram sem saber que amar é pão feito em casa,
e que pedra só não voa porque não quer,
não porque não tem asa.

...

O que quer dizer, diz.
não fica fazendo
o que, um dia, eu sempre fiz.
não fica só querendo, querendo,
coisa que eu nunca quis.

O que quer dizer, diz.

...

A próxima vez que quiser ler meu pensamento
vai ver uma coisa
letras soltas páginas rasgadas, capítulos sem fim, vírgulas loucas
surpresas e suspiros, tigres de papel, caras de nanquim...

O sonho afinal é tão incerto quanto a equação e o poema.

...

vãs.
todas as coisas que vão.

...

Sinto muito
sentir é muito lento.

...

As coisas não começam
com um conto
nem acabam
com um .

...

Pode ser teu vulto
ou tua volta
É maravilhoso...


...

Paulo Leminski

domingo, fevereiro 24, 2008

Dourar-vos com sua ilusão...

Uma coisa, porém, é o pensamento, outra a ação, outra a imagem da ação.
A roda da causalidade não gira entre eles.
Uma imagem fez empalidecer esse homem pálido.
Ele estava à altura do seu ato quando o realizou, mas não suportou a sua imagem depois de o ter consumado.

.......

Amar e desaparecer: são coisas que andam a par há eternidades.
Querer amar é também estar pronto a morrer.

E o que queira desfrutar glória deve despedir-se a tempo das honras e exercer a dificil arte de se retirar oportunamente.
É preciso fugir a deixar-se comer no próprio momento em que vos começam a tomar gosto.
Os que querem ser amados há muito tempo sabem disso.

.......

O pior de tudo, no entanto, são os pensamentos mesquinhos. Vale mais fazer mal do que pensar ruimente.

Vós dizeis-me: "A vida é uma carga pesada."
Mas, para que é esse vosso orgulho pela manhã e essa vossa submissão, à tarde?
A vida é uma carga pesada; mas não vos mostreis tão constristados.
Todos somos jumentos carregados.

E quando aprendemos melhor a divertir-nos, esquecemo-nos melhor de fazer mal aos outros e de inventar dores.
Porque no riso se reúne tudo o que é mau, mas santificado e absolvido pela sua própria beatitude.

.......

É verdade: amamos a vida não porque estejamos habituados à vida, mas ao amor.
Há sempre o seu quê de loucura no amor;
mas também há sempre o seu quê de razão na loucura.
E eu, que estou bem com a vida, creio que para saber de felicidade não como as borboletas e as bolhas de sabão, e o que se lhes assemelhe entre os homens.

......

"Há almas que nunca se descobrirão, a não ser que se principie por inventá-las".

A minha ardente vontade de criar impele-me sempre de novo para os homens, assim como é impelido o martelo para a pedra.

Fonte da alegria, quase brotas com demasiada violência! E amiúde esvazias a taça ao invés de a encher!
Ainda tenho que aprender a aproximar-me de ti mais moderadamente; o meu coração acorre ao teu encontro com demasiada pressa.

......

Mais elevado que o amor ao próximo é amor ao longínquo, ao que está por vir.

O amor que quer dominar e o amor que quer obedecer, criaram juntos essa tábua.
O prazer do rebanho é mais antigo que o prazer do Eu.

Na verdade, o indivíduo é a mais recente das criações.

O Tu é mais celho do que o Eu; o Tu acha-se santificado, mas o Eu ainda não. Por isso o homem anda diligente atrás do próximo.
Acaso vos aconselho amor ao próximo? Antes vos aconselho a fuga do "próximo" e o amor ao remoto!

Desejareis seduzir o próximo por vosso amor e dourar-vos com sua ilusão.

Um vai após o próximo, porque se procura, o outro porque se quisera esquecer.

O amante quer criar porque despreza! Que saberia do amor aquele que não devesse menosprezar justamente o que amava?

Deve-se tornar inventores de imagens e de fantasmas em suas inimizades, e com suas imagens e os seus fantasmas devem travar entre si o maior combate.

A felicidade do homem é: eu quero; a felicidade da mulher é: ele quer.
"Vamos! Já nada falata no mundo!"- assim pensa a mulher quando obedece de todo o coração.

Inventai-me, pois, o amor que suporta, não só todos os castigos, mas também todas as faltas.

......

Por que a justiça me fala assim: "Os homens não são iguais". Não devem tampouco chegar a sê-lo.

Uma pequena vingança é mais humana do que nenhuma.

A ausência de ardor difere muito do conhecimento.
Eu não creio nos epíritos frios.

.......

Ele é que não amava bastante; senão irritar-se-ia menos por não ser amado.
O grande amor não quer amor: quer mais.

......

Nieztsche - Assim Falava Zaratrusta.

sexta-feira, fevereiro 22, 2008

Negligência...

Ora, de tudo que aprendi em minha formação clínica, há uma regra que se verifica a cada vez: nossos males são efeitos de nossas interpretações (mais ou menos capengas) do que os outros fizeram conosco ou quiseram de nós. Não são consequências diretas das ações dos outros.

Por isso é possível mudar.
Por isso o passado não constitui propriamente um destino: porque nunca somos apenas o efeito dos abusos sofridos.
Em alguma medida, sempre decidimos o sentido e o alcance que atribuímos à violência da qual fomos vítimas.
Somos, portanto, os artesãos de nossas reações: escolhemos a vingança violenta contra o mundo ou uma vida consagrada a lamber nossas feridas.
Ou, ainda, a coragem de ir em frente.

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Todos vivemos, de uma maneira ou de outra, um conflito entre o que desejamos e o que nos permitimos desejar.
E é bom que seja assim.
Se nos autorizássemos tudo o que queremos, a vida e a convivência social seriam complicadas.

Em outras palavras, é normal que a gente navegue num equilíbrio mais ou menos precário entre os desejos que brotam (devaneios, projetos, tesões)
e as mil vozes (conscientes ou inconscientes) que nos inibem, que nos pedem procrastinação e desistência ou, simplesmente, que propõem escolhas diferentes.

Mas é mais fácil encarar nossas desistências transformando os outros em imaginários carrascos de nosso desejo: "Foi por causa deles".

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Parece que, em nossa cultura, amadurecendo,
todos devem aprender a separar-se, mas ninguém deve aprender a relacionar-se.
E há os que se apaixonam, amam,
mas não conseguem se engajar numa relação e ainda menos numa convivência.
Eles são (e se vivem como) personagens trágicos, num conflito insolúvel entre sua paixão amorosa e a necessidade de preservar a solidão da qual, literalmente, adoram sofrer.

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Diz assim: "Não queira transformar seu parceiro".
É a versão íntima de "ame-o ou deixe-o":
é preciso gostar do parceiro assim como ele é, com todos os seus defeitos, pois é um erro engajar-se numa relação com o projeto de emendar nosso objeto de amor.

Não há como negar que o conselho parece sábio e bem-vindo.
O problema é que ele sugere um pessimismo radical em matéria de relações: preconiza que se relacionar seja uma atividade sem consequência, praticada no absoluto respeito dos indivíduos imutáveis.
Juntem-se e permaneçam iguais.
Na verdade, mudamos (para melhor ou para pior) sempre graças a algum outro que espera de nós uma mudança.

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O sentimento de culpa é onipresente (ou quase), e as transgressões, em geral, são poucas. É lógico, portanto, que a culpa que nos atormenta seja sobretudo um efeito de nossa covardia (que é crônica), e não de nosso atrevimento (que é raro).

Pensando bem, aliás, a única versão possível do sonho moderno talvez seja esta:
não a paz e o respeito recíproco, mas a descoberta de um lote de misérias e incertezas que enxergamos nos outros porque, no fundo, são sempre parecidas com as da gente.

O sonho moderno não se realiza numa fanfarra de nobres idéias compartilhadas,
mas na ternura de nosso olhar diante da imperfeição do mundo, ou seja, de todos nós.

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Contardo Calligaris

domingo, fevereiro 17, 2008

No mínimo, resta-nos a mesa do bar.

Sei que é pouco: a quem se sente abandonado pelas grandes causas comuns, a mesa do bar e sua conversa parecem pálidos reflexos da sociedade desejada.

Mas, filosofando: se, por falta de transcendências, devemos encontrar sentido na imanência, é melhor se acostumar a dar relevância às coisas pequenas de cada dia.

Na mesa do bar, a gente dá "uma relaxada": encontra, na facilidade do convívio (ou do "convício", entre cigarros e cervejas), um amparo contra as frestas e falhas mais dolorosas.
Considere seus companheiros de mesa: todos parecem espirituosos e bem-humorados.

Mas há um que, uma vez de volta em casa, perseguirá, solitário, na internet, fantasias sexuais que ele nunca se permite viver;
há o casal que se deitará sem se abraçar;
há outro que não quer ir embora porque a perspectiva da solidão o desespera;
há outra que consegue ironizar uma perda cuja lembrança, quando ela estiver sozinha, de novo a arrasará.
E por aí vai.

Não se trata de um "fazer de conta": existe uma divisão subjetiva sem a qual viver seria difícil.
Já imaginou um dia inteiro na intensidade alarmante de um diálogo com seu melhor amigo, com um terapeuta ou até consigo mesmo, numa noite sem sono?

Mas, fora isso, as mesas de bar e as rodas de padaria são uma modesta e frágil presença da vida social concreta: elas mantêm, ao menos, a ilusão de que os outros existem para nós e nós existimos com eles.

Contardo Calligaris- "Inocência" e as mesas de bar.

terça-feira, fevereiro 12, 2008

Paranóia dirigida

A paranóia é aquela forma da personalidade que leva o sujeito a encontrar no mundo muito mais sentido do que lá está.

Num delírio paranóico bem formado, há poucos fios soltos, tudo é costurado.

Os acontecimentos são mensagens -eventualmente divinas ou extraterrestres e de árdua interpretação, mas mensagens.
Há pouquíssimo espaço para uma realidade que não seja justificada por um sentido.

......

Por outro lado, a psicanálise não só orienta (e tenta suavizar) nossa procura louca de um sentido mas também deve, um belo dia, permitir que a gente encare a brutalidade do mundo.

No fim de uma análise, espera-se que alguém possa sair do consultório de seu analista e levar, por exemplo, um vaso de flores na cabeça sem que lhe ocorra, nem por um instante, que se trate de um complô, de uma punição merecida por ousar se aventurar no mundo sozinho ou mesmo de uma vingança do próprio terapeuta abandonado.

Às vezes, os vasos caem sem mais nem menos.

Atrás desse propósito da psicanálise, há a constatação de que, paradoxalmente, os humanos se queixam da falta de sentido, mas sofrem, na verdade, do contrário, ou seja, do excesso de sentido.

Esse sentido, que (segundo a queixa) faz falta, não pára de nos atrapalhar: por ele estamos dispostos a estropiar o próximo ou a sacrificar (quase sempre inutilmente) nossas vidas, a ele devemos, às vezes, a inibição e a extraordinária ineficácia de nossas ações.

Contardo Calligaris- O tsunami, o câncer, a Aids e outras coisas que não têm sentido.

sábado, fevereiro 09, 2008

"Não Esquecer Depois".

Embora não soubesse que forma escolheria ter; mas o que um homem vê é uma realidade.
E sem sentir a moça tomou a forma que o homem percebera nela.
Assim se construíam as coisas.

Mas enquanto mantinha o rosto sufocado, e toda a sala que ela não via girava tonta, a moça parecia descobrir que não era de tristeza que ela gritara. É que não podia suportar aquela muda existência que estava sempre acima dela.
A sala, a cidade, as coisas sob a prateleira.

E bastaria começar a olhar para partí-la em mil pedaços que não saberia juntar depois.
O difícil é que a aparência era a realidade.

Se ao menos a moça estivesse fora de seus muros.
Que minucioso trabalho de paciência o de cercá-la.

Vida individual? O perigoso é que cada pessoa trabalhava com séculos.

- Felizmente tudo é impossível.
- Que me importa o mal que você me fizesse, disse ele, irritado.

Atordoada, quase recuando, perguntava-se como era possível que ele a amasse sem conhecê-la, esquecendo que ela própria só conhecia do homem o amor que ela lhe dava.

Pensava velozmente, procurando como mostrar-lhe o melhor de si mesma, contar-lhe sobre sua vida- em surpresa nada encontrava, resolvia em vão as falsas pérolas que parecia terem sido as suas únicas jóias.

Na urgência do momento lembrou-se daquelas noites na sala de visitas... E embora raramente pensasse nelas, e mal tivesse consciência de seu sentido- elas surgiram-lhe como a única realidade de sua vida?
Com os olhos aberos de espanto e atenção, esquecer era bem o seu modo de guardar para sempre.
Já se indagava se precisaria contar, que importava a forma que tinham tomado seus dias?
Também ele, também todos pareciam construir em torno de si uma coisa esquecida.

Era insuportável. E justamente ela sustentava tudo isso. Por que justamente?
Cada pessoa que via era justamente a que via.

E, nesse momento em que se olharam nus, sem espanto, pela milésima vez, pela primeira vez, ele disse: por que nunca nos conhecemos antes?
Eles se tocavam enfim.

Mas ela não tinha medo. Era "não esquecer depois" que a assustava.

No centro desse mundo pequeno, nesta desordem confortante de vida, com enjôo.
Era ameaçador. Íntimo e ameaçador.

Sou de opinião de que se fala demais, pensou obstinado.

Porque na vida real, vivida a cada dia, ficara-lhe - se não quisesse mentir- apenas a possibilidade de dizer, numa conversa de vizinhas, em mistura de longa experiência e de descoberta de última hora: sim, sim, a alma também é importante, não acha?

Contar sua "história" era ainda mais difícil do que vivê-la.
Mesmo porque "viver agora" era somente um carro andando no calor, alguma coisa avançando dia a dia como o que fica madura, hoje era o navio em alto mar.

Clarice Lispector- A Cidade Sitiada.

quinta-feira, fevereiro 07, 2008

Psicologia de Grupo (cont.)

O indivíduo, nas relações que já mencionei, cai sob a influência de apenas uma só pessoa ou de um número bastante reduzido de pessoas.
Ora, quando se fala de psicologia social ou de grupo, costuma-se deixar essas relações de lado e isolar como tema de indagação o influenciamento de um indivíduo por um grande número de pessoas simultaneamente, pessoas com quem se acha ligado por algo, embora, sob outros aspectos e em muitos respeitos, possam ser-lhe estranhas.

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Quase toda relação emocional íntima entre duas pessoas que perdura por certo tempo- casamento, amizade, as relações entre pais e filhos- contém um sedimento de sentimentos de aversão e hostilidade.

A identificação, na verdade, é ambivalente desde o início, pode tornar-se expressão de ternura com tanta facilidade quanto um desejo de afastamento de alguém.

O sentimento social, assim, se baseia na inversão daquilo que a princípio se constitui um sentimento hostil em uma ligação.

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O fato de o objeto amado desfrutar de certa liberdade quanto à crítica, e o de todas as suas características serem mais altamente valorizadas do que as das pessoas que não são amadas, ou do que as próprias características dele numa ocasião em que não era amado.

Produz-se a ilusao de que o objeto veio a ser sensualmente amado devido aos seus méritos espirituais, ao passo que, pelo contrário, na realidade esses méritos só podem ter sido emprestados a ele pelo seu encanto social.

Em muitas formas de escolha amorosa, é fao evidente que o objeto serve de sucedâneo para algum inatingido ideal do ego de nós mesmos. Nós o amamos por causa das perfeições que nos esforçamos por conseguir para nosso próprio ego e que agora gostaríamos de adquirir, dessa maneira indireta, como meio de satisfazer nosso narcisismo.

É destino do amor sensual extinguir-se quando se satisfaz; para que possa durar, desde o início tem de estar mesclado com componentes puramente afetuosos, ou deve, ele próprio, sentir uma tranformação desse tipo.

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Cada indivíduo é uma parte componente de numerosos grupos, acha-se ligado por vínculos de identificação em muitos sentidos e contruiu o seu ideal de ego segundo os modelos mais variados.

Freud- Psicologia de Grupo e Análise do Ego.

quarta-feira, fevereiro 06, 2008

Sob o Domínio do Princípio de Realidade.

A função terapêutica da memória deriva do valor de verdade da memória, que é a de conservar as promessas e potencialiadedes que são traídas e até proscritas pelo indivíduo maduro, civilizado, mas que outrora foram satisfeitas em seu passado remoto, e nunca integralmente esquecidos.

Quando Shopenhauer define a essência do ser como vontade, expõe uma carência e agressão insaciáveis que devem ser redimidas a todo custo.

A vontade ainda é prisioneira porque não tem poder sobre o tempo: o passado não só permanece por libertar, mas prisioneiro, continua impedindo toda a libertação.
O fato do tempo não "voltar atrás", alimenta a ferida da má consciência: sustenta a vingança e a necessidade de punição, as quais, por seu turno, perpetuam o passado e angústia de morte.

Quando a mera consciência atinge o estágio de autoconsciência, revela-re a si mesma como ego, e o ego é, primeiro, desejo: só pode tornar-se cônscio de si mesmo através de satisfazer-se, por si mesmo e por um "outro".
Mas tal satisfação envolve a "negação" do outro, pois o ego tem de provar a si mesmo que é, verdadeiramente, um ser em si mesmo, contra toda a "alteridade".
É essa a noção do indivíduo que deve constantemente afirmar-se para ser real.

O ego experimenta o ser como "provocação", como "projeto", experimenta cada estado existencial como uma restrição que tem que ser superada, tranformada noutra.

O sofrimento pode ser afimado se "o poder do homem é suficientemente forte" para fazer da dor um estímulo para afirmações- um elo na cadeia do prazer.

(Interlúdio filosófico)

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O instinto de morte é destrutividade não pelo mero interesse destrutivo, mas pelo alívio de tensão. A descida para a morte é uma fuga inconsciente à dor e às carências vitais.

De acordo com Freud, o princípio de realidade "salvaguarda", mais do que "destrona", e modifica, mais do que nega, o princípio de prazer.

Toda a civilização tem sido uma dominação organizada.

Ao cumprir sua missão, o principal papel do ego é coordenar, alterar, organizar e controlar os impulsos instintivos do id, de modo a reduzir ao mínimo os conflitos com a realidade; reprimir os impulsos que sejam incompatíveis com a realidade, "reconciliar" outros com a realidade, mudando seu objeto, retardando ou desviando sua gratificação, amalgamando-os com outros impulsos, etc.

A noção de que uma civilização não-repressiva é impossível constitui um dos pilares fundamentais da teoria freudiana.

O prazer de cheirar e saborear é "de uma natureza muito mais corporal, mais física, logo também muito mais aparentado ao prazer sexual do que o prazer suscitado por um som ou ao menos corporal de todos os prazeres, a visão de algo belo".
Tal imediatismo é incompatível com a efetividade da dominação organizada, com uma sociedade que "tende para isolar as pessoas, para distanciá-las e impedir as relações espontâneas e as expressões 'naturais', à semelhança dos animais, dessas relações".

Além disso, a sexualidade procriadora é canalizada, na maioria das civilizações, para o âmbito das instituições monogâmicas. Este tipo de organização resulta numa restrição quantitativa e qualitativa da sexualidade que converte-se numa função especializada e temporária, num meio para se atingir um fim.

(A origem do indivíduo reprimido)

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Como resultado final de vários processos históricos que estão congelados na rede de entidades humanas e institucionais que compõem a sociedade, e esses processos definem a personalidade e suas relações.

Desde o pai primordial, através do clã fraterno, até o sistema de autoridade institucionalizada que é característico da civilização madura, a dominação torna-se cada vez mais impessoal, objetiva, universal, e também cada vez mais racional, eficaz e produtiva.

A manipulação da consciência que tem ocorrido em toda a órbita da civilização indestrial contemporânea, foi descrita nas várias interpretações de "culturas populares": coordenação da existência privada e pública, das reações espontâneas e solicitadas.
A promoção de atividades ociosas que não exigem empenho mental, o triunfo das ideologias antiintelectuais, exemplificam a tendência.

Ainda no nível pré-escolar, as turbas, o rádio e a televisão fixam os padrões para a conformidade e a rebelião; os desvios do padrão são punidos não tanto no seio da família, mas fora e contra a família.

No seu auge, a concentração do poder econômico parece converter-se em anonimato; todos, mesmos os que se situam nas posições supremas, parecem impotentes ante os movimentos e leis da própria engrenagem.

É com uma nova despreocupação que o terror é assimilado com a normalidade, e a destrutividade com a construção.

(A dialética da civilização).

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Marcuse- Eros e Civilização.

terça-feira, fevereiro 05, 2008

Quando o carnaval chegar...

Hoje a mulher não pode esconder uma brotoeja, nada.
Hoje, o beijo quase não existe.

Sábado começará um novo carnaval.
Mas sabemos que, nos bailes e nas ruas, a mulher será sempre uma figura secundária para o homem.
Do mesmo modo que o homem será secundário para a mulher.

Eis o que eu queria dizer: as duas coisas seriam impossíveis no velho carnaval.
Nem a nudez da menina, nem o tédio do homem.

Antes dos nus, a mulher em chagas punha fantasia e máscara nas feridas e era amada por toda uma cidade.
Por onde quer que passasse sentia o desejo anônimo e geral.

Ontem, um médico me confessava o seu espanto.
Os nossos jovens, de ambos os sexos, esquecem antes de amar e sentem o tédio antes do desejo.

Os que esquecem antes de amar.
Nelson Rodrigues, 21/02/68.

domingo, fevereiro 03, 2008

Silêncio não se lê.

Cansado de quem usa as palavras para lamentar do mundo.
O que a gente não pode no mundo, pode no som.

O tom é o sal da mensagem.
A frase que eu digo não será a mesma frase se sair da sua boca.
Ou se eu a disser com outra ordem das palavras.
Ou se houver uma trilha sonora ao fundo. Ou se mudarmos a trilha sonora.
Ou se ela for escrita numa letra trêmula.
Ou como letreiro de uma loja.
Ou se for uma mentira.
Ou se tiver uma platéia escutando.

Depende também do gesto que a acompanha, do papel em que foi impressa, do desejo de quem escuta.

A questão é que a tevê, o rádio, o discurso coloquial, os out-doors, a arte de vanguarda, os jornais, o gibi, a música pop e a vida moderna em geral trouxeram consigo uma crise de sentido. Do mundo dicionarizado. Da correspôndencia unívoca entre uma palavra e aquilo que ela representa.

Um fato é a intersecção entre suas versões, ou apenas uma delas? Ou nenhuma delas?
Para meio entendendor boa palavra basta?

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Porque ninguém está imune ao olho do outro.

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40 escritos- Arnaldo Antunes.

sábado, fevereiro 02, 2008

As mesmas coisas fora do lugar...

Nunca achei que tivesse poderes especiais. Para mim, o que ela fazia era a coisa mais natural do mundo. Cresci ouvindo essas palavras como quem ouve dizer pão, água, bom dia, desculpe.

Quando pude, enfim, conhecer o mundo, como se diz, (como se o mundo ficasse lá fora, apanhando chuva, levando tiros, se arriscando a ser atropelado por um demônio mais apressado) eu já sabia tudo o que ia me acontecer, tudo o que ia sentir, já sabia de tudo, como se tudo já tivesse havido.

O resto foi o tédio de sempre. Depois das primeiras surpresas, a própria surpresa se tornou uma rotina sufocante.

Até agora tudo estava errado, tudo estava torto, fora de lugar, como nome trocado.
Ora, o lugar estava certo, a hora estava errada. Quando a hora estava perfeita, o lugar não era aquele.

Mas, naquele momento, só o inferno me interessava.
Inferno por inferno, pior o inferno que eu tinha em casa, aquele inferno manso, cheio de frases fáceis, gestos previstos e noites intermináveis.

Está provado que é possível, em certos casos, partir sem chegar a.
Nesses casos, se diz, houve empate. Eu não jogava pelo empate. Jogava pelo escândalo, vitória ou derrota. Foi vitória? Derrota?

Quando ela me disse isso, eu não dei muita importância. Se a gente for prestar atenção em tudo que diz a pessoa que a gente ama, ninguém vai ter tempo para amar direito.

Quando a gente voltou, o quarto estava igualzinho. As mesmas fotos. As mesmas coisas fora do lugar. As mesmas contas a pagar.
Daí, ela levantou e foi embora mesmo.
Realmente, nada explica nada.
Apenas umas coisas vêm atrás de outras que vêm atrás de outras, atrás de outras, pois, afinal de contas, todas as coisas vêm.

Pensei nas vezes em que eu disse que ia embora. Ela nunca acreditou. Nós nunca acreditamos. Até que acontece.
Acontece é modo de dizer. Será que acontece mesmo? Será que alguma coisa acontece?

A raiva é sábia.

Não há muito a dizer, nunca há.
Meia dúzia de palavras resolvem problemas de mil anos atrás.
Fomos nos dizendo cada vez menos. Dizer sempre é uma outra coisa.

Paulo Leminski- Gozo Fabuloso.

sexta-feira, fevereiro 01, 2008

Do que se desiste, se vive. (A maçã no escuro)

E com ele, milhões de homens que copiavam com enorme esforço a idéia que se fazia de um homem, ao lado de milhares de mulheres que copiavam atentas a idéia que se fazia de mulher e milhares de pessoas de boa vontade copiavam com esforço sobre-humano a própria cara e a idéia de existir.

Porque mesmo a compreensão, a pessoa imitava. A compreensão que nunca fora feita senão da linguagem alheia e de palavras.

Essa cautela que uma pessoa tem de transformar a coisa em algo comparável e então abordável e, só a partir desse momento de segurança, olha e se permite ver.

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É que nunca se lembrava de organizar a alma em linguagem, ele não acreditava em falar- talvez com medo de, ao falar, ele próprio terminar por não reconhecer a mesa sobre a qual comia.

No momento em que ela mais queria ser ela própria- com aquela individualidade idealizada que os anos haviam criado para si mesma- nesse momento a sua personalidade inteira ruiu como se não fosse verdadeira, e no entanto ela era, pois essa personalidade inventada seria o máximo dela mesma.

Não importa, cada homem é a sua própria chance.
O peso com que amamos e não amamos.

Até entender seu crime e saber o que desejava- ou até ter inventado o que se passara com ele e inventado o que desejava? que importava se a verdade existia ou se era criada, pois criada mesmo é que valia como ato- agora que ele conseguira se justificar.

E se, como toda pessoa, ele era uma idéia preconcebida, e se saíra de casa para saber se era verdade o que preconcebera- era verdade, sim.

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Bem foi avisado que se explicasse ninguém entenderia, pois explicando como é que um pé segue o outro ninguém reconhece o andar.

O bom de um ato é que ele nos ultrapassa.

Ele poderia pensar o que quisesse- e nada aconteceria.

Como a unha que realmente nunca consegue se sujar: é apenas ao redor da unha que está sujo, e corta-se a unha e não dói sequer, ela cresce de novo como um cacto.

É também verdade que se uma pessoa fizesse apenas o que entende, jamais avançaria um passo.

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Se espantou da coincidência daquele homem estar exatamente no sítio, e se espantou com a coincidência extremamente curiosa dela mesma estar no sítio.
Mas- pensou forçando-se a alguma modéstia- não há um fato que não se ligue a outro, sempre há uma grande coincidência nas coisas.

- Olhe essa samambaia!- disse ela para o homem porque uma pessoa não pode dizer "eu te amo".

Era um labor de infinita cautela, onde um passo a mais e o homem jamais a amaria, onde um passo a mais e ela mesma deixasse de amá-lo: ela protegia ambos contra o erro.

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- É que você vive muito isolada e já não sabe mais o que se conta aos outros e o que não se conta.

Quem tinha o tempo de uma vida apenas, teria que condensar-se com artes e truques.
Aquela moça morria de medo de passar sua vida inteira sem ter a oportunidade de dizer certas coisas que já não lhe pareciam importantes, mas delas ficara a obstinação de um dia dizê-las.

É preciso muitas vezes enganar a quem se pede. É preciso, a modo de dizer, pedir disfarçando.

- Requer-se arte, minha senhora, muita arte, pois sem ela a vida erra. E muita sagacidade: pois o tempo é curto, há de se escolher numa fração de segundo entre uma palavra e outra, entre lembrar e esquecer, é preciso técnica!

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Mas é certo que na desordem de um primeiro encontro houve um momento em que os dois, enfim esquecidos do que penosamente queriam copiar para a realidade, houve um momento não preparado por ambos, em que ambos precisavam saber por que é que o outro era o outro, e se esqueceram de dizer "por favor"; um momento em que, sem um injuriar o outro, cada um tomou para si o que lhe era devido sem que um roubasse nada do outro e isso era mais do que eles teriam ousado imaginar.

Pegando, calma, nas roupas a emendar, ela sentiu uma felicidade muito menor do que era capaz de sentir, mas tratava-se dessa coisa que se quer: concreta.

Olhou-o: obrigada por você ser real, disseram seus olhos abertos.

É que era doce e penoso um homem sair e uma mulher ficar.
Assim é que provavelmente deviam ser as coisas.

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A grande liberdade que se pode ter quanto ao que já aconteceu...

A mulher então se perguntou absorta se não haveria mil outras coisas que lhe tinham acontecido... E das quais ela simplesmente ainda não sabia.
Perguntou-se, com a gravidade de uma descoberta, se ela na verdade não tinha escolhido viver de alguns fatos passados, quando poderia viver igualmente de outros que tinham igualmente acontecido- e tinha direito a eles.

- Como eu ia dizendo, foi por causa disso que eu vim para cá. Foi um erro. Mas faço tantas outras coisas por esse mesmo motivo que não sei explicar!

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As pessoas ruins são de uma tal ingenuidade! O perigo está apenas nos atos das pessoas ruins pois esses têm conseqüências, mas elas próprias não são perigosas, são infantis, são cansadas.

A indocilidade do desejo. Picado por uma vontade de aproximação, estava afoito.

Contruiremos com as mesmas pedrinhas outra organização definitiva, derrubando antes a primeira? Ou resolveremos sensatamente caber na primeira?

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E todo disposto como um homem que se embala para uma corrida de um quilômetro e esbarra com o fato de ter apenas dois metros para correr - ele desinchou desapontado.

Assim pois, depois da explosão, mantiveram-se calados como se nada tivesse acontecido porque ninguém pode viver do espanto, ninguém pode viver à base de ter vomitado ou ter visto alguém vomitar; eram coisas a não se pensar muito a respeito: eram fatos de uma vida.

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Parece que muitas vezes se amava tanto uma coisa que por assim dizer se tentava negá-la, e tantas vezes é o rosto amado o que mais nos constrange.
E ele não a queria tanto a ponto de desejar que ela viesse.

Ele estava experimentando o que era pior que tudo: não querer mais.
Mas calculou ele que não querer era tantas vezes a forma mais desesperada de querer.

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Afinal uma pessoa se mede pela sua fome- não existe outro modo de se calcular.

Pois tudo tem um único ponto máximo, e cada coisa tem uma vez, e depois nos preparamos para a outra vez, que será a primeira vez...

Fui até onde pude. Mas como é que não compreendi que aquilo que já não alcanço em mim... já são os outros?

Preferia então o silêncio intacto. Pois o que se bebe é pouco; e do que se desiste, se vive.

Porque afinal não somos tão culpados, somos mais estúpidos que culpados.

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Clarice Lispector- A Maçã no Escuro.