sexta-feira, fevereiro 01, 2008

Do que se desiste, se vive. (A maçã no escuro)

E com ele, milhões de homens que copiavam com enorme esforço a idéia que se fazia de um homem, ao lado de milhares de mulheres que copiavam atentas a idéia que se fazia de mulher e milhares de pessoas de boa vontade copiavam com esforço sobre-humano a própria cara e a idéia de existir.

Porque mesmo a compreensão, a pessoa imitava. A compreensão que nunca fora feita senão da linguagem alheia e de palavras.

Essa cautela que uma pessoa tem de transformar a coisa em algo comparável e então abordável e, só a partir desse momento de segurança, olha e se permite ver.

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É que nunca se lembrava de organizar a alma em linguagem, ele não acreditava em falar- talvez com medo de, ao falar, ele próprio terminar por não reconhecer a mesa sobre a qual comia.

No momento em que ela mais queria ser ela própria- com aquela individualidade idealizada que os anos haviam criado para si mesma- nesse momento a sua personalidade inteira ruiu como se não fosse verdadeira, e no entanto ela era, pois essa personalidade inventada seria o máximo dela mesma.

Não importa, cada homem é a sua própria chance.
O peso com que amamos e não amamos.

Até entender seu crime e saber o que desejava- ou até ter inventado o que se passara com ele e inventado o que desejava? que importava se a verdade existia ou se era criada, pois criada mesmo é que valia como ato- agora que ele conseguira se justificar.

E se, como toda pessoa, ele era uma idéia preconcebida, e se saíra de casa para saber se era verdade o que preconcebera- era verdade, sim.

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Bem foi avisado que se explicasse ninguém entenderia, pois explicando como é que um pé segue o outro ninguém reconhece o andar.

O bom de um ato é que ele nos ultrapassa.

Ele poderia pensar o que quisesse- e nada aconteceria.

Como a unha que realmente nunca consegue se sujar: é apenas ao redor da unha que está sujo, e corta-se a unha e não dói sequer, ela cresce de novo como um cacto.

É também verdade que se uma pessoa fizesse apenas o que entende, jamais avançaria um passo.

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Se espantou da coincidência daquele homem estar exatamente no sítio, e se espantou com a coincidência extremamente curiosa dela mesma estar no sítio.
Mas- pensou forçando-se a alguma modéstia- não há um fato que não se ligue a outro, sempre há uma grande coincidência nas coisas.

- Olhe essa samambaia!- disse ela para o homem porque uma pessoa não pode dizer "eu te amo".

Era um labor de infinita cautela, onde um passo a mais e o homem jamais a amaria, onde um passo a mais e ela mesma deixasse de amá-lo: ela protegia ambos contra o erro.

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- É que você vive muito isolada e já não sabe mais o que se conta aos outros e o que não se conta.

Quem tinha o tempo de uma vida apenas, teria que condensar-se com artes e truques.
Aquela moça morria de medo de passar sua vida inteira sem ter a oportunidade de dizer certas coisas que já não lhe pareciam importantes, mas delas ficara a obstinação de um dia dizê-las.

É preciso muitas vezes enganar a quem se pede. É preciso, a modo de dizer, pedir disfarçando.

- Requer-se arte, minha senhora, muita arte, pois sem ela a vida erra. E muita sagacidade: pois o tempo é curto, há de se escolher numa fração de segundo entre uma palavra e outra, entre lembrar e esquecer, é preciso técnica!

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Mas é certo que na desordem de um primeiro encontro houve um momento em que os dois, enfim esquecidos do que penosamente queriam copiar para a realidade, houve um momento não preparado por ambos, em que ambos precisavam saber por que é que o outro era o outro, e se esqueceram de dizer "por favor"; um momento em que, sem um injuriar o outro, cada um tomou para si o que lhe era devido sem que um roubasse nada do outro e isso era mais do que eles teriam ousado imaginar.

Pegando, calma, nas roupas a emendar, ela sentiu uma felicidade muito menor do que era capaz de sentir, mas tratava-se dessa coisa que se quer: concreta.

Olhou-o: obrigada por você ser real, disseram seus olhos abertos.

É que era doce e penoso um homem sair e uma mulher ficar.
Assim é que provavelmente deviam ser as coisas.

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A grande liberdade que se pode ter quanto ao que já aconteceu...

A mulher então se perguntou absorta se não haveria mil outras coisas que lhe tinham acontecido... E das quais ela simplesmente ainda não sabia.
Perguntou-se, com a gravidade de uma descoberta, se ela na verdade não tinha escolhido viver de alguns fatos passados, quando poderia viver igualmente de outros que tinham igualmente acontecido- e tinha direito a eles.

- Como eu ia dizendo, foi por causa disso que eu vim para cá. Foi um erro. Mas faço tantas outras coisas por esse mesmo motivo que não sei explicar!

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As pessoas ruins são de uma tal ingenuidade! O perigo está apenas nos atos das pessoas ruins pois esses têm conseqüências, mas elas próprias não são perigosas, são infantis, são cansadas.

A indocilidade do desejo. Picado por uma vontade de aproximação, estava afoito.

Contruiremos com as mesmas pedrinhas outra organização definitiva, derrubando antes a primeira? Ou resolveremos sensatamente caber na primeira?

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E todo disposto como um homem que se embala para uma corrida de um quilômetro e esbarra com o fato de ter apenas dois metros para correr - ele desinchou desapontado.

Assim pois, depois da explosão, mantiveram-se calados como se nada tivesse acontecido porque ninguém pode viver do espanto, ninguém pode viver à base de ter vomitado ou ter visto alguém vomitar; eram coisas a não se pensar muito a respeito: eram fatos de uma vida.

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Parece que muitas vezes se amava tanto uma coisa que por assim dizer se tentava negá-la, e tantas vezes é o rosto amado o que mais nos constrange.
E ele não a queria tanto a ponto de desejar que ela viesse.

Ele estava experimentando o que era pior que tudo: não querer mais.
Mas calculou ele que não querer era tantas vezes a forma mais desesperada de querer.

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Afinal uma pessoa se mede pela sua fome- não existe outro modo de se calcular.

Pois tudo tem um único ponto máximo, e cada coisa tem uma vez, e depois nos preparamos para a outra vez, que será a primeira vez...

Fui até onde pude. Mas como é que não compreendi que aquilo que já não alcanço em mim... já são os outros?

Preferia então o silêncio intacto. Pois o que se bebe é pouco; e do que se desiste, se vive.

Porque afinal não somos tão culpados, somos mais estúpidos que culpados.

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Clarice Lispector- A Maçã no Escuro.