sexta-feira, dezembro 28, 2007

História da Vida Privada- Influência do Modelo Americano.

American Way of Life

A educação visa a incular na criança o desejo de conquistar sua autonomia, desenvolvendo todas as suas potencialidades e ao mesmo tempo respeitando as normas (o que gera um certo conformismo).

Como a ética protestante continua a alimentar o espírito do capitalismo, o trabalho não é visto como um atentado à vida pessoal, e sim como a essência da existência.
O espírito competitivo, incutido desde cedo, acompanha a socialização do indivíduo.
O êxito profissional é a condição sine qua non da realização identitária.

É bonito andar sempre "ocupadíssimo", ficar mencionando inúmeros encontros que o solicitante diz serem urgentes, chegar atrasado aos jantares, não responder às cartas, não ligar de volta para as pessoas que deixara recado, etc.

Os americanos elaboraram técnicas de administração do tempo que são ensinadas nas high schools.
O objetivo é sempre a eficácia, e existem dois termos para designá-la: eficiência (a tarefa será efetuada no menor prazo de tempo possível), e a efetividade (seu objetivo será alcançado).

É também a concepção americana do tempo que ajuda a explicar o alto índice de divórcios. Impera a certeza de que há "tempo pela frente", que depois de um fracasso sempre é possível recomeçar e dar certo.
O casamento é um empreendimento sério demais para permitir uma resignação à mediocridade.

Pesquisas realizadas nos anos 80 nos informam que a maioria dos entrevistados considera seu casamento mais bem-sucedido que os dos pais, e 90% afirmam que é no casal que eles encontram "a razão principal de sua felicidade".

Para ajudar nessa tarefa, acredita-se na competência dos especialistas, não se hesita em pedir os conselhos supostamente esclarecidos de um psicanalista ou um sexólogo.

A cultura dos medos individuais e coletivos ocupa um lugar importante.
Câncer, Aids, depressão nervosa, overdose, suicídio, terrorismo cego ou apocalipse atômico do lado coletivo, tudo isso é mostrado ou imaginado pela imprensa e pela televisão com um deleite que corresponde visivelmente a uma expectativa.

A sociologia da comunicação nos mostra que, para dar certo, a coerção tem de passar pela sedução.

As violências televisivas, moderno sucedâneo dos jogos circenses, provavelmente despertam repulsa e prazer num público todavia entediado.

Com medo, o americano das cidades aprende a viver sob a vigilância de circuitos de tevê integrados, a andar de carro com as portas travadas, a morar numa casa com as janelas trancadas.

Surgem sociedades (esquizóides) com uma história vivida em dois tempos: o da história aditiva, cumulativa, do "progresso" científico e tecnológico, e esse outro tempo mais lento, até repetitivo da vida privada.

(E lembremos que um cuidado constante dos autores dessa obra é evitar qualquer confusão entre vida cotidiana e vida privada.)

Modelos Estrangeiros- Sophie Body-Gendrot.
História da Vida Privada- Da Primeira Guerra aos Dias de hoje.

História da Vida Privada- O Corpo.

O Espelho

Com o surgimento do espelho, a pessoa deixa de perceber sua identidade no olhar do outro e passa a contemplá-la no espelho grande do quarto ou do banheiro.

Ontem a radiografia, hoje a ecografia, o scanner e a tomografia nos contam o que se passa em nosso interior. É um meio preventivo eficiente mas também fonte de novas preocupações. As pessoas não se contentam mais com a sintomatologia: querem desvendar a causa prmeira de qualquer mínima disfunção.

Característica de uma sociedade de abundância que considera a gordura "ruim" e a obesidade "vulgar", a estética da magreza é imposta pelo sistema da mídia, que intima as mulheres a seguir dieta e fazer ginásticas sempre novas. Esse culto do próprio corpo exige sacrifícios: em primeiro lugar financeiros, a seguir éticos, visto que os meios de comunicação nos repetem que "a pessoa tem o corpo que merece", o que leva a um novo sentido de responsabilidade.

O esporte foi introduzido pela primeira vez em escolas públicas por volta de 1830, e o objetivo era canalizar- socializar- a violência.

Os meios de comunicação nos estimulam a comer e nos intimam à magreza, empurram-nos para os fogões com receitas para emagrecer. Celebram a boa mesa e o regime, a arte culinária e a dietética.

Antigamente, os rituais alimentares (café da manhã, almoço, jantar) imprimiam o ritmo à vida familiar.
Hoje, a alimentação está cada vez mais submetida às imposições do trabalho. A jornada contínua introduziu os fast foods, que servem uma quantidade incalculável de refeições diárias.

Os segredos da fabricação escapam ao consumidor.
Experiências mostraram que a criança pequena escolhia sempre o alimento mais açucarado, mesmo que se acrescentasse um produto amargo para encobrir o sabor doce.
Como a indústria alimentícia se deu conta dessa apetência inconsciente pelo açucarado, ela nos oferece produtos amargos, salgados, apimentados... todos contendo açúcar.

Se folherarmos uma revista feminina veremos nas propagandas e nas matérias a redundância do tema da magreza: "Para emagrecer", "Para continuar magra"... E as revistas oferecem com sucesso suas "fichas culinárias", bem0fetas e destacáveis. Assim, continua a se comer, mas com pavor e vergonha.

Envelhecer.

Publicações também descrevem pormenorizadamento os mistérios das grandes estratégias anti-velhice: tinturas ou loções especiais para cabelos brancos, cirurgias estéticas, cremes anti-rugas ou para os seios, tratamentos revitalizantes. Nutricionistas esfecificam o conteúdo do regime, sexólogos lembram que o prazer não conhece limites de idade.

A morte, que agora ocorre no hospital ou na clínica, é totalmente medicalizada. O óbito precisa ser constatado por um médico legista antes de ser registrado em cartório. O momento da morte coloca um problema: antes, era quando a respiração cessava, o que era verificado com um espelhinho diante da boca do moribundo; depois, quando o coração deixava de bater, hoje, é o eletrocardiograma absolutamente reto que fornece a prova da morte. Ela já não é um passamento instantâneo: é uma série de etapas que podem se escalonar ao longo de várias horas, ou até dias.

Há uma expulsão da morte da vida cotidiana, uma dessocialização do luto.

Em 1986, o padre Jean Hamburger declara: "A tarefa do médico não é manter a vida a qualquer preço, não é impedir a morte natural, é apenas prevenir a morte patológica que vem antes da hora."

R. P. Riquete concorda: "não se entregando a acrobacias terapêuticas em relação a esse moribundo, prolongando uma agonia sem esperanças". Mas onde começam essas acrobacias?

O corpo e o enigma sexual- Gerárd Vincent
História da Vida Privada- da Primeira Guerra aos nosso dias.

História da Vida Privada- Relacionamentos

O Prazer

Os sexólogos se encarregam de tranqüilizar os homens e desculpabilizar as mulheres: eles acham que o comportamento mais capaz de conciliar as exgências da ordem social e os imperativos do sexo seria uma "monogamia flexível" (uma ou mais relaçõe estáveis durante a vida, além de relações passageiras e "aventuras").

Pois o controle sexual se reintroduz, substituindo o "dever conjugal" pelo "direito ao orgasmo", que por sua vez se converte em "dever do orgasmo".

O homem passa a procurar ler no olhar de sua parceira a feliz consumação do ato, expressa em gírias como "virar os olhos", "mostrar o branco dos olhos", "ficar com os olhos de pescada frita".

O que contraria a visão anterior da volúpia feminina.
Brantôme aconselhava ao marido que não dê à mulher o gosto dos jogos amorosos, pois "para cada tição em brasa que elas têm no corpo, elas geram outros cem".

Depois de anos de condenação, a masturbação sai do campo do secreto para se tornar- dizem-nos os sexólogos- a melhor preparação para a união satisfatória com o outro.

Por que ficamos sexualmente excitados?
Um espírito singelo daria respostas simples: falta de relações sexuais durante certo tempo, contemplação de um ser desejável, estimulação direta das partes erógenas, etc.

O mecanismo é mais complexo, diz-nos o psicanalista.
R. Stoller afirma que a excitação sexual é basicamente provocada pelo desejo de perturbar, de provocar: "Os fantasmas funcionam, a hostilidade, o mistério, o risco, a ilusão, a vingança, o desejo de apagar ressentimentos e frustrações, a feitichização, sendo que todos esses fatores se encontram ligados por segredos".

"Tentamos fazer de pessoas estranhas nosso bode expiratórios, mas todos, como os analistas, que são depositários de pensamentos eróticos sabem que muitos cidadãos manifestamente 'normais'- e não só os que gostam de vomitar eronicamente, os fornicadores de cabras- são igualmente cheios de ódios e desejos- se não de projetos- todos têm seu mau gosto".

A oferta precisa ser ajustada à demanda- digamos, à expectativa. É a lei do mercado. Certamente, é difícil alimentar fantasias com "um homenzinho redondo e careca". Mas é arriscado, temerário, sonhar apenas com "o homem jovem, bonito, e rico".

As revistas celebram "a amante exigente magnificamente capaz de orgasmos em rajadas sucessivas". Nesses embates, nada de pudores desnecessários.

Oferece-se também conselhos às mulheres para "conservar o amante de uma noite": "Evite beijos grudentos e palavras melosas. Seja o que quer. Brinque de amante. Sonhe. E, finalmente, construa uma verdadeira paixão. Pois o outro não poderá passar sem tais momentos. E, portanto, sem você."

Homossexualidade.

O Relatório Kinsey, quando foi feito, afirmava que "segundo as leis em vigência, 95% dos americanos deviam estar na prisão por crimes sexuais".

Escândalo! Mas um escândalo tranqüilizador: sabendo-se tão numerosos, os "culpados" se sentem inocentes.

Os homossexuais podem agora sair da clandestinidade e afirmar sua normalidade específica.

Visto que os valores e as normas passam a dissociar o ato sexual da reprodução, visto que a busca do orgasmo autoriza a contabilidade dos êxitos alcançados, a prática homossexual se aproxima da heterossexual.

Ao contrário da caricatura de falar alto e fazer gestos exagerados, as imagens míticas mais freqüentes na imprensa homossexual e nas resvistas especializadas são o coubói, o caminhoneiro e o esportista.

O Amor no Casamento

Paixão, fantasias, continência imposta pelo hábito, contato amistoso e silêncio?
Em que momento o leito conjugal é trocado pelas camas separadas, pelos quartos individuais?

Casais vivem décadas juntos, prudentemente adiando certos comentários ou perguntas. Não nos referimos apenas a segredos "utilitários", como o adultério ou fantasias criadas, mas também a questões tão prosaicas como a irritação provocada por roncos, gestos e repetições de histórias contadas- e portanto ouvidas- mais de cem vezes, e a cada vez mais enfeitadas.

E o segredo da mecânica do desejo, e de suas avarias, parece intacto.

O primado do eu sobre o nós conjugal, desvalorizando a constância e a fidelidade em favor da auto-realização das potencialidades pessoais, coloca a existência conjugal em novos termos. Agora não se trata mais de se "instalar" nela, mas de vivê-la sabendo que o outro é uma liberdade capaz de reinvindicar a qualquer momento sua alteridade.

Segredos de Família- Gérard Vincent
História da Vida Privada- Da primeira Guerra aos nossos dias.

quarta-feira, dezembro 26, 2007

História da Vida Privada- Subjetividade.

A Memória

Agora que as pessoas vivem cada vez mais, começam a trabalhar cada vez mais tarde e param cada vez mais cedo, as férias são cada vez mais longas e a jornada de trabalho cada vez mais curta, elas decidiram que não têm mais tempo para escrever. Apenas alguns amantes obstinados se arriscam a criar esses traços indeléveis. O telefone está mais adaptado à civilização do efêmero, e os prudentes acham, com razão, que ele dá espaço para os desmentidos: "Eu nunca disse isso."

O processo de memorização funciona idiossincraticamente. Duas pessoas que vivem juntas há décadas retêm seletivamente certos episódios, e não os mesmos. Quando um casal rememora o passado, as lembranças guardadas não são iguais, e quando são as mesmas recebem pesos diferentes.

O Imaginário

A sociedade contemporânea, mais do que todas as anteriores, é icônica. Num único dia, a criança vê centenas e milhares de imagens: cartazes nos metrôs ou nas ruas, histórias em quadrinhos, livros ilustrados, cinema, televisão.

O imaginário não funciona a partir de enunciados transmitidos oralmente ou por escrito, mas a partir da torrente- a metáfora não é excessiva- de imagens despejadas pelos meios de comunicação.

Com essas imagens que nos empanzinam, corre-se o risco de criar uma ilusão de objetividade. Ora, a imagem não é neutra: todos os artifícios do enquadramento foram elaborados por fotógrafos, editores, cineastas. A montagem, isto é, a sucessão das imagens numa determinada ordem, dá um sentido a essa cronologia visual.

O Medo.

No ombro musculoso do caminhoneiro, lê-se a famosa tatuagem: "Perdoar talvez, esquecer jamais.

Nascem novas incertezas: a duração do relacionamento, o emprego. A história da vida privada é também a história do medo, dos medos.

Os temores ingressam na era comercial. A necessidade de segurança cria profissões, e os profissionais, por sua vez, não se fazem de rogados para alimentar nossos temores. Há para todos os gostos, todos os tamanhos, todos os receios. Os negócios vão bem no mercado do medo.

O medo desempenha seu papel na preservação de segredos: "Não quero saber". A recusa, tal como a mentira, é uma simplificação.

Ainda mais angustiante é esta observação: os torturadores de hoje são muitas vezes as vítimas de ontem. Essa inversão de papéis- o mártir que vira carrasco- levanta uma interrogação ontológica extremamente banal: o que é o homem?

A Guerra Permanente.

Se um homem recebe a morte, ele se transforma em um cadáver. Se um homem dá a morte, ele se tranforma em outro homem.

Como sobreviver num campo de concentração? A negação da identidade é imediata: a tosquia, as roupas de deportado, a retirada de qualquer objeto pessoal- principalmente a aliança. Não resta um traço daquilo que determinava a situação social do indivíduo.

Em Vida e Destino, Vassili Grossman diz: "Nós elaboramos uma tese superior: não existem pessoas inocentes na Terra. Cada indivíduo merece o tribunal. É culpado todo aquele que é objeto de uma ordem de prisão. E pode-se assinar uma ordem para qualquer um. Todos os homens têm direito a uma ordem de prisão. Inclusive os que passaram a vida a assinar para os outros".

A tortura é um meio de governo: mais que a confissão, ela busca informações que permitam a perpetuação do poder.

Em Paris um colóquio sobre "Isolamento e Tortura", Nicole Lévy, médica legista, afirma que a finalidade da tortura não é fazer com que os supliciados falem, mas também- e principalmente- que calem, que percam a identidade e, por decorrência, a palavra.

A Segunda Guerra Mundial, os campos nazistas, o Gulag, os desaparecidos, as Guerras da Argélia e do Vietnan despertaram um sentimento de culpa coletivo que foi interiorizado por milhões de indivíduos. "Não fazemos o que queremos, mas somos responsáveis pelo que fazemos", escreveu Sartre.

Uma História do Segredo? (Gérard Vicent)
História da Vida Privada- da Primeira Guerra a nossos dias.

História da Vida Privada- Relações de Trabalho.

A socialização da Educação dos Filhos.

A escola recebe a incumbência de ensinar os filhos a respeitar as obrigações do tempo e do espaço, as regras que permitem viver em comum e encontrar uma relação justa e adequada com os demais.

A autoridade dos pais se tornou abritrária. Os pais de antigamente eram autoritários tanto por costume quanto por necessidade: quando vinha a ameçada de uma tempestade, eles não iam perguntar a opinião dos filhos antes de mandar recolher o feno, e é claro que alguém precisava ir buscar água, lenha,etc. A necessidade fazia a lei.

São os pais que hoje procuram as colônias para que seus filhos passem férias interessantes: a seus olhos, a colônia constitui um meio mais rico e mais educativo que a família.

Não são mais os pais que escolhem a carreira e o ofício dos filhos. (...) A enorme pressão da orientação vocacional sobre os alunos assume o lugar dos pais, dispensando-os de exercer uma pressão análoga, que dificultaria ainda mais as relações familiares.

Com a evolução educacional, os jovens conquistaram uma grande independência dentro da família: já não precisam mais casar para escapar ao poder dos pais. Também não é mais necessário casar para manter relações regulares com um parceiro do outro sexo, já que essas relações só terão alguma conseqüência se os parceiros assim quiserem.

As Relações de Trabalho em Questão.

Um mesmo movimento faz com que operários e empregados de escritório deixem de se sentir à serviço de um homem, o patrão, e que suas tarefas e relações de trabalho sejam definidas de maneira mais formal.
O universo do trabalho se burocratizou: as relações diretas tendem a ser eliminadas, e o poder do superior se dissimula por trás da aplicação de regras impessoais, circulares e notas de serviços, vindos de uma instância mais alta.

Desse modo, o envolvimento pessoal no trabalho é estritamente limitado: a verdadeira vida é a vida privada.

Numa alegre mixórdia teórica que alguns universitários tentam pôr em ordem, divulgadores de competência desigual propõem as empresas toda uma gama de formações, que têm nas dinâmicas de grupo a forma mais fascinante e temida. Em suma, de mil maneiras diversas, as relações interpessoais na empresa estão na ordem do dia.

Todas as manhãs, os chefes apertam as mãos dos operários. A primeira lei é: ser gentil com o operério. A direção insufla essa corrente de gentileza em sua equipe de comando, que tenta empregá-la em detrimento dos velhos métodos autoritários. A segunda lei é: é preciso deixar que as pessoas se expressem.

Cada qual se vê intimado a falar na primeira pessoa, a tomar partido, a dizer o que pensa, e não só o que sabe.

Rumo a uma Sociedade Descontraída e O Conformismo Emancipado

Na indústria dos encontros e das afinidades, o sorriso e a descontração se convertem em normas. A capacidade de se aceitar em seu ridículo, por exeplo durante jogos, mostra que a pessoa não é "travada", que é disponível, "simpática", sabe participar. O sério da vida social comum se vê desqualificado: em suma, é "medíocre".

Encontra-se o mesmo tom na publicidade que invade os muros e os aparelhos de televisão. A propaganda não diz nada, ri de si mesma, inconsitente e ligeira. Joga com as imagens e as palavras, evitando acima de tudo se levar a sério.

Através dos meios de comunicação, o universo da vida privada não está apenas em contato com todo o planeta: ele é invadido por todos os lados por uma publicidade que, junto com os objetos de consumo, veicula um novo modo de vida e talvez uma ética.

"Isso não se faz mais, isso é coisa velha", "Permita-se esse prazer", "Faço o que quero..."

Cada um tem a sensação de estar agindo à sua maneira, com toda a autonomia, e dessas decisões soberanas resulta o surgimento de um mercado cada vez maior para produtos feitos em série.

Não se trata, porém, de uma maquinação, e sim do próprio funcionamento de nossa sociedade. Não são decisões de alguns agentes maquiavélicos que teriam decidido impôr suas ideologias. Nem as pessoas dos meios de comunicação nem os publicitários alimentam tais intenções. Cada um simplesmente executa sua tarefa, formando uma nebulosa de controles fluidos, onde ninguém detêm um verdadeiro poder.

Fronteiras e Espaços do Privado (Antoine Prost)
História da Vida Privada- Da Primeira Guerra a Nossos Dias.

sexta-feira, dezembro 21, 2007

Ilustrar, editar, seqüenciar, cortar...

>>> Tudo indica que o poder é algo fluido, deslocante, flutuante, transitório e, acima de tudo, independente do desejo, da manipulação, da administração, do controle dos agentes.

Assim, o poder é algo que, por princípio, não aparece, ou melhor, só aparece em seus efeitos.

Nunca está onde se convenciona situá-lo, como tampouco reduz-se às instituições que buscam fixá-lo, nomeá-lo ou localizá-lo.

>>> O processo é caracterizado por "circulação frenética", e os capitais giram, proliferam, multiplicam-se apenas pelo fato de estarem circulando.

A imagem publicitária, a imagem formada através do trabalho de marketing, de relações públicas orienta-se para a constituição de núcleos genéricos e difusos em torno do nome de empresa.

Trabalhar e receber salário tornam-se componentes místicos do sistema, espécie de ingresso, senha, para poder mesmo "entrar no mundo" do consumo e das mercadorias. O trabalho na era da técnica torna-se uma concessão.

>>> A técnica não só deu conta das aspirações humanas em realizar suas intenções de expansão, exploração e domínio, mas superou-as excepcionalmente.

As crises históricas e os caminhos desastrosos a que conduziram os desenvolvimentos técnicos e as tecnologias, e especialmente as formas de dominação, opressão, violência, genocídios e ameaça planetária puseram em cheque a capacidade da administração racional da sociedade.

Sobreviveram, opostamente, fatos inexplicáveis, imprevisíveis, incontroláveis, inadministráveis, demonstrando que independente ou além de o homem conseguir dar conta da sua realidade, os eventos, acontecimentos, irrupções fogem absolutamente de seu controle e de sua atuação.

>>> A televisão joga com a categoria do tempo operando-o de forma própria e independente dos conceitos cronológicos usuais. É um tempo artificial e manipulado.

É uma forma de liquidificador geral, que mistura as mais diferentes matérias e submete-as todas a um mesmo tipo de tratamento, tornando-as absolutamente inóquoas.

É conhecido o fenômeno de que no Brasil as passeatas não se constituam até a chegada dos cinegrafistas da televisão. Só quando estes põem suas máquinas a postos e começam a filmar é que se compõem os movimentos de protesto, dissolvendo-se logo em seguida, no momento em que as câmeras são desligadas.

O jornalismo já não encontrava mais obstáculos numa prática que se tornou obstinada em vasculhar todos os espaços privados na busca de uma difusão pública, num pretenso interesse da própria sociedade.

Na forma de intercalar notícias sérias com notícias amenas, de jogar com a mágica das cores e do espetáculo, de ilustrar, editar, sequenciar, cortar, introduzir um ritmo de alta velocidade nas cenas que se intercambiam, em todos esses procedimentos puramente formais do processo de comunicação é que se implanta o mecanismo de pasteurização das mensagens.

>>> O efeito é o desaparecimento do outro.
Não se tem mais a necessidade de ser, de falar, de apresentar, de mostrar-se para o outro.
A referência agora é somente o si mesmo.

No mundo fragmentado, a coletividade é o que fascina e o próprio aparecimento do coletivo que é emocionante.

As pessoas vão para assistirem a si mesmas.

Há como que uma humorização geral e trabalha-se tudo sem se levar nada a sério.

>>> A intenção de programar o homem e fazer com que todas as atividades humanas tornem-se passos, estágios de um processamento.

A máquina jamais poderá sentir dor, chorar, sofrer, apaixonar-se, ter reações emocionais, inesperadas, mesmo cínicas, irônicas, pois são fatos que em tempo algum poderão ser representados, codificados, programados, traduzido para uma linguagem técnica dos computadores.

Por outro lado, aquele campo que exatamente Freud buscava ocupar cada vez mais pelas investidas do ego, o emocional-natural, é o que hoje aparece como a fonte única e mais segura para a nova identidade do homem na era eletrônica.

A sociedade Frankenstein- Ciro Marcondes Filho.

domingo, dezembro 16, 2007

Irreverência

“um novo homem, polido e sem humor, esgotado pela evitação de suas paixões, envergonhado por não ser conforme ao ideal que lhe é proposto”.

Sobretudo o terreno das relações interpessoais é caracterizado por um clima irreverente, onde a espontaneidade passa a ser o valor privilegiado.

Nada deve ser pesado ou sério; uma democratização jamais vista nas relações pessoais e institucionais tende a abolir qualquer hierarquia; por outro lado, também, ninguém deve se levar muito à sério.

A orientação geral é a de que a vida deve ser vivida de modo cool, ou light, isto é, sob a bandeira da descontração.

No imaginário vigente na sociedade depressiva, o conflito caducou, o sofrimento psíquico passa a ser entendido como tendo uma causalidade orgânica, e a psicanálise e sua busca de sentido para o mal-estar revelado através do sintoma, é acusada de ter criado mofo.

“O humor fun e descontraído passa a dominar (...) quando já ninguém, no fundo, acredita na importância das coisas” (Lipovetsky)

O humor pós-moderno é, assim, uma espécie de lubrificante social.

A leveza e o cinismo crítico próprios do humor que fazia rir estão bem distantes do cinismo desencantado da pós-modernidade, no qual vigora a dessubstancialização e a banalização esterilizante.

DO HUMOR E DO GROTESCO NA PSICANÁLISE
Daniel Kupermann

www.gradiva.com.br

sábado, dezembro 15, 2007

Estudando Behaviorismo...

O fato de que aplicam aos homens as mesmas fórmulas e resultados que eles, desencadeados, arrancam a animais indefesos em seus atrozes laboratórios de fisiologia confirma essa diferença de maneira particularmente refinada.

A conclusão que tiram dos corpos dos animais não se ajusta ao animal em liberdade, mas ao homem atual.

Ele prova, ao violentar o animal, que ele e só ele em toda a criação funciona voluntariamente de maneira tão mecânica, cega e automática como as convulsões da vítima encadeada, das quais se utiliza o especialista.

A falta de razão não tem palavras.

E quando os homens chamam a psicologia em seu socorro, o espaço reduzido de suas relações imediatas se vê ainda mais reduzido, mesmo aí eles são convertidos em coisas.

Adorno e Horkheimer- Dialética do Esclarecimento- Notas.

domingo, dezembro 09, 2007

Idílico

Acho que não é a paixão que está na moda, é a palavra paixão que está na moda.
Como detetive, cheguei à conclusão, às avessas, de que não é que nossa época seja muito apaixonada. Se a gente está valorizando tanto isso aí, é porque está faltando. Hoje, você fala em boi mais que há três meses atrás, é porque está faltando, não porque está sobrando, de uma maneira geral.

Mais ou menos o seguinte: a palavra paixão tinha, a princípio, um sentido passivo. Você diz assim: a Paixão de Cristo, quer dizer, aquilo que Cristo sofreu, aquilo que ele padeceu.

Vi que a palavra paixão vem do latim, mas existe uma palavra nas línguas indo-européias, que significaria uma espécie de você ser o objeto de uma ação, e esse verbo, essa palavra, não teria passado propriamente para o português, não do jeito como eu estou pensando.

Em português, temos a palavra sofrer, mas a palavra sofrer já vem carregada de uma conotação de dor, que, no original, esse radical não tinha.
...

O amor é um sentimento muito recente. Não sei se vocês já se deram conta, mas o amor é uma coisa que naseu, o amor tal como nós entendemos, o amor idílico, esse amor, por exemplo, que sustenta as novelas da Janete Clair, no horário das oito, o amor das fotonovelas, esse amor que sustenta nossa vida de hoje de um modo quase obsessivo, a tal ponto que chega assim: Você será feliz no trabalho e no amor.

Não que o homem e a mulher, a mulher e o homem, nunca tenham tido alguma coisa um pelo outro, mas na Antiguidade, por exemplo, isso era tido como uma espécie de maldição. Era como uma espécie de feitiço. "Estou encantado com essa garota".

Saber como o amor nasce, a primeira paixão, o amor à primeira vista, a continuação, o auge, a loucura, o fim, isso teria que se buscar nos poetas, porque não existe nenhuma ciência, com toda a sua ambição totalitária, que englobou todos os teritórios, todo o real, como um objeto de saber que cabe dentro de uma coisa que a gente chama de ciência, né?
Ora, o amor não cabe dentro desse quadro.

Paulo Leminski: A Paixão da Linguagem.

sexta-feira, dezembro 07, 2007

No lugar onde o desejo foi atingido

A burrice é uma cicatriz.
Ela pode se referir a um tipo de desempenho entre outros, ou a todos, práticos e intelectuais.
Toda burrice parcial de uma pessoa designa um lugar em que o jogo dos músculos foi, em vez de favorecido, inibido no momento do despertar.
Com a inibição, teve início a inútil repetição de tentativas desorganizadas e desajeitadas.

A repetição lembra em parte a vontade lúdica, por exemplo do cão que salta sem parar em frente da porta que ainda não sabe abrir, para afinal desistir, quando o trinco está alto demais; em parte obedece a uma compulsão desesperada, por exemplo,

quando o leão em sua jaula não pára de ir e vir,
e o neurótico repete a reação de defesa, que já se mostrara inútil.

(...) frequentemente, no lugar onde o desejo foi atingido, fica uma cicatriz imperceptível, um pequeno enrijecimento, onde a superfície ficou insensível.

Essas cicatrizes constituem deformações.

Elas podem criar caracteres, duros e capazes,
podem tornar as pessoas burras -
no sentido de uma manifestação de deficiência, da cegueira e da impotência,
quando ficam apenas estagnadas,
no sentido da maldade, da teimosia e do fanatismo,
quando desenvolvem um câncer em seu interior.

A violência sofrida transforma a boa vontade em má.
E não apenas a pergunta proibida,
mas também a condenação da imitação, do choro, da brincadeira arriscada,
pode provocar essas cicatrizes.

Como as espécies da série animal,
assim também as etapas intelectuais no interior do gênero humano
e até mesmo os pontos cegos no interior de um indivíduo
designam as etapas em que a esperança se imobilizou
e que são o testemunho petrificado do fato de que todo ser vivo se encontra sob uma força que domina.

Sobre a Gênese da Burrice- Adorno e Horkheimer.
(Dialética do Esclarecimento- notas

quarta-feira, dezembro 05, 2007

Dosá-las.

A paixão é sempre provocada pela presença ou imagem de algo que me leva a reagir, geralmente de improviso. Ela é então o sinal de que eu vivo na dependência permanente do outro.

O estudo dos efeitos que o discurso produz sobre os homens é que faz com que o pathos perca o seu sentido mais amlo de fenômeno passivo para vir a designar as percepções da alma. O objetivo do orador, e, mais ainda, o do poeta, não consiste em apenas convencer através de argumentos. É também necessário que ele toque a mola dos afetos, e utilizem os movimentos que prolongam certas emoções.

Um homem não escolhe suas paixões. Ele não é, então, responsável por elas, mas somente pelo modo como faz com que elas se submetam à suas ação.

As paixões, as possibilidades que temos de dosá-las.

Hegel: "A palavra pathos é de difícil tradução, pois paixão implica algo de insignificante, baixo- como quando dizemos que um homem não deve sucumbir às paixões".
(...) O pathos que os anima pode ser simples, mas nem por isso tem a monotonia de uma idéia fixa. Trata-se antes da tonalidade específica de suas condutas, da tensão que unifica seus atos- sem importar que situações estejam enfrentando.

Há um só meio de evitar as paixões: extirpá-las, impedindo que a emoção se tranforme em uma tendência. Esse é o objetivo da profilaxia estóica. De tanto medir a fragilidade da vida e a precariedade dos bens que não dependem de mim, acabarei por não mais reagir negativamente aos efeitos, permanecendo apático, mesmo aos golpes imprevisíveis do destino.

Essa sabedoria não é equivalente a uma anestesia, como se afirmou algumas vezes, e a apatia não consiste, exatamente, em insensibilidade. "O sábio", diz Crisipo, sofre a dor, mas não é mais tentado por ela: sua alma não se abandona mais a ela.

Ele ainda sente a emoção, mas é suficientemente treinado a ponto de não interpretá-la de maneira fantasiosa, jamais se deixando tragar por ela. Ele é como um ator experiente que permanece sempre distante das peripécias do drama que representa.

Não se trata mais de saber até que ponto é conveniente deixar que suas paixões se extravasem. Seria absurdo pretender controlar a paixão e modular sua força, pois ela é sempre o sintoma de uma doença e não de uma reação inevitável a uma emoção.

"É preciso destruir as paixões": esta é a decisão ingênua que torna danosos a maioria dos ascetismos. Danosos, não por serem "repressivos", mas porque partem da idéia que é impossível viver uma paixão sem ser totalmente dominado por ela.

Nietzsche:"Destruir as paixões e os desejos só por causa de sua tolice e para evitar suas conseqûencias desagradáveis, parece-nos uma manifestação aguda de tolice. Não admiramos mais os dentistas que extraem os dentes para evitar que incomodem mais".

Não consideramos mais as paixões como componentes do caráter de um indivíduo, os quais ele deveria governar, mas como fatores de perturbação do comportamento que ele é incapaz de controlar unicamente através de suas forças.

Apenas uma terapêutica seria então capaz de encontrar a razão disso tudo. Para compreender o que significa esse declínio da idéia de paixão seria necessário pôr o fenômeno em relação com o deslocamento moderno do "eu" e questioná-la quanto à idéia de responsabilidade social.

A medicina ocupa cada vez mais o lugar da ética; a noção de desvio, o do erro; e a cura, o do castigo.

Jule Romains: "Todo homem com saúde é um doente que se ignora".

O conceito de Paixão- Gérard Lebrun.

terça-feira, dezembro 04, 2007

Além do Princípio do Prazer

Prontamente expressaríamos nossa gratidão a qualquer teoria filosófica ou psicológica que pudesse informar-nos sobre o significado dos sentimentos de prazer e desprazer que atuam tão imperativamente sobre nós.

A maior parte do desprazer que experimentamos é um desprazer perceptivo.
Esse desprazer pode ser a percepção de uma pressão por parte de pulsões insatisfeitas ou da percepção exterma do que é aflitivo em si mesmo, ou excita espectativas desprazerosas, isto é, que é reconhecido como 'perigo'.

A 'ansiedade' descreve um estado particular de esperar o perigo ou preparar-se para ele, ainda que possa ser desconhecido.
O 'medo' exige um objeto definido de que se tenha temos.
'Susto', contudo, é o nome que damos ao estado em que alguém fica, quando entrou em perigo sem estar preparado para ele, dando-se ênfase ao fator da surpresa.

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Encontramos pessoas em que todas as relações humanas têm o mesmo resultado; tal como o benfeitor que é abandonado por seus protegidos, o homem cujas amizades findam por uma traição por parte do amigo, (...) o amante cujos casos amorosos atravessam as mesmas fases e chegam à mesma conclusão.
Essa 'perpétua recorrência da mesma coisa' não nos causa espanto quando se refere a um comportamento ativo por parte da pessoa interessada, e podemos discenir nela um traço de caráter essencial que permanece sempre o mesmo, sendo compelido a expressar-se por uma repetição das mesmas experiências.
Ficamos muito mais impressionados nos casos em que o sujeito parece ter uma experiência passiva, sobre a qual não possuí influência, mas nos quais se defronta com uma repetição da mesma fatalidade.

Como a repetição de uma experiência aflitiva harmoniza-se com o princípio de prazer?

Nas brincadeiras das crianças, em que repetem experiências desagradáveis pela razão adicional de poderem dominar uma impressão poderosa muito mais completamente de modo ativo do que poderiam fazê-lo simplesmente experimentando-a de modo passivo.

As crianças também nunca se cansam de pedir a um adulto que repita um jogo que com elas jogou, até ele ficar exausto demais para prosseguir. E, se contarmos a uma criança uma linda história, ela insistirá em ouví-la repetidas vezes, de preferência a escutar uma nova, e sem remorsos estipulará que a repetição seja idêntica, corrigindo quaisquer alterações de que o narrador tenha a culpa (...).

É claro que em suas brincadeiras as crianças repetem tudo o que lhes causou uma grande impressão na vida real, e assim procedendo, ab-reagem a intensidade da impressão, tornando-se, por assim dizer, senhoras da situação.

A representação e a imitação artísticas efetuadas por adultos, as quais, diferentemente daquelas das crianças, se dirigem a uma audiência, não poupam os espectadores (como na tragédia, por exemplo) as mais penosas experiências, e, no entanto, podem ser por eles sentidas como altamente prazerosas.

Isso constitui prova convincente de que, mesmo sob a dominância do princípio do prazer, há maneiras e meios suficientes para tornar o que em si mesmo é desagradável um tema a ser rememorado e elaborado.

Além do Princípio do Prazer- Freud.