quarta-feira, dezembro 08, 2010

Em muitas culturas, o álcool possuía tanto um significado religioso quanto medicinal, além de ter uma benquista função de relaxamento na condição de droga utilizada no cotidiano e nos dias festivos. E mesmo na literatura da Grécia antiga, que possui muitos tratados sobre o efeito frenético do alcool, nos quais as vantagens e desvantagens eram cuidadosamente avaliadas, nunca se observou, explicitamente, nenhum sinal de sintomas de abstinência.

E por que todo esse reabastecimento não conduziu à ruína? Ora, tal periodo de frenesi coletivo não se refere a uma antiga e normal conduta de vida, e a profunda relação entre frenesi e festa
pronuncia-se contra tal uso. Tempos de festa eram tempos especiais.

Algo diferente parece ocorrer onde a cerveja ganhou espaço de alimento básico, tal como nas regiões do norte e central da Europa no final da Idade Média. Já no café da manhã de muitas localidades se servia uma sopa de cerveja. Entretanto, ela era preparada de forma bem mais fraca
do que nos dias de hoje. O medidor de nível alcoolico do dia a dia deve ter sido suficientemente baixo, de modo que os frenesis- os quais tiveram a oportunidade de se tornar abundantes, uma vez que aumentara a quantidade de dias festivos (no final da Idade Média já eram
contabilizados mais de cem dias ao ano!)- se tornaram mais destacados.

Também aqui vale aquilo que é característico de todas as formas sociais pré-modernas: o ciclo das festas, que estruturou os cursos do ano e da vida, determinou também o ciclo de frenesis que fazia com que a comunidade festiva como que biorritmicamente regressasse com maior ou menor frequencia ao cotidiano apático.

Com a separação da festa e do frenesi nasce aquilo que hoje signfica vício.
Seu princípio histórico foi uma invenção que os árabes levaram para a Europa já no século XII: a destilação do alcool de alta percentagem.

Duas forças totalmente opostas estavam presentes no agente químico: A primeira referiu-se à devastação e à corrosão do culto de Deus, da moral do trabalho e do sentido da família; já a outra força possibilitava a disciplina com muito mais eficácia.

A bebida destilada, que lhe era misturada em porções diárias, servia como um tipo de lubrificante fisiopsicológico assegurando que as funções serão executadas sem dificuldades. As porções distribuídas de destilado parecem conter a exata medida que proporciona a anestesia (e não a embriaguez), onde já se identifica o trabalho preparatório para a posterior disciplina que será exigida nas indústrias.

O trabalhador chega cansado do seu trabalho e quer relaxar em casa; então ele encontra uma moradia sem qualquer conforto, úmida, pouco agradável e suja; ele necessita urgentemente de algo que o alegre, deve ter algo que faça valer a pena o esforço do trabalho, que torne
suportável a expectativa do próximo dia árduo
. Os donos de fábrica até o final do século XIX, distribuíam gratuitamente aguardente para a sua força de trabalho e, com isso, estimularam consideravelmente o alcoolismo entre os trabalhadores. Em muitas fábricas, uma parte do
salário era paga em bebida destilada.

Assim como na Bíblia Deus se fez homem, na modernidade o mercado desenfreado se fez representar no consumo desenfreado de das drogas.
Uma comunidade antiquíssmia adentrou numa nova fase. Da mesma forma que o mercado, as drogas têm sua origem no sacrifício sacro; tal como o mercado, elas se desenvolveram na condição de inseparáveis companheiras e benfeitoras, como acessório e ingrediente de ações de culto, e permaneceram, mesmo quando se destacam desse contexto de culto, a ele relacionadas.

E a droga é absoluta não apenas num sentido técnico, mas também social. Ela é como que destilada para fora de todos os contextos sacros e cessa de ser uma experiência que extasiava e alçava todo o coletivo para além do seu cotidiano. Por um lado, ela se torna
infinitamente banal, é mera substância que provoca frenesi, sem qualquer significado mais elevado. Por outro, ela não tem nada mais sobre si própria. Então, subitamente, ela mesma começa a representar o vago papel do mais elevado, pois deixa de ser acessório para se
tornar algo fundamental,
deixa de ser acidente para se transformar em substância, filosoficamente falando. Em duplo sentido, ela se transforma num concentrado. E isso ocorre não só porque a destilação aumenta sua dosagem alcóolica dez ou até 20 vezes, mas sim porque seu
alto percentual concentra também as mais elevadas expectativas concernentes, no início, a um contexto cultural harmonioso que posteriormente se eleva à esfera sacra. A aguardente se transforma no sucedâneo do sagrado desaparecido, no substituto da própria coisa.

Meios que entorpecem não podem ser desprezados. O que seria da medicina moderna sem a anestesia? A bebida destilada, usada para entorpecer as dores e angústias insuportáveis dos soldados, sendo que ocorria inevitavelmente o entorpecimento do caráter do soldado, pode ser por isso registrada como a “primeira ajuda”. O destilado, como ração periódica para os soldados, como meio de lubrificação psicofisiológico, como algo que garante o funcionar sem dificuldades é, no entanto, algo qualitativamente diferente, a saber, preparação para um cotidiano que não é de modo algum por estados de dor e de angústia cortantes, mas que se tornou, em certa medida, profano, e que, sem a ajuda desses meios de entorpecimento, dificilmente seria suportado.

Na medida em que grupos sociais rigidamente delimitados se tranformaram em massas amorfas e jogadas de um lado para o outro, sem que tivessem meios seguros de subsistência, sem uma coesão social segura, cujos hábitos e costumes tradicionais se desvaneceram. Todos
sentiram a necessidade de escapar desse estado e aspiraram a uma saída. Eis que o álcool destilado a oferece triplamente: ele era muito barato, facilmente acessível e agira de forma rápida, tal como nenhuma outra droga o fizera anteriormente.

O vício é a busca de um apoio vital num objeto falso, sendo que aqueles que o procuram não devem ser informados de que se trata de algo falso. Eles sentem, eles sabem que a substância na qual se aferram não fornece nenhum apoio, mas eles não têm outra e, por isso, cada vez mais se jogam a ela, a mesma substância que os priva daquilo que lhes deveria proporcionar. Quando se fala em sintomas de abstnência, os quais seguem o vício do mesmo modo como a sombra segue a luz, esquece-se facilmente de que é o próprio vício já um sintoma de abstinência. Entretanto, a sua abstnência, que representa uma forma de reação desamparada, silenciosa e continuamente moderna, não é tão evidente. Onde há abstinência perdeu-se algo que fora desejado. A energia emocional, por meio da qual se ligou ao desejado, vagueia por todos os lados, pressiona por recolhimento; e onde ela se vincula com algo que serve como alternativa para tal, e que não se distancia tanto assim do que fora privado e desejado, mas como que se coloca em seu lugar e é tratada como se fosse esse algo, realiza-se aquilo que Freud denominou “feitichismo”. Seja o feitiche um sapato, um tecido, um lápis, uma bebida, é sempre “absoluto” no sentido de que ele é percebido como algo desatado e separado do objeto de desejo que fora
privado. Entretando a escolha do feitiche nunca é aleatória, pois ele deve ser percebido como algo que remete ao privado, tornando possível tal substituição e, por outro lado, deve diferenciar-se dele, de tal modo que o fetiche não lembre claramente o privado, fazendo com que a dor da privação não penetre no limiar da consciência. O fetiche, portanto, possui um significado peculiar e flutuante. Ele representa o abstraído e, ao mesmo tempo, oculta-se.; ele é, na mesma medida, seu substituto e seu código.

Logo que o mercado cresce na forma de uma instância de sociabilização, aprofunda-se a concorrência, que não se restringe mais a um problema específico da relação entre negociantes e compradores, mas se tranforma em problema existencial. A concorrência penetra em todas as
relações de trabalho e não para nem diante da relação familiar tradicional. Pai e filho, mãe e filha, esposo e esposa se tornam tendencialmente concorrentes, assim que os postos de trabalho se tornam exiguos e cada um só pode vender sua própria mercadoria, ou seja, sua própria força de trabalho. O mercado é um caldeirão que junta os diferentes individuos, mas que também os isola no ato de troca. Cada um se troca contra o outro. Por isso, na luta geral do mercado só se impoõe quem troca melhor do que o outro.

E mesmo os mais ricos possuem, no final das contas, menos do que poderiam ter. Sempre se é ameaçado pelo prejuízo e pelo excedente.

O sentido comparativo da mercadoria faz dela própria um sintoma de abstinencia, pois fornece a ela, tambem num aspecto teoretico-funcional, um caráter fetichista, e revela a dinamica de
expansao do capitalismo como viciadora.


O simples desejar mais do que se tem se trransformou numa obstinação penetrante, tenaz e sistematica, e a dinamica sistematicamente viciadora se tornou um pano de fundo social do qual se servem todos os comportamentos viciados particulares.

A privação penetra profundamente tanto nas estruturas sociais quanto no sistema nervoso; ela penetra na conexão completa, no “controle' meneado em volta dos dogmas cristãos e dos sacramentos. É como se o sutil filamento que ligava tudo, de forma invisível, fosse extraído de
seu tecido sólido, tanto na dimensão social quanto na neuronal.

O fato de que a perda dessa coesão vital produziu uma, tal como os estatísticos diriam, correlação significativa com a garrafa de aguardente é corroborado na experiencia de coesão par excellence: a festa.

Pode significar exatamente o contrário: que se hoje se tem mais festas é porque o particular não mais possui a mesma força rebelde e entusiastica de tempos passados; que o aumento de sua quantidade não significou simplesmente mais diversao, mas sim sintoma de abstinencia. Para muitos, a inflaçao festima no limiar dessa epoca representa uma institintiva (certamente não consciente de si e dificil de ser demonstrada empiricamente) formação de anticorpos diante da
fragilizada força de ligaçao do sistema cristao de referencia e de relação.

Foi diante da impressao de um consumo excessivo de aguardente por parte dos trabalhadores assalariados, para os quais o consumo do do ópio se apresentava, em muitas regioes, excessivamente caro, que Marx pode formular sua famosa metafora da religiao como “opio do povo”. De certo modo, essa metafora perdeu o trem da historia, ela não interessa ao tempo no qual a pobreza não mais se afina com o apoio transmitido pela religiao.

O alcool destilado pode existir por séculos sem que fosse considerado uma substancia viciadora.
Foi uma imensa experiencia de privaçao que engendrou um novo padrao de comportamento social, que se denomina vicio.
A privaçao de tudo aquilo que era solido, duradouro e veneravel, produz uma sobriedade profana e sem compaixao.

O viciado sabe que a substância com a qual ele se agarra não fornece um apoio verdadeiro, mas ele não tem alternativa e nela se aferra. O seu organismo “crê” na substância e não para de exigi-la, embora ele duvide de seu efeito redentor. O vício torna evidente a dimensão fisiológica da crença e da descrença.

Tal como o álcool, o ópio começou sua carreira como calmante e analgésico e representou, até o início do século XIX, um papel semelhante ao representado hoje pela aspirina. Ele teve um ligar fixo na farmácia da casa. O médico familiar o receitou como nenhum outro medicamento.

Se os notoriamente desiguais ópio e haxixe são considerados mais oportunos do que o álcool,isso se deve ao fato de que ambos podem exercer uma estimulação especificamente desencadeadora de fantasia.

Eu o tomei e, dentro de uma hora, oh céus! Que revolução! Que ascensão dos mais profundos abismos do meu espírito! Um apocalipse do mundo dentro de mim! O ter-me aliviado das minhas dores era agora insignificante diante dos meus olhos: todo aspecto negativo foi tragado pela imensidade daqueles efeitos positivos que se abriram diante de mim, no abismo da alegria então repentinamente revelada. A felicidade podia agora ser comprada com uma moeda e carregada no bolso do casaco: êxtases portáteis poderiam ser engarrafados e a paz de espírito poderia ser remetida em galões pela diligência do correio. (Thomas de Quincey, 2001).

Mas ele sabe, e por isso escreve, que uma felicidade que pode ser comprada por um preço irrisório pode muito bem significar nenhuma.


Os paraísos artificiais, para os quais o ópio e o haxixe conduzem, têm, por um lado, uma inexprimível raiz no proibido que permite ponderar os paraísos como teologicamente corretos. Por outro lado, tais paraísos possuem o subsolo melancolicamente profundo do sentimento seguro de que, no meio de sua felicidade, o indivíduo se encontra infinitamente solitário.


É um mundo de sensação absoluta: o completo, isolado e desesperançoso deleite da felicidade na forma de seu fugaz substituto. O insistir obstinado em antiparaísos artificiais, como sendo paraísos exclusivamente humanos, num mundo destituído de paraísos.

A camada de verniz poética que se se coloca sobre o ópio e o haxixe, não deve procovar o engano de que eles são tratados cotidianamente conforme o prosaico exemplo do álcool. Ou seja, de que eles são tratados cotidianamente com a intenção de destilar concentrados.

No cenário da bebeida houve uma multiplicação da eficácia tóxica com consideráveis consequencias sociais. A vitória da cocaína sobre as folhas de coca também é um produto do século XIX. Cada vez mais as drogas concentradas, pelas quais se erige um modelo de comportamento, a exemplo da epidemia de destilado se trransforma naquilo que denominamos vício. “entrega-se, aconteça seja lá o que for, a uma fixação emocional que se expressa na forma de um comportamento estereotipado de grande intensidade pulsional.

O tipo de concentração feitichista, que é praticada nas drogas concentradas, também pode ser transferido para o consumo de amendoins, hobgies, qualquer outro meio de obter prazer ou quaisquer outras formas de comportamento. E isso tem tudo a ver com a lógica de desenvolvimento do vício, quando seu padrão básico varia de múltiplas formas e se torna irreconhecível. O vício de comer cada vez mais, o vício de emagrecer, o vício de trabalhar, de fazer sexo, de amar, são, há tempos objetos de pesquisas científicas correntes.

Mas continuará infrutífero o esforço de discernir quais fenômenos podem ser classificados como vícios e quais não podem, enquanto eles não forem compreendidos como sintomas de diluição de seu padrao basico, enquanto não se estiver atento ao processo historico de diluição que se livra do nitido e evidente comportamento de vicio, assim como de tudo que se encontro “parado” e que é pulverizado no moinho da condition moderne.

O que é o vício? Talvez uma teoria do fetichismo possa responder essa questão, pois ela coloca o sintoma de abstinencia e a formaçao substitutiva no contexto ao qual eles pertencem: o teológico. Surpreendentemente, foi um revolucionario russo quem esboçou esse contexto em alguns traços e que, num pequeno escrito dedicado meramente a uma tática política, acidentalmente forneceu a triade que compõe a fórmula do fetichismo moderno: aguardente- igreja- cinema. O autor se chama Trótski. Todos os três distraem, divertem e entretêm. A esse respeito, cada um deles pode colocar-se no lugar do outro, assim como a santíssima trindade. “A necessidade de o ser humano ter contato com o teatral, ou seja, para ver e ouvir algo que o conduza para o incomum, para o deslumbrante, para fora da monotonia da vida, é enorme, insaciável e se faz presente desde a infancia até a velhice. Sair dos trilhos da mesmice opaca, uma vez que rompem a limitação, a algema, o cárcere da experiencia cotidiana."

O destilado acaba com a tradicional cultura do beber. Enquanto a cerveja e o vinho eram consumidos em tragos e o processo de embriaguez era mais gradativo, o copo de bebida destilada é rapidamente virado e o frenesi é, por assim dizer, uma consequencia imediata. O destilado representa um processo de aceleração do frenesi que se vincula internamente a outros processos de aceleração da modernidade. A maximização do efeito, a aceleração e a redução do preço fazem do destilado um filho genuíno da Revolução Industrial. O destilado é, na esfera do beber, aquilo que a cadeira de tear mecânica é para a tecelagem.

domingo, dezembro 05, 2010

Cartas a um Jovem Terapeuta

O psicoterapeuta não deve esperar a gratidão de seus pacientes. Nada de presentes no Natal, na Páscoa ou nas outras festas. Nas curas que proporciona, o psicoterapeuta é, por assim dizer, ele mesmo o remédio. E, nos melhores dos casos, quando tudo dá certo, ele acaba exatamente como um remédio que a gente usou e que fez seu efeito: uma caixinha aberta, com as poucas pílulas que sobraram, no fundo do armário do banheiro. A caixinha é guardada durante um tempo, porque nunca se sabe; um dia a gente a encontra, não se lembra mais qual era seu uso, constata que, de qualquer forma, o remédio está vencido e joga fora. E é bom que seja assim.

De fato, se a psicoterapia faz seu efeito, o paciente pára de idealizar o terapeuta.

Estes são os traços de caráter que eu procuraria em quem quisesse se tornar psicoterapeuta. Não sei decidira ordem, mas todos estes eu gostaria de encontrar:

1) Um gosto pronunciado pela palavra e um carinho espontâneo pelas pessoas, por diferentes que sejam de você.
2) Uma extrema curiosidade pela variedade da experiência humana com o mínimo possível de preconceito.
3) Este ponto é controvertido: além de uma grande e indulgente curiosidade pela variedade da experiência humana, eu gostaria que o futuro terapeuta já tivesse, nessa variedade, uma certa quilometragem rodada.
4) O quarto e último traço que gostaria de encontrar no futuro psicoterapeuta é uma boa dose de sofrimento psíquico. Desaconselho a profissão a quem está “muito bem, obrigado”.

Resumindo, meu jovem amigo que pensa em ser terapeuta, se você sofre, se seus desejos são um pouco (ou mesmo muito) estranhos, se (graças à sua estranheza) você contempla com carinho e sem julgar (ou quase) a variedade das condutas humanas, se gosta da palavra e se não é animado pelo projeto de se tornar um notável de sua comunidade, amado e respeitado pela vida afora, então, bem-vindo ao clube: talvez a psicoterapia seja uma profissão para você.

Por que diabo me aventurarei a explorar os porões de minha cabeça, lugares malcheirosos e arriscados, se eu não for empurrado pela vontade de resolver um conflito, acalmar um sintoma e conseguir viver melhor?

Um psicoterapeuta (e ainda mais um psicanalista) que define uma conduta como “desvio” não fala em nome da psicoterapia e ainda menos em nome da psicanálise. Ele fala quer seja em nome de seu anseio de normalidade social, quer seja em nome de seu esforço para reprimir nele mesmo o desejo que parece condenar.
Segundo, e mais geral, quem estigmatiza categorias universais, como “os homossexuais”, “os sadomasoquistas”, “os exibicionistas” etc., é um atacadista, enquanto a psicanálise trabalha no varejo: a fantasia e o desejo só encontram seu sentido nas vidas singulares.

A psicanálise (e a mesma coisa vale para qualquer psicoterapia) não tem, nem quer ter, uma noção preestabelecida de normalidade. Ou melhor, nosso ideal de normalidade é o estado em que um sujeito se permite realizar suas potencialidades, ou seja, o estado em que nada impede que alguém viva plenamente o que lhe é possível nos limites impostos por sua história e sua constituição.
Se a normalidade for definida assim, ela pode perfeitamente ser o alvo de nossas curas. Quanto à idéia de que curar seria levar de volta um sujeito ao estado anterior à doença, é óbvio que uma psicoterapia não funciona nunca como a extirpação cirúrgica de um cisto ou como a exterminação de uma bactéria, atos que devolveriam o corpo a seu estado anterior. Uma psicoterapia é uma experiência que transforma; pode-se sair dela sem o sofrimento do qual a gente se queixava inicialmente, mas ao custo de uma mudança. Na saída, não somos os mesmos sem dor; somos outros, diferentes.

Você não deve se vestir, conter seus gestos, modular sua aparência ou inibir sua vida pública de forma a compor a vinheta de uma normalidade desejável. Deveria, ao contrário, comportar-se pública e privadamente como seu desejo manda. Você me pergunta por quê? Aqui vai. Concordei com você: em alguma medida, inevitavelmente, o paciente se identifica com o terapeuta.


Espera-se que o terapeuta ou analista empurre o paciente na direção de seu desejo. Aliás, é por isso que uma terapia leva tempo, porque, antes de empurrar, é preciso que esse desejo consiga se manifestar um pouco.

Na época, eu ainda me preocupava em defender a aura de misténo atrás da qual os terapeutas gostam de se esconder, sob pretexto de que o paciente precisa idealizar seu terapeuta. Portanto, fiquei perplexo e calado, com aquela cara de “Hâ!” que os analistas usam para fazer pensar que, primeiro, eles já estariam vendo a razão verdadeira da pergunta que está sendo feita e que, segundo, essa razão (desconhecida por quem pergunta) é infinitamente mais interessante do que a resposta que eles deveriam dar.

Afinal, se um terapeuta não enxergasse (mais) a intensidade e a originalidade do drama e da tragédia por trás da eventual banalidade de cada vida que lhe é contada, ele estaria precisando de reciclagem urgente.

A transferência permite ao paciente viver ou reviver, na relação com o terapeuta, a gama de afetos e paixões que são ou foram também dominantes em sua vida; essa nova vivência, aliás, é a ocasião de modificar os rumos e o desfecho dos padrões afetivos que, geralmente, assolam uma vida, repetindo-se até o enjôo.

O terapeuta não é quem a paciente imagina. A situação leva a paciente a supor que seu terapeuta detenha o segredo ou algum segredo de sua vida e que, graças a esse saber, ele poderá entendê-la, transformá-la e fazê-la feliz. Ou seja, a paciente idealiza o terapeuta, e quem idealiza acaba se apaixonando. Conclusão: o apaixonamento da paciente é um equívoco.

Os amores da vida são fundados num qüiproquó tanto quanto os amores terapêuticos. Quando nos apaixonamos por alguém, a coisa funciona assim: nós lhe atribuímos qualidades, dons e aptidões que ele ou ela, eventualmente, não têm; em suma, idealizamos nosso objeto de amor. E não é por generosidade; é porque queremos e esperamos ser amados por alguém cujo amor por nós valeria como lisonja. Ou seja, idealizamos nosso objeto de amor para verificar que somos amáveis aos olhos de nossos próprios ideais.

O sofrimento psíquico é como a massinha de modelar de nossa infância; você não a quer num determinado quartinho da casa de boneca, empurra com força, consegue deslocá-la, mas ela não sumiu, apenas se insinuou pelas frestas e reaparece no quarto ao lado.

No fim dos anos 60 nasceu o movimento antipsiquiátrico. Era o projeto de esvaziar os asilos, onde apodreciam legiões de pacientes de quem se esperava apenas que se tornassem crônicos e permanecessem presos para não atrapalhar a vida dos outros. Era também a idéia de que os “loucos”, uma vez liberados, poderiam se tornar uma força revolucionária que transformaria a vida de todos. Melhor, ao se tornarem revolucionários, eles de uma certa forma estariam curados: o engajamento político seria sua terapia final.
A palavra “adaptação” voava no ar como o último xingamento. Curar significava permitir que um paciente estivesse melhor, portanto que ele perdesse seu potencial de revolta, ficasse mais resignado e complacente com a realidade política e social do momento. Quem curava traía a causa do proletariado e da revolução. Quem curava levava seu paciente a esquecer-se de que ninguém deve salvar-se sozinho.

Algo daquela época permaneceu, no mínimo, até os anos 90. O quê? A idéia de que a pretensão de curar-se, de ser um pouco mais “feliz”, seria só uma idiotice vendida pela propaganda de iogurte, carros e cartão de crédito, um sonho de consumo feito para nos distrair do que importa. Nisso, a rebeldia nascida nos anos 60 reata com a tradição romântica do século XIX, glorificando a inquietude, a angústia e mesmo o sofrimento psíquico como provas de vitalidade subjetiva.
Nota à margem. É um estranho paradoxo: é bem possível que o sonho de felicidade seja a cenoura atrás da qual nossa cultura individualista e liberal força todos a correr, mas é certo também que o sonho só é uma cenoura eficaz à condição que seja entretida uma insatisfação permanente com nosso destino. Ou seja, é preciso não ser feliz para correr atrás da felicidade e de seus substitutos. O culto da inquietude inconformada e angustiada é tão essencial ao funcionamento de uma sociedade liberal quanto o sonho de felicidade. Mas, enfim, esses eram (e ainda são) os tempos.

Os textos psicanalíticos obscuros são geralmente concebidos para produzir e alimentar amores de transferência. Funciona assim: se você não entende bulhufas, é que meu texto diz coisas que você não quer saber; deve tratar de coisas que têm tudo a ver com você. Portanto, quanto menos você entende, tanto mais você pode e deve me idealizar e me amar como detentor de uma verdade sua que você desconhece e que eu conheço.

Só uma consolação: sempre chega um dia em que o truque pára de funcionar e parece evidente que, quando você não entende, é porque o autor não tem grande coisa para dizer ou, mesmo que tenha algo para dizer, prefere preservar sua aura de mistério a transmitir o que sabe. Em ambos os casos, provavelmente não vale a pena se esforçar.

Desde aquela época, há meios psicanalíticos em que a palavra “paciente” é malvista. Paciente é o chato que se queixa e quer ser curado, enquanto quem faz análise é “analisando” ou “analisante”, não paciente, pois ele deve esperar análise e não cura. Você deve ter notado que penso diferente. A psicanálise me interessa por sua capacidade de transformar as vidas e atenuar a dor. Se tenho uma reserva diante da palavra “paciente”, é porque espero que todos sejamos impacientes com o sofrimento desnecessário que, eventualmente, estraga nossos dias.

Aconteceu assim. Lacan se perguntava o que seria o fim de uma análise, ou seja, como definir uma análise propriamente terminada. Sua resposta foi a seguinte: o fim de uma análise (diferentemente de uma interrupção) não é o esgotamento dos assuntos, o sumiço dos sintomas, o fim das queixas ou coisa que o valha. O fim de uma análise propriamente dito seria uma experiência radical produzida pelo próprio processo analítico. Pouco importa aqui examinar como Lacan entendia essa experiência e o processo que a ela levaria. Mas, descrita em termos psicológicos e muito simples (que ele teria detestado), seria a experiência de que não somos grande coisa e, em particular, não somos a única coisa que falta para que o mundo seja perfeito e para que a nossa mãe seja feliz. Isso parece (e é) uma coisa fácil de saber e mesmo de admitir, mas uma experiência efetiva dessa superfluidade de nossa existência é uma outra história. Nesse momento final, o sujeito vivenciaria, logicamente, uma espécie de desamparo depressivo, mas também uma extrema liberação. Por que liberação? Pois é, o que mais nos faz sofrer talvez seja justamente a relevância excessiva que atribuímos à nossa presença no mundo, pois essa relevância é a pedra de fundação de todas nossas obstinadas repetições, é graças a ela que insistimos em ser sempre “iguais a nós mesmos” (sendo que, no caso, essa expressão não tem um sentido positivo). Há boas razões para se pensar que, uma vez essa experiência feita, a gente possa passar a viajar pela vida carregando malas um pouco mais leves. Ou seja, seríamos capazes de largar os sintomas que nos devastam e que, obviamente, adoramos a tal ponto que não conseguimos desistir deles. Em suma; essa experiência conclusiva teria um valor terapêutico.

Quanto menor nossa intervenção na escolha e na organização do que falamos, tanto mais essa lógica interna poderá nos levar a dizer coisas inesperadas por nós mesmos, a descobrir algo que estava em nossos pensamentos sem que soubéssemos. Alguns analistas e terapeutas enunciam essa regra no começo de cada cura e a repetem regularmente, para que o paciente não se perca, por exemplo, em meandros de explicações e elaborações preparadas de antemão.
Outros analistas e terapeutas notam (com razão) que a dita lógica se impõe de qualquer forma na fala de nós todos, mesmo quando fazemos o possível para controlar nossas palavras. Aliás, geralmente, é logo quando tentamos policiar cuidadosamente nosso discurso que podemos cometer um lapso revelador.
Além disso, a experiência mostra o seguinte: quase sempre, mesmo o paciente mais prevenido, que anotou seus tópicos por medo de perder seu tempo ou de não ter nada para dizer, acaba sendo levado, no decorrer da sessão, a falar de coisas que ele não previu.
Um detalhe: se um paciente chegar de papel na mão, decidido a ler o que preparou, e se isso deixar você incomodado, você poderá pedir para ele guardar o papel e falar “espontaneamente”, pois certamente ele deve se lembrar dos temas que previu tratar.
Agora, lembre-se do seguinte: de qualquer forma, as palavras sempre levarão seu paciente por terras imprevistas.
Mas cuide disto: enunciar a regra deve servir para autorizar o paciente a falar, não para obrigá-lo a falar do que você quer ouvir. É possível se esconder de si mesmo por trás de racionalizações e assuntos preparados. Mas é possível também se esconder por trás de associações quase poéticas, que pulam de palavra em palavra.

Como cada relação é um encaixe em que convivem, mais ou menos harmoniosa mente as neuroses de todos os interessados, é claro que mexer num dos elos significa atrapalhar a vida de todos.

Na verdade, não faço uma grande diferença entre acontecimentos da infância e acontecimentos da vida adulta (também não sei muito bem quando começa a vida adulta). Explico melhor: não estou nada certo de que os acontecimentos da infância sejam de uma natureza diferente do que nos acontece hoje. Tampouco sei se é verdade que, pela receptividade de nossos primeiros anos, eles nos marcam com um ferro mais quente, que deixaria vestígios para a vida inteira.
Mas uma coisa sei: qualquer evento nos marca e nos transforma só na repetição ou, melhor dito, num segundo momento, em que ele é evocado, retomado, revivido. O caráter traumático de um acontecimento não depende de alguma qualidade específica da experiência vivida, mas é um efeito de como, mais tarde, essa experiência pode ou não integrar uma história que faça sentido para o sujeito.
Os fatos de nossas vidas agem em nós pela história em que se integram ou, melhor, pela história em que conseguimos ou não integrá-los. Não que a vida seja um continuum. Ao contrário, não é; reconstituir (melhor dito, inventar) um sentido que ligue o presente ao passado é uma obra incessante, que nos oferece um conforto necessário, nos dá a sensação de que atos e fatos se inserem numa história, num conjunto, que somos nós. Aliás, reinterpretar o passado, descobrir (ou inventar) novos sentidos para o que aconteceu é quase sempre uma maneira de mudar nosso presente. Pois, no fim dessa empreitada, sendo o resultado de uma narração diferente, somos mesmo diferentes.
Qualquer cura tem duas faces: uma, digamos assim, demolidora, que desfaz as certezas cristalizadas da história que nos acua em sintomas que, à vista de nosso passado, parecem inelutáveis, e outra, construtiva, que nos permite reinventar ou modificar um pouco a história da qual seríamos o fruto.
Talvez tenha conseguido explicar um pouco por que a infância se torna importante no nosso trabalho. Não é porque os eventos da infância seriam mais marcantes do que os de hoje, mas porque os eventos de hoje tomam relevância e sentido a partir dos de nosso passado e, portanto, de nossa infância.

Parece que saímos de uma cultura em que o passado nos impedia de inventar o presente para entrar numa cultura em que o futuro nos impede de saborear o que estamos vivendo. É freqüente, por exemplo, que alguém recuse um namoro porque “não sei no que vai dar”. O prazer que uma relação proporciona é preterido porque duvidamos de seu futuro. Mais um exemplo, que conheço bem, por tê-lo encontrado em muitos pacientes e por ter passado perto de vivê-lo. Durante quase dez anos, vivi entre Nova York e São Paulo. O grande prazer de viver em duas metrópoles entre as mais interessantes do mundo podia ser facilmente estragado pela incumbência da escolha futura do lugar onde fincaria pé na hora em que parasse de viajar.
Enfim, para entender como e quanto o futuro pode parasitar o presente, pergunte aos adolescentes. Em geral, eles não agüentam mais ser considerados sempre como promessas de um futuro e vivem na impressão de que os adultos que mais os amam desconsideram o presente de suas vidas.

Enfim, você me pergunta qual seria minha última recomendação. Aqui vai: seja humilde. Não quanto aos efeitos e resultados que você espera de seu trabalho. Mas seja humilde na aceitação das condições impostas por seus pacientes.
Haverá os que não conseguem nem sentar nem deitar, mas só podem falar caminhando. Haverá os que devem ficar silenciosos durante semanas para se convencerem de que não é proibido calar-se. Haverá os que só querem vir de vez em quando porque não toleram uma obrigação em suas vidas. Haverá os que somem durante semanas a cada vez que você viaja, porque não podem se impedir de punir quem os abandonou. Haverá os que querem vir cada dia só para sentir o cheiro de uma presença amiga. Haverá os que não falam, mas perguntam o que você acha, porque precisam ouvir sua voz, e pouco importa o que você dirá. Haverá os que se irritam porque você não os abraça e os que não agüentam ser tocados.

Seu primeiro compromisso não é com “a psicanálise” ou “a psicoterapia”, nem com Freud, Melanie Klein, Lacan ou qualquer outro chefe de escola, nem com a instituição na qual você se formou. Seu primeiro compromisso é com as pessoas que confiam em você e trazem para seu consultório uma queixa que pede para ser escutada e, por que não, resolvida. Ou, mais geralmente, seu primeiro compromisso é com a comunidade na qual você presta serviços. E o compromisso é de prestar o melhor serviço possível.

Contardo Calligaris- Cartas a um jovem terapeuta.

Narcisismo

Basear a identidade no narcisismo significa dizer que o sujeito é o ponto de partida e chegada do cuidado de si. A noção de narcisismo é entendida como uma vertente do individualismo contemporâneo particularmente insensível a compromissos com ideais de conduta coletivamente orientados. (Este uso da palavra não coincide com o que é feito na literatura técnica psicanalítica. Nascisismo, em psicanálise é a condição mental indispensável à aquisição do sentimento e da consciência da “identidade” subjetiva. Neste sentido, nada tem a ver com “egoísmo” nem com distúrbio “psicopatológico”, em certas leituras normativas do desenvolvimento psíquico.)
Família, pátria, Deus, sociedade, futuras gerações só interessam ao narcisista como instrumentos de auto-realização, em geral entendida como sucesso econômico, prestígio social ou bem-estar físico emocional. O hedonismo, por sua vez, é um efeito desta dinâmica identitária. O narcisista cuida apenas de si, porque aprendeu a acreditar que a felicidade é sinônima de satisfação sensorial. Assim, o sujeito da moral hodierna teria se tornado indiferente a compromissos com os outros- faceta narcisista- e a projetos pessoais duradouros- faceta hedonista.
Esta leitura é plausível e corresponde, em certa medida, ao que podemos observar. Mas simplifica questões tortuosas. Em primeiro lugar, podemos perguntar se, de fato, abdicamos a todos os valores tradicionais; em segundo lugar, se não abdicamos a eles, como tais valores foram reconfigurados ao estado atual da cultura?
Enunciada de outra maneira, a pergunta é a seguinte: se não delegamos mais à religião, ao trabalho, à política ou à família o papel de dar sentido à vida, o que funciona com valor transcendente aos meros propósitos de auto-realização?
Minha hipótese é a de que essas instâncias não perderam toda a força normativa que tinham. Simplesmente, foram “privatizadas”.

O lugar do universal, do incontestável, passou a ser ocupado pelo mito cientificista. Entre os fabricantes de opinião, em especial a mídia, o mito científico encampou o direito intelectual de falar do lugar da Verdade, provocando uma reviravolta no terreno dos valores.
Agora, o bom ou o Bem são definidos pela distância ou proximidade da “qualidade de vida”. A renaturalização das condutas humanas, todavia, não tenta descartar os antigos valores, e sim retraduzi-los no triunfalismo cientificista. O cuidado de si, antes voltado para o desenvolvimento da alma, dos sentimentos ou das qualidades morais, dirige-se agora para a longevidade, a saúde, a beleza e a boa forma. Inventou-se um novo modelo de identidade, a bioidentidade, e uma nova forma de preocupação consigo, a bioascese, nos quais a fitness é a suprema virtude. Ser jovem, saudável, longevo e atento à forma física tornou-se a regra científica que aprova ou condena outras aspirações à felicidade.
O sentido da existência, a origem das obrigações éticas, as escolhas dos estilos de viver, todos estes items implicados na busca da felicidade foram agregados ao rol de perguntas que a ciência, cedo ou tarde, vai responder.
Tornamo-nos, dessa forma, politeístas tolerantes, sexualmente liberados e coplacentes co as pequenas transgressões morais, desde que nada disso desequilibre as taxas de colesterol.
Para muitos indivíduos, desejável é o que pode ser sensorialmente experimentado como agradável, prazeroso ou extático; indesejável é o que pede tempo para se realizar ou que, ao se realizar, não excita ou traz o gozo sensorial esperado. O Outro atrai não por ser uma “chance para a ação” mas por ser uma “promessa de sensação”.
Hoje, a figura do desvio é a estultícia. Criamos um código axiológico no qual os “normais” são os que dão mostras da vontade forte. No pólo oposto, estão os fracos, os piores, os estultos. Estultícia é a inépcia, a incompetência para exercer a vontade no domínio do corpo e da mente, segundo os preceitos da qualidade de vida. Os estultos são, então, tipificados segundo o grau ou a natureza do desvio em: a) dependentes ou adictos, isto é, os que não controlam a necessidade de drogas lícitas e ilícitas; de sexo; de amor; de consumo; de exercício físico; de jogos de azar; de jogos eletrônicos ou da internet etc. b) desregulados, isto é, os que não podem moderar o ritmo ou a intensidade das carências físicas (bulímicos, anoréxicos) ou mentais (portadores de síndrome do pânico, fobias sociais); c)inibidos, isto é, os que se intimidam com o mundo e não expandem a força de vontade, como os dístimicos, os apáticos, os não assertivos, os “não assumidos”; d) estressados, isto é, os que não sabem priorizar os investimentos afetivos e desperdiçam energia, tornando-se perdulários da vontade: e) deformados, isto é, os que ficam para trás na maratona da fitness: obsesos, manchados de pele, sedentários, envelhecidos precocemente; tabagistas; não siliconados; não lipoaspirados etc.
A teia cultural que anima a contradição se baseia no jogo da tutela e da culpabilização. O indivíduo deve creditar o sucesso de seus esforços à sua vontade. Mas, em caso de fracasso, deve se sentir fisicamente doente, e, por isso mesmo, não contstar o valor e o sentido dos ideais corporais dominantes. O anseio por independência, ao falhar, deve ser visto como uma anomalia biológica e não como denúncia da estreiteza da norma social em face da diversidade expressiva da vida humana. O sujeito vê-se, simultaneamente, como onipotente- ao acreditar que pode criar o eu moral e psicológico a partir da pura experiência sensual do corpo- e como impotente- ao ser forçado a crer que o sentido do sofrimento humano está inscrito nos genes ou nos circutos neuro-hormonais.
A segunda contradição tem a ver com a relação com o outro. Em muitos casos, o cuidado de si, centrado na forma corpórea e no gozo das sensações vem desgastando a importância emocional do outro humano. Todavia, continuamos a precisar do reconhecimento do outro para estarmos seguro do valor de nossos ideais de eu Chegamos, então, a um beco sem saída: menosprezamos o outro próximo, em seu papel de avalista do que somos, e idealizamos o outro anônimo, cuja preocupação emocional conosco é igual a zero. Aqueles que, de fato, têm responsabilidade para conosco não conseguem se sobrepor aos modelos impessoais das celebridades ou das figuras de outdoors veiculados pela publicidade. O corpo da publicidade, entretanto, não se dirige diretamente a nenhum de nós ou considera as peculiaridades de nossas histórias de vida, ao provocar o nosso desejo de imitá-lo.
Tudo que resta é correr atrás, sempre em atraso e de forma angustiante, do corpo da moda. Até, é claro, chegar a velhice e semos convencidos a assumir uma outra bioidentidade, a da terceira idade, última tentariva bioascética de permanecer jovem, vital, por dentro da moda.
A terceira contradição concerne à relação da felicidade com o prazer. Quanto mais falamos em minimizar o sofrimento e otimizar o prazer, mais nos privamos de prazer e mais nos atormentamos com os sofrimentos que não podemos evitar. Tornamo-nos seres espartanos, anedônicos e cronicamente ansiosos diante da perspectiva de dores e frustrações. A cada episódio de sofrimento, reagimos como se algo extraordinário nos tivesse atingido e como se, de alguma maneira, o que padecemos tivesse sido causado por falhas no cumprimento de nossos deveres bioascéticos.
A cultura narcísica, da exibição publicitária, ao explorar o hábito das confissões públicas de segredos sexuais e emocionais, com vistas à venda de bens e serviços. A cultura somática finalizou o assédio ao fazer do corpo espelho da alma. O corpo se tornou a virtine compulsória de nossos vícios e virtudes, permanentemente devassada pelo olhar do outro anônimo.
Disso resultam algumas das caracterísitcas marcantes do indivíduo atual. A primeira é a desconfiança persecutória. Dado que a identidade é exposta, de pronto, na superífice corporal, o outro se tornou um observador incômodo e invasivo de nossos possíveis desvios bioidentitários e não um parceiro de ideais comuns. Se nos sentimentos bem com a nossa forma física, tememos que o outro nos inveje por não ter alcançado o que alcançamos; se nos sentimos mal, ele é um suposto acusador, que nos humilha pelo simples fato de encarnar a norma somática que lutamos, enarniçadamente, para corporificar.
Qualquer comentário sobre hábitos alimentares, por exemplo, desencadeia, em geral, uma tagarela, bizarra e infantilizada competição sobre quem faz mais exercícios; quem come menos gordura; quem é capaz de perder mais quilos em menos tempo; quem parou de fumar há mais tempo; quem ingere mais vegetais, alimentos e fármacos naturais etc.
Há um sentimento persecutório da vulnerabilidade ao olhar do outro.
O indivíduo jamais consegue estar tranqüilo consigo, isto é, livre da invasão persecutória do ideal da fitness.

Jurandir Freire Costa- O Vestígio e a Aura


Da cultura da vergonha para a cultura da culpa, houve a atrofia da esfera pública.
Reduzidos ao estado de massa consumidora de bens e serviços, como no capitalismo avançado, ou ao estado de massa privada de qualquer consumo, como nos países pobres, grande parte dos indivíduos das sociedades ocidentais vêem seus direitos de cidadania cada vez mais circunscritos à retórica vazia das elites que controlam o poder. Emergem as ideologias das liberdades individuais, simulacro das liberdades públicas reais.
Ao cidadão supérfluo e politicamente descomprometido oferece-se o consolo da militância em favor dos exaustivos e monopolizantes exercícios de intimidade. Esta cultura do desengajamento, Christopher Lasch chamou de ‘cultura narcísica’ e mais recentemente Peter Sloterdijk descreveu como reinado da razão ‘cínica’. A cultura do narcisismo é aquela em que o conjunto de itens materiais e simbólicos maximizam real ou imaginariamente a condição de desproteção e superfluidade dos indivíduos, forçando o Ego a ativar, de modo extremo, os mecanismos de autopreservação da identidade própria. Ou, dito de outro modo, é a cultura onde o recrudescimento da angústia diante da experiência crescente de impotência e desamparo é levada a um tal ponto que torna conflitante e muitas vezes inviável a prática da solidariedade social. A cultura do cinismo, por seu turno, é a variante da cultura narcísica, que enfatiza os processos de justificação do status quo por parte daqueles que, cientes dos instrumentos de acaliação crítica, usam estes instrumentos com o objetivo de reforçar a prática social dominante.
É necessário analisar qual o sentido do desenfreado culto ao corpo e ao sexo, que contagiou as classes médias e urbanas brasileiras.
O indivíduo de classe média viu-se constrangido a legitimar a ordem social, demitindo-se da participação política e aderindo à ficção de que a essência de sua humanidade e liberdade encontrava-se no corpo saudável e no sexo liberado. Para isso, montou-se uma parafernália técnco-teórica destinada a acolher, orientar, corrigir e avalizar a justeza de pedidos ansiosos de sujeitos em busca de sexos livres de conflitos e corpos isentos de mortalidade.
Gerou-se o mito da eterna juventude e do gozo infinito, que ainda hoje alimenta o comércio do bem-estar pré-fabricado.
Injunções deste gênero precipitam os sujeitos num permanente estado de culpa/e ou de dívida para com uma imagem do corpo e do sexo fabricada pelo mass-media e permentada na cultura do apolitismo e da exaltação da vida privada. Não há meios de realizar a norma psicossomática da cultura narcísica. Nunsa se é suficientemente saudável ou livre sexualmente, frente às exigências da indústria de felicidade individual.
E isto pelo simples fato de que a cadência técnico-industrial da produção de desejos, ou, mais precisamente, de miragens de gozo, é impossível de ser seguida por qualquer consumidor em particular.
O automatismo de preservação narcísica, descrito pela psicanálise, é habitualmente responsável pela homeostase da imagem egóica, tem de ser controlado pelas instâncias ideais, sob pena de impor-se à revelia de qualquer respeito pela estabilidade das normas e leis institucionais ou culturais.
Depende do narcisismo, desta ilusão estruturante, responsável pela experiência de ipseidade e continuidade, a vivência da nossa experiência de identidade. Ele não é uma formação imaginária descartável; é a pré-condição de nossa adaptação pragmática ao mundo.
O produto da cultura narcísica não é o sujeito repleto e saciado física e sexualmente; é o sujeito aflito, ressentido e culpado, às voltas com um perene sentimento de injúria narcísica, e perpetuamente à cata de técnicas e artifícios que venham remediar o mal-estar em viver.
Banido há muito tempo da cidade política, o cidadão viu-se, agora, despido do direito à justiça.
Os indivíduos acreditam-se realmente ameaçados em suas sobrevidas, sem poder contar com nenhuma outra proteção além da própria astúcia, força ou esperteza, neste limiar, pouco importa o outro ou o amanhã, importa sobreviver hoje.

Jurandir Freire Costa- Psicanálise e Moral.