sábado, maio 30, 2009

Imperturbáveis

A cura da raiva está em sair para uma longa caminhada; detê-la no início, antes que ela alimente mais raiva;
relaxar a musculatura; inspirar e expirar fundo,
ver tv, ir ao cinema, ler; anotar os pensamentos hostis tão logo surjam-
fazer tudo para “esfriá-la”.
A vacina contra a preocupação está em desviar a atenção; não ruminar; deter a “espiral de ansiedade” enquanto é tempo (...).
Para afastar a tristeza é melhor distrair-se: sair para comer ora, ir a um jogo, ir ao cinema, fazer trabalhos filantrópicos com populações carentes ou então ver TV, jogar vídeo-game, ler, fazer um quebra-cabeça, ir dormir; fantasiar a respeito da viagem dos sonhos, fazer aeróbica, criar “pequenos triunfos” (como cumprir uma tarefa doméstica ou um dever há muito adiados), vestir-se bem, maquiar-se.
Pesquisas feitas por psicólogos da Universidade do Texas mostraram que, diante de uma lista de “opções para afastar a mente de uma coisa triste, como o enterro de um amigo”, as pessoas tendem a escolher atividades melancólicas;
mas, reza o programa, nada de tristeza...

Miremo-nos no exemplo das pessoas “imperturbáveis” que, quando submetidas a realidades angustiantes, tendem a acionar mecanismos que as “higienizam”.
Os motivos últimos que justificam o controle dos impulsos são a preservação de relacionamentos valiosos,
a valorização crescente da inteligência emocional no mercado de trabalho
e os danos causados à saúde física pelas “amigdalites corticais”.
Em outras palavras, ele é vacina contra três tipos de males:
as “fendas conjugais”, que ocorreriam quando um dos parceiros padece de deficiência emocional;
a superada administração autoritária, uma vez que no campo da administração de empresas descobriu-se que a harmonia grupal e a administração cordial aumentam a produtividade;
os distúrbios psicossomáticos, fontes de prejuízos de hospitais e seguros de saúde pela desatenção às necessidades emocionais.

Ao contrário do que pode parecer, não se trata do elogio da emoção, mas do elogio da razão como instrumento de adaptação das pessoas aos ditames sociais: o que se quer é eliminar emoções disruptivas,
intento formulado por meio de expressões de aparência inócua como: “levar inteligência à emoção”,
“levar cognição para o campo do sentimento”,
“evitar o sentimento que esmaga toda a racionalidade”,
neutralizar o “poder que a emoção tem de aniquilar a razão”.
Dominar as emoções seria meio para não fazer “escolhas errôneas sobre quem devo desposar e que emprego arranjar”,
já que ter sucesso na vida é conseguir um casamento duradouro e um bom emprego.

As referências a instâncias econômicas, sociais e políticas primam pela abrstração: as pressões econômicas e sociais não passam de “preço que a modernidade cobra às crianças”, situação contra a qual nada se pode fazer exceto suprir, com programas educacionais de correção ou prevenção, as lacunas psicológicas que ela amplia.

Fala-se em desenvolver um “núcleo de maleabilidade” que garanta a sobrevivência em situações adversas, como são as da vida na pobreza.
Este verdadeiro “jogo de cintura” que se quer dos pobres vem formulado nos seguintes tempos: “ as chamadas população de risco poderiam obter ganhos, do ponto de vista clínico, se soubessem lidar com os custos emocionais dessas tensões”.

Levada às últimas conseqüências, a palavra de ordem “smile”, um dos lemas mais caros à cultura dominante norte-americana,
orienta propostas de produção de otimistas costumazes, verdadeiros bobos alegres que se mostram felizes diante de cenas de macacos tomando banho e de idiotices do mesmo tamanho.
Alguns estudos chegam a pregar a “dissociação positiva”, aptidão dos “imperturbáveis”, pessoas dotadas de “luz positiva”, que “experimentam realidades angustiantes mantendo o bom-humor”, estratégia de auto-regulação emocional festejadas pelos fabricantes de programas de educação emocional.
Ou seja, contra uma visão realista e apreensiva do mundo, a alegria sem freio; contra o luto e sua elaboração; a negação maníaca. Substituir o inconformismo por um obstinado e alucinado “jogo do contente”.

Ser racional é não pensar ou, na melhor das hipóteses, é pensar as emoções como manifestações neurofisiológicas para melhor dominá-las,
é nomeá-las e pareá-las com desenhos esquemáticos de fisionomias que supostamente as representam,
é fazer auto-crítica a procura de enganos de percepção e de avaliação dos problemas que preocupam ou enraivecem.
A recomendação mais freqüente no livro é o recurso à diversão ou à distração, palavras que denotam “desatenção”, “inadvertência”, “irreflexão”.
“Divertir” é desviar, fazer esquecer, fazer mudar de fim, de objeto, ir no sentido oposto;
“Distrair” significa tornar desatento, não reparar, manter alheio; em seu sentido original, é romper, dividir, cativar, engolir de um trago.

A ciência e os cientistas não escapam dessa ditadura: capturados eles também pela aparência como ideologia onipresente que aprisiona o indivíduo numa organização compacta, vinculam-se à sociedade como dado, identificam a ciência com as forças produtivas, tornam-se prisioneiros das idéias que dificultam a compreensão do real, julgam-se esclarecidos sem sê-lo e portam inscientes a debilidade ética que marca as formações sociais capitalistas.

Semiformação é a educação que prepara para a adesão ao que aí está, que converte as pessoas em “obedientes instrumentos da ordem vigente” e que, portanto, contribui para a constituição do sujeito mutilado.
Presa à “ditadura do existente”, ela adere ao que aparece e, por isso mesmo, “obscurece ao mesmo tempo que convence”.

Para educar para a emancipação é preciso romper com a educação “enquanto mera apropriação de instrumental técnico e receituário para a eficiência", diz Maar resumindo Adorno.
Parte integrante da ideologia da educação para a eficiência, um dos mitos mais freqüentes nos sistemas educacionais é a afirmação generalizada de que, numa sociedade competitiva, é preciso preparar crianças e jovens para a competição.

Esta passividade inofensiva constitui ela própria, provavelmente, apenas uma forma da barbárie, na medida em que está pronta para contemplar o horror e se omitir no momento decisivo.

De dentro de uma visão de vida social que proscreveu a dissidência- e que, no máximo, admite a mudança como rearranjo da ordem em vigor, para que ela permaneça como está-
só se pode insistir na colaboração das classes subalternas como projetos aparentemente universais da classe hegemônica e condenar qualquer modalidade de confronto, sempre tido como desordem que é preciso reprimir.
Nos programas educacionais que preparam para o conformismo, ser racional é ser razoável, é compor-se com os ditames sociais, com a definição oficial de cidadão exemplar, é ser otimista, obstinado, resistente à frustração, competitivo, auto-disciplinado, comedido, conformado, tolerante, conciliador, dócil.
Racionalidade obtém-se pela inibição de reações radicais desorganizadoras de consenso.
A “arte de viver em sociedade” inclui obediência, individualismo, competição, astúcia, cálculo, colaboração em nome do lucro, e, no apogeu do altruísmo, filantropia. O que se quer é a empatia a serviço do capital.
A inteligência emocional é instrumento de controle do que seus proponentes denominam “forças destrutivas da natureza humana”, entendendo por isso qualquer forma de contestação de uma organização social assentada na racionalidade produtivista, na qual a submissão, o amor às máquinas, a indiferença diante do sofrimento alheio- a imbecilidade, enfim- são uma espécie de personalidade básica.

Mutações do Cativeiro- Maria Helena Souza Patto.

domingo, maio 10, 2009

Amor de Mentira.

O amor não é expresso, é café-com-leite.
Meio a meio, pouco a meio.
Alguns preferem o leite; outros, o café.
Por isso, combinam os dois.

Ninguém ama por inteiro.
Eu amo e sou amado por fragmentos.
No início da paixão, mostramos a região predileta: os dons e os dotes.
Nossa parte benigna. Fácil decorar e pôr em prática.

Entendo agora: uma verdade que não se cansa é mentira.
Portanto, amo de verdade e amo de mentira, para não deixar nada sem amar.

Não amo por inteiro. Amo por fases. Por dias. Por horas.
Há incomodações, ódios e resmungos nos intervalos.
Nivelar o amor é aniquilá-lo.
É não admitir que a mulher não é o que espero, nem o que ela espera.
E passar a desconfiar que não amo por aquilo que não preciso mesmo amar.

Amar é suportar também não amar quem mais se ama.

Fabricio Carpinejar.