sexta-feira, março 20, 2009

Vésperas...

Começa a haver meia-noite, e a haver sossego,
Por toda a parte das coisas sobrepostas,
Os andares vários da acumulação da vida...

......

Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.

......

Ah, todo eu anseio
Por esse momento sem importância nenhuma
Na minha vida,
Ah, todo eu anseio por esse momento, como por outros análogos —
Aqueles momentos em que não tive importância nenhuma

......

Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar
Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem)
Acendo o cigarro para adiar a viagem,
Para adiar todas as viagens.
Para adiar o universo inteiro.
Volta amanhã, realidade!
Basta por hoje, gentes!

......

Na véspera de não partir nunca
Ao menos não há que arrumar malas
Nem que fazer planos em papel,
Com acompanhamento involuntário de esquecimentos,
Para o partir ainda livre do dia seguinte.
Não há que fazer nada
Na véspera de não partir nunca.
Grande sossego de já não haver sequer de que ter sossego!
Grande tranqüilidade a que nem sabe encolher ombros
Grande alegria de não ter precisão de ser alegre,
Como uma oportunidade virada do avesso.

......

Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
E um domingo às avessas
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.

......

Começo a ler, mas cansa-me o que ainda não li.
Quero pensar, mas dói-me o que irei concluir.
O sonho pesa-me antes de o ter. Sentir
É tudo uma coisa como qualquer coisa que já vi.

......

Perdi os dias que já aproveitara.
Trabalhei para ter só o cansaço
Que é hoje em mim uma espécie de braço
Que ao meu pescoço me sufoca e ampara.

......

Álvaro de Campos.

quarta-feira, março 04, 2009

Deslumbramentos

A vida quotidiana se caracteriza pelo desencanto.
Temos sempre tantas coisas para fazer. Algumas de que gostamos; mas a grande maioria é exigida de nós.
O que nos pedem é sempre prioritário, urgente, merece sempre o primeiro lugar, e se não fazemos logo nos criticam, ficam aborrecidos, castigam-nos.
A ordem das coisas não nos tem como centro.
Ela é o resultado de pressões exercidas sobre nós.
O que verdadeiramente desejamos não realizamos nunca e, a certa altura, acabamos sem saber sequer se gostaríamos de fazê-lo.
Na vida quotidiana nosso desejo chega por forma de fantasia, "que bom seria se..."
Mas acontece sempre alguma coisa que nos impede de exercer nossa vontade.

A vida quotidiana é caracterizada pela obrigação de fazer algo diferente, pelo dever de escolher entre coisas que interessam a outras pessoas, isto é, temos de fazer uma escolha entre um desapontamento maior e um mais suave.
A polaridade da vida cotidiana está entre a tranquilidade e o desassossego;
a do enamoramento, entre o êxtase e o tormento.
Há pessoas que não suportam a tensão do enamoramento, querem logo refreá-la, torná-la quotidiana, doméstica, controlável.
No quotidiano se deseja, pois, o excepcional, no excepcional, o cotidiano.

Na vida quotidiana, as metas que nos propomos, as coisas que procuramos obter, tudo, enfim, leva em conta os meios de que dispomos.
Não nos propomos coisas irrealizáveis.
Mas nossos desejos são limitados.
Mas ninguém se enamora dizendo: "Visto que tenho os meios para fazê-lo se enamorar de mim, decido enamorar-me dele".
Primeiro, se enamora, primeiro deseja o amor do outro e em seguida procura os meios para se fazer amar por ele.

O enamoramento é o abrir-se a uma existência diferente sem qualquer garantia de que esta se realize.
A grandeza do enamoramento é desesperadamente humana, pois oferece momentos de felicidade e eternidade, cria um desejo ardente, mas não pode oferecer certezas.

A cultura quotidiana sempre procura impor suas dicotomias: ou se gosta sempre ou nunca se gosta, ou se está sempre junto ou sempre separado, etc.
Rotulando e interrogando desse modo, ela os força assim a se definirem contraditoriamente de maneira louca.

Ninguém se enamora se está, mesmo parcialmente, satisfeito com o que tem e com o que é.
O enamoramento surge da sobrecarga depressiva, isto é, da impossibilidade de encontrar alguma coisa de valor na vida quotidiana.

Uma experiência típica do enamoramento é a de se poder "saciar" do outro.
Estar enamorado é também resistir ao amor, não querer ceder ao risco existencial de se colocar completamente nas mãos do outro.
Por isso, procuramos a pessoa amada, mas também desejamos evitá-la.
Muitas vezes, nos momentos de felicidade, dizemo-nos: "Já consegui tudo o que poderia obter, agora posso perdê-la e voltar a ser como era antes levando comigo só a sua lembrança. Já tive o que queria. Agora chega."
Obter o máximo possível e depois renunciar: essa é a fantasia da saciedade.
Num certo sentido, só conseguimos nos abandonar completamente porque achamos que é a última vez.
Desse modo, porém, submetemo-nos à prova porque, depois da separação, nos damos conta de que o desejo volta e de que continuamos amando, desejando o outro desesperadamente, e temos a necessidade de uma outra "última vez".

Examinemos agora outro caso, colocando uma pergunta que muitos se fazem.
É verdade que nos enamoramos mais facilmente de quem opõe alguma resistência do que de quem se faz desejar?
É verdade que, se temos que escolher entre duas pessoas, não escolhemos a que nos ama e se enamora de nós, mas antes a que se esquiva?
É uma idéia muito difundida que, em parte, corresponde à verdade, mas realmente muito pouco.
Sua verdade está no seguinte: o enamoramento procura o diferente e o extraordinário.
Uma pessoa que esteja a ponto de se enamorar dificilmente o fará por outra que há muito tempo se mostra enamorada dela e lhe faz a corte;
já a conhece, já estudou essa possibilidade.

Para aqueles a quem queremos bem, o presente não é uma homenagem servil: é o testemunho de uma relação que não se romperá.
Nesse caso, diz-se realmente: "Gosto de você, continuo a gostar de você mesmo que não pareça, mesmo que você não tenha dado sinal de vida como devia. Não me esqueci de você".
Porque, na realidade, esquecemos. Esquecemos durante meses, durante anos.
Esquecemos os pais, o marido ou a mulher, os filhos, sobretudo quem está distante e, por vezes, até quem está perto,
As pessoas de quem gostamos não são, na verdade, o objeto de uma relação contínua.
Nós as encontramos de vez em quando, como acontece com um amigo distante.
Não sentimos continuamente necessidade dessas pessoas, fazemos o que temos de fazer por hábito, por dever, às vezes nos lamentando.

Quem tem mais vínculos, mais obrigações, mais coisas para integrar e para mudar é aquele para qual o enamoramento é mais perturbador.
Mas o outro o ama justamente por essa sua complexidade, que dá grandeza e sentido à sua capacidade de mudar, de proteger uma existência nova, ao seu desejo de poder.

A perda de outra pessoa desvaloriza tudo aquilo que se é, os valores, a imagem, a auto-estima.
Quem está enamorado não se da conta da terrível ofensa que faz àquele que abandona e que este não pode perdoar.
Por isso, onde esperava encontrar compreensão encontra o não, o desespero, o grito.

Apesar de a sexualidade ser para nós uma aspiração permanente e uma fonte constante de nostalgia, temos medo dela.

Conclui-se que os homens e as mulheres têm por semana um número limitado de relações sexuais, rápidas e quase sempre com o mesmo parceiro.
A sexualidade é, portanto, contínua, escassa e pouco intensa, quase como o ato de comer e de beber.
Apesar disso, nos fica a impressão de que poderia ser diferente.
De onde vem tal certeza?
A resposta pode ser a seguinte: todos os homens e todas as mulheres têm períodos de atividade sexual intensa, extraordinária e exultante, e gostariam que fosse sempre assim.

O enamoramento é uma exploração do possível a partir do impossível, uma tentativa feita pelo imaginário de se impor ao existente.
Quanto maior for a sua tarefa e mais longa a viagem, menos provável será a chegada.
Sua história reduz-se, então, à história dessa viagem ou de suas travessias, das lutas travadas sem que haja um abrigo, um porto feliz de chegada.

Enamoramento e Amor- Francesco Alberoni.

Homo Ludens

É nessa intensidade, nessa fascinação, nessa capacidade de excitar que reside a própria essência e a característica primordial do jogo.
O mais simples raciocínio nos indica que a natureza poderia igualmente ter oferecido a suas criaturas todas essas úteis funções de descarga de energia excessiva, de distensão após um esforço, de preparação para as exigências da vida, de compensação de desejos insatisfeitos, etc., sob a forma de exercícios e reações puramente mecânicos.
Mas não, ela nos deu a tensão, a alegria e o divertimento do jogo.

A arena, a mesa de jogo, o círculo mágico, o templo, o palco, a tela, o campo de tênis, o tribunal, etc,. têm todos a forma e a função de terrenos de jogo, isto é, lugares proibidos, isolados, fechados, sagrados, em cujo interior se respeitam determinadas regras.
Todos eles são mundos temporários dentro do mundo habitual, dedicados à prática de uma atividade especial.

Dentro do círculo do jogo, as leis e costumes da vida quotidiana perdem validade.
Somos diferentes e fazemos coisas diferentes.

Existe entre a festa e o jogo, naturalmente, as mais estreitas relações.
Ambos implicam uma eliminação da vida cotidiana.
Em ambos predominam a alegria, embora não necessariamente, pois também a festa pode ser séria.
Ambos são limitados no tempo e no espaço.
Em ambos encontramos uma combinação de regras estritas com a mais autêntica liberdade.
Em resumo, a festa e o jogo têm em comuns suas características principais.
O modo mais íntimo de união de ambos parece poder encontrar-se na dança.

A criança representa alguma coisa diferente, ou mais bela, ou mais nobre, ou mais perigosa do que habitualmente é.
Finge ser um príncipe, um papai, uma bruxa malvada ou um tigre.
A criança fica literalmente "transportada" de prazer,
superando-se a si mesma a tal ponto que chega a acreditar que realmente é esta ou aquela coisa,
sem contudo perder inteiramente o sentido da "realidade habitual".
Mais do que uma realidade falsa, sua representação é a realização de uma aparência:
é "imaginação", no sentido original do termo.

O jogo autêntico possui, além de suas característica formais e de seu ambiente de alegria,
pelo menos um outro traço dos mais fundamentais,
a saber a consciência, mesmo que seja latente, de estar apenas "fazendo de conta".

Esta característica de "faz de conta" do jogo exprime um sentimento da inferioridade do jogo em relação à "seriedade",
o qual parece ser tão fundamental quanto o próprio jogo.
Todavia, conforme já salientamos, está consciência do fato de "só fazer de conta" no jogo não impede de modo algum que ele se processe com a maior seriedade,
com um enlevo e um entasiasmo, que chegam ao arrebatamento e,
pelo menos temporariamente, tiram todo o significado da palavra "só" da frase acima.
Todo jogo é capaz, a qualquer momento, de absorver inteiramente o jogador.
Nunca há um contraste bem nítido entre ele e a seriedade,
sendo a inferioridade do jogo sempre reduzida pela superioridade de sua seriedade.

Reina dentro do domínio do jogo uma ordem específica e absoluta.
E aqui chegamos a sua outra característica, mais positiva ainda: o jogo cria ordem e é ordem.
Introduz na confusão da vida e na imperfeição do mundo uma perfeição temporária e limitada.
A menor desobediência a esta "estraga o jogo", privando-o de seu caráter próprio e de todo e qualquer valor.

O jogo é "tenso" como se costuma dizer.
É este elemento de tensão e solução que domina em todos os jogos solitários de tristeza e aplicação, como os quebra-cabeças, as charadas, as paciências, o tiro ao alvo,
e quanto mais estiver presente o elemento competitivo mais apaixonante se torna o jogo.
Essa tensão chega ao extremo nos jogos de azar e nas competições esportivas.

A essência do lúdico está contida na frase "há alguma coisa em jogo".
Mas esse "alguma coisa" não é o resultado material do jogo, nem o mero fato da bola estar no buraco,
mas o fato ideal de se ter acertado ou de o jogo ter sido ganho.
O sentimento de prazer e de satisfação aumenta com a presença de espectadores, embora está não seja essencial para esse prazer.

Homo Ludens- Johan Huizinga.