quarta-feira, março 04, 2009

Homo Ludens

É nessa intensidade, nessa fascinação, nessa capacidade de excitar que reside a própria essência e a característica primordial do jogo.
O mais simples raciocínio nos indica que a natureza poderia igualmente ter oferecido a suas criaturas todas essas úteis funções de descarga de energia excessiva, de distensão após um esforço, de preparação para as exigências da vida, de compensação de desejos insatisfeitos, etc., sob a forma de exercícios e reações puramente mecânicos.
Mas não, ela nos deu a tensão, a alegria e o divertimento do jogo.

A arena, a mesa de jogo, o círculo mágico, o templo, o palco, a tela, o campo de tênis, o tribunal, etc,. têm todos a forma e a função de terrenos de jogo, isto é, lugares proibidos, isolados, fechados, sagrados, em cujo interior se respeitam determinadas regras.
Todos eles são mundos temporários dentro do mundo habitual, dedicados à prática de uma atividade especial.

Dentro do círculo do jogo, as leis e costumes da vida quotidiana perdem validade.
Somos diferentes e fazemos coisas diferentes.

Existe entre a festa e o jogo, naturalmente, as mais estreitas relações.
Ambos implicam uma eliminação da vida cotidiana.
Em ambos predominam a alegria, embora não necessariamente, pois também a festa pode ser séria.
Ambos são limitados no tempo e no espaço.
Em ambos encontramos uma combinação de regras estritas com a mais autêntica liberdade.
Em resumo, a festa e o jogo têm em comuns suas características principais.
O modo mais íntimo de união de ambos parece poder encontrar-se na dança.

A criança representa alguma coisa diferente, ou mais bela, ou mais nobre, ou mais perigosa do que habitualmente é.
Finge ser um príncipe, um papai, uma bruxa malvada ou um tigre.
A criança fica literalmente "transportada" de prazer,
superando-se a si mesma a tal ponto que chega a acreditar que realmente é esta ou aquela coisa,
sem contudo perder inteiramente o sentido da "realidade habitual".
Mais do que uma realidade falsa, sua representação é a realização de uma aparência:
é "imaginação", no sentido original do termo.

O jogo autêntico possui, além de suas característica formais e de seu ambiente de alegria,
pelo menos um outro traço dos mais fundamentais,
a saber a consciência, mesmo que seja latente, de estar apenas "fazendo de conta".

Esta característica de "faz de conta" do jogo exprime um sentimento da inferioridade do jogo em relação à "seriedade",
o qual parece ser tão fundamental quanto o próprio jogo.
Todavia, conforme já salientamos, está consciência do fato de "só fazer de conta" no jogo não impede de modo algum que ele se processe com a maior seriedade,
com um enlevo e um entasiasmo, que chegam ao arrebatamento e,
pelo menos temporariamente, tiram todo o significado da palavra "só" da frase acima.
Todo jogo é capaz, a qualquer momento, de absorver inteiramente o jogador.
Nunca há um contraste bem nítido entre ele e a seriedade,
sendo a inferioridade do jogo sempre reduzida pela superioridade de sua seriedade.

Reina dentro do domínio do jogo uma ordem específica e absoluta.
E aqui chegamos a sua outra característica, mais positiva ainda: o jogo cria ordem e é ordem.
Introduz na confusão da vida e na imperfeição do mundo uma perfeição temporária e limitada.
A menor desobediência a esta "estraga o jogo", privando-o de seu caráter próprio e de todo e qualquer valor.

O jogo é "tenso" como se costuma dizer.
É este elemento de tensão e solução que domina em todos os jogos solitários de tristeza e aplicação, como os quebra-cabeças, as charadas, as paciências, o tiro ao alvo,
e quanto mais estiver presente o elemento competitivo mais apaixonante se torna o jogo.
Essa tensão chega ao extremo nos jogos de azar e nas competições esportivas.

A essência do lúdico está contida na frase "há alguma coisa em jogo".
Mas esse "alguma coisa" não é o resultado material do jogo, nem o mero fato da bola estar no buraco,
mas o fato ideal de se ter acertado ou de o jogo ter sido ganho.
O sentimento de prazer e de satisfação aumenta com a presença de espectadores, embora está não seja essencial para esse prazer.

Homo Ludens- Johan Huizinga.