quarta-feira, março 04, 2009

Deslumbramentos

A vida quotidiana se caracteriza pelo desencanto.
Temos sempre tantas coisas para fazer. Algumas de que gostamos; mas a grande maioria é exigida de nós.
O que nos pedem é sempre prioritário, urgente, merece sempre o primeiro lugar, e se não fazemos logo nos criticam, ficam aborrecidos, castigam-nos.
A ordem das coisas não nos tem como centro.
Ela é o resultado de pressões exercidas sobre nós.
O que verdadeiramente desejamos não realizamos nunca e, a certa altura, acabamos sem saber sequer se gostaríamos de fazê-lo.
Na vida quotidiana nosso desejo chega por forma de fantasia, "que bom seria se..."
Mas acontece sempre alguma coisa que nos impede de exercer nossa vontade.

A vida quotidiana é caracterizada pela obrigação de fazer algo diferente, pelo dever de escolher entre coisas que interessam a outras pessoas, isto é, temos de fazer uma escolha entre um desapontamento maior e um mais suave.
A polaridade da vida cotidiana está entre a tranquilidade e o desassossego;
a do enamoramento, entre o êxtase e o tormento.
Há pessoas que não suportam a tensão do enamoramento, querem logo refreá-la, torná-la quotidiana, doméstica, controlável.
No quotidiano se deseja, pois, o excepcional, no excepcional, o cotidiano.

Na vida quotidiana, as metas que nos propomos, as coisas que procuramos obter, tudo, enfim, leva em conta os meios de que dispomos.
Não nos propomos coisas irrealizáveis.
Mas nossos desejos são limitados.
Mas ninguém se enamora dizendo: "Visto que tenho os meios para fazê-lo se enamorar de mim, decido enamorar-me dele".
Primeiro, se enamora, primeiro deseja o amor do outro e em seguida procura os meios para se fazer amar por ele.

O enamoramento é o abrir-se a uma existência diferente sem qualquer garantia de que esta se realize.
A grandeza do enamoramento é desesperadamente humana, pois oferece momentos de felicidade e eternidade, cria um desejo ardente, mas não pode oferecer certezas.

A cultura quotidiana sempre procura impor suas dicotomias: ou se gosta sempre ou nunca se gosta, ou se está sempre junto ou sempre separado, etc.
Rotulando e interrogando desse modo, ela os força assim a se definirem contraditoriamente de maneira louca.

Ninguém se enamora se está, mesmo parcialmente, satisfeito com o que tem e com o que é.
O enamoramento surge da sobrecarga depressiva, isto é, da impossibilidade de encontrar alguma coisa de valor na vida quotidiana.

Uma experiência típica do enamoramento é a de se poder "saciar" do outro.
Estar enamorado é também resistir ao amor, não querer ceder ao risco existencial de se colocar completamente nas mãos do outro.
Por isso, procuramos a pessoa amada, mas também desejamos evitá-la.
Muitas vezes, nos momentos de felicidade, dizemo-nos: "Já consegui tudo o que poderia obter, agora posso perdê-la e voltar a ser como era antes levando comigo só a sua lembrança. Já tive o que queria. Agora chega."
Obter o máximo possível e depois renunciar: essa é a fantasia da saciedade.
Num certo sentido, só conseguimos nos abandonar completamente porque achamos que é a última vez.
Desse modo, porém, submetemo-nos à prova porque, depois da separação, nos damos conta de que o desejo volta e de que continuamos amando, desejando o outro desesperadamente, e temos a necessidade de uma outra "última vez".

Examinemos agora outro caso, colocando uma pergunta que muitos se fazem.
É verdade que nos enamoramos mais facilmente de quem opõe alguma resistência do que de quem se faz desejar?
É verdade que, se temos que escolher entre duas pessoas, não escolhemos a que nos ama e se enamora de nós, mas antes a que se esquiva?
É uma idéia muito difundida que, em parte, corresponde à verdade, mas realmente muito pouco.
Sua verdade está no seguinte: o enamoramento procura o diferente e o extraordinário.
Uma pessoa que esteja a ponto de se enamorar dificilmente o fará por outra que há muito tempo se mostra enamorada dela e lhe faz a corte;
já a conhece, já estudou essa possibilidade.

Para aqueles a quem queremos bem, o presente não é uma homenagem servil: é o testemunho de uma relação que não se romperá.
Nesse caso, diz-se realmente: "Gosto de você, continuo a gostar de você mesmo que não pareça, mesmo que você não tenha dado sinal de vida como devia. Não me esqueci de você".
Porque, na realidade, esquecemos. Esquecemos durante meses, durante anos.
Esquecemos os pais, o marido ou a mulher, os filhos, sobretudo quem está distante e, por vezes, até quem está perto,
As pessoas de quem gostamos não são, na verdade, o objeto de uma relação contínua.
Nós as encontramos de vez em quando, como acontece com um amigo distante.
Não sentimos continuamente necessidade dessas pessoas, fazemos o que temos de fazer por hábito, por dever, às vezes nos lamentando.

Quem tem mais vínculos, mais obrigações, mais coisas para integrar e para mudar é aquele para qual o enamoramento é mais perturbador.
Mas o outro o ama justamente por essa sua complexidade, que dá grandeza e sentido à sua capacidade de mudar, de proteger uma existência nova, ao seu desejo de poder.

A perda de outra pessoa desvaloriza tudo aquilo que se é, os valores, a imagem, a auto-estima.
Quem está enamorado não se da conta da terrível ofensa que faz àquele que abandona e que este não pode perdoar.
Por isso, onde esperava encontrar compreensão encontra o não, o desespero, o grito.

Apesar de a sexualidade ser para nós uma aspiração permanente e uma fonte constante de nostalgia, temos medo dela.

Conclui-se que os homens e as mulheres têm por semana um número limitado de relações sexuais, rápidas e quase sempre com o mesmo parceiro.
A sexualidade é, portanto, contínua, escassa e pouco intensa, quase como o ato de comer e de beber.
Apesar disso, nos fica a impressão de que poderia ser diferente.
De onde vem tal certeza?
A resposta pode ser a seguinte: todos os homens e todas as mulheres têm períodos de atividade sexual intensa, extraordinária e exultante, e gostariam que fosse sempre assim.

O enamoramento é uma exploração do possível a partir do impossível, uma tentativa feita pelo imaginário de se impor ao existente.
Quanto maior for a sua tarefa e mais longa a viagem, menos provável será a chegada.
Sua história reduz-se, então, à história dessa viagem ou de suas travessias, das lutas travadas sem que haja um abrigo, um porto feliz de chegada.

Enamoramento e Amor- Francesco Alberoni.