sábado, março 22, 2008

Que dá dentro da gente e que não devia, que desacata a gente...

A repressão sexual pode ser considerada como um conjunto de interdições, permissões, normas, valores, regras estabelecidas para controlar o exercício da sexualidade, pois, como inúmeras expressões sugerem, o sexo é encarado por diferentes sociedades (e particularmente pela nossa) como uma torrente impetuosa e cheia de perigos- estar "perdido de amores", "cair de amores", receber as "flechas do amor", "morrer de amor".

Aquele "inferno" que é preciso coibir, refrear, moderar, dissimular, ocultar e disfarçar.

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Corpo e Morte

Corporeidade significa carência (necessidade de outra coisa para sobreviver), desejo (necessidade de outrem para viver), limite (percepção de obstáculos) e mortalidade (pois nascer significa que não se é eterno, é ter começo e fim).

O homem, segundo um poeta, é "um cadáver adiado que procria".

Escreve ainda São Gregório: "O fogo, se nele não jogamos lenha, graveto ou palha, nem qualquer matéria combustível, não é de natureza a conservar-se a si mesmo. Assim, a potência da morte não se exercerá se o casamento não lhe fornecer matéria".

A idéia de "matéria combustível", isto é, que o sexo só segue se lhe for dado objeto de prazer, ainda signigifica (e é esse o ponto) que poderá extinguir-se por si mesmo, sem alimento.
Mas significa algo ainda mais profundo: que o prazer obtido por seres finitos também é finito, fugaz, passageiro, que a busca recomeça sem cessar tão logo passado o efeito de satisfação, dela só restando uma lembrança que estimula o recomeço, como se os mortais esperassem da multiplicação e a repetição dos prazeres dar-lhe perenidade. Mas nunca será possível o pleno contentamento.

Uma das conseqüências dessa percepção sera a distição feita pelo cristianismo entre amor profano e amor divino.

"Penso que é bom para o homem que não toque em mulher. Entretando, para evitar a impudicícia, que cada um tenha sua mulher e cada mulher tenha seu marido. Que o marido dê à sua mulher o que lhe deve e que a mulher aja da mesma maneira com relação à seu marido".

Em primeiro lugar, sendo a mulher culpada do pecado original, é mais sensual e mais sexuada do que o homem, mais fraca e sujeita a sucumbir a tentações, por isso, o casamento é para ela um freio e uma segurança. Em segundo lugar, indo o homem à procura de mulher na fornicação e no adultério, melhor será que não exista mulher disponível para isso, casando-as todas.

Até nosso século, a questão do sexo e do casamento sempre foi tratada pela Igreja a partir de duas oposições fundamentais: prazer/dever, prazer/procriação. O amor sempre esteve ausente. Agora ele é o centro da formulação.

É o aspecto carártico ou purificador, a exteriorização do tormento interiorizado, que torna a confissão um bem. O que, sem dúvida, é verdade. E como não seria assim, depois que aprendemos a nos atormentar? O mecaniso fundamental consiste, pois, em nos libertar depois de nos haver reprimido, mas sob a condição de aceitar nova repressão.

Sade é o único para quem a relação sexual não é o encontro de dois seres, considerando que "todo gozo partilhado se enfraquece". É o único a descobrir a sexualidade como egoísmo e egocentrismo, valorizando o amante cerebral e lúcido que não se perde nem se abandona.
Foi condenado por sua sexualidade ser perigosa. Não pelo vínculo entre coito e crueldade, mas pelo vínculo entre sexualidade e egoísmo.

Com dificuldade, a sociedade européia aceitou o sexo, mas uma das condições para aceitá-lo era garantir sua generosidade, sua relação necessária com a doação de si ao outro- isto é, aquilo que a moral burguesa definirá como amor conjugal e familiar.

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Ilusões e Violência Simbólica

O aburguesamento da sociedade, condenando as depravações da nobreza, começa a valorizar o pudor, a decência, a limpeza, o isolamento ou privacidade. O quarto do casal se fecha, recolhido, secreto e respeitado como um templo inviolável: só os cônjuges o freqüentam, os servidores aí entrando apenas para a limpeza e na ausência do casal. Os trajes de dormir se multiplicam: além da camisola, o roupão e a toca, escondendo cada vez mais os corpos conjugais, mas também os dos irmãos e servidores.

Ora, a família é organizada por relações de autoridade, de papéis distribuídos por sexo e idade, de deveres, obrigações e direitos, definidos tanto pelo sacramento do matrimônio quanto pelo casamento civil.

Está constituído o nosso cotidiano indubitável. Não o sentimos, a não ser em casos excepcionais, como violento ou repressivo. Talvez, então, para alcançarmos a sua violência simbólica, valha uma referência à família nazi-fascista, onde os traços suaves de nosso cotidiano ganhem as cores fortes e os traços nítidos do real.

Tem lugar um culto perverso do corpo. Através da Educação Física e da purificação do sangue, devem ser produzidos (e a palavra é esta:produzidos) corpos perfeitos em beleza.
Em nome da eugenia racial, não se matam apenas judeus, poloneses, tchecos ou russos. Esterelizam-se os que não realizam o padrão corporal esteticamente definido. Quanto aos disformes, são eliminados ao nascer.

O pediatra se encarrega do nascimento; o pediatra, da saúde e da alimentação; o professor, da inteligência e do treino profissional; o supermercado, da alimentação; e os meios de comunicação de massa, da imaginação. Os antigos papéis, funções e serviçoes de pais, mães, tias, tios, avôs, avós, já não são necessários. Os problemas serão resolvidos por especialistas.

O desejo do orgasmo perfeito e contínuo; a elaboração da mãe ideal (não tanto a "boa" mãe, mas a bela mãe, jovem, sadia, compreensiva, grávida em plena atividade esportiva e profissional, e que é bela por dois motivos: porque decidiu ter o filho e porque escolheu o tempo certo do nascimento); na elabração do pai ideal (jovem, compreensivo, com tempo e alegria para os filhos); na elaboração da criança ideal (basta assistirmos meia hora de anúncio de televisão para sabermos o que é uma bela-boa criança).
Ora, por mais críticos que sejamos da psicanálise, uma coisa ela nos ensinou: a fantasia dos ideais do ego pode ser uma das fantasias mais repressivas e autodestrutivas.

Faz parte de nossa imaginação a crença da nossa família como intimidade, privacidade, refúgio contra o mundo hostil, domesticidade que não pode ser violada.
Porém, baste que nos lembremos que o Estado regula e controla o casamento com leis sobre aborto, adultério, divórcio, tutela de filhos, herança, pensão familiar, responsabilidade paterna e materna; registro de nascimento, de casamento, de eleitor, de aposentadoria, de trabalho, de serviço militar, atestado de óbito- para perdermos nossas ilusões.

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Corpos "Funcionando"

Mas antes de mais nada, porém, é conveniente observarmos que a ética do trabalho pelo trabalho é muito mais eficaz na repressão da sexualidade do que a ética do casamento.
Em primeiro lugar, porque o casamento com todas as restrições e todas as suas regras, ainda é matéria combustível.

A sociedade capitalista, como escreveu Foucault, desenvolve não apenas técnicas para transformar o corpo todo numa máquina de trabalho, mas ainda técnicas para corrigir, disciplinar, vigiar e punir os corpos, criando corpos dóceis: disciplinados, operosos, assexuados.

Copos, garrafas, pratos, talheres, são calculados quanto ao tamanho, ao volume, ao peso, de modo a permitirem um consumo rápido em que possamos satisfazer fome e sede sem gastarmos muita energia nem muito tempo. Em resumo: nosso corpo está sendo administrado racionalmente.

A super-repressão, segundo Marcuse, só pode operar se estiver interiorizada, se as pessoas considerarem normal, natural e desejável viver dessa maneira.

Lygia Fagundes Telles no livro a Disciplina do Amor: "Homens, mulheres e crianças- todos com seus dias previstos e organizados. (...) Batizado na terça e na quarta, macarronada, que a feijoada fica para o sábado, comemoração prévia do futebol de domingo (...). As obedientes engrenagens da máquina funcionando com suas rodinhas ensinadas... Apáticos e não apático, covulsos e apaziguados, atentos e delirantes em pleno funcionamento num ritmo implacável..."

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Manual de Intruções

A masturbação é pedagogicamente recomendada, pois a sexologia considera que só é possível amar outra pessoa quando se ama a si mesmo (nova versão do segundo mandamento própria da civilização do self-service). O tratamento orgasmológico procura ensinar truques e malabarismos, estimulando a descoberta do que os sexólogos chamam de "zonas estratégicas".

Um sexólogo famoso escreveu que a finalidade da sexologia é livrar os seres humanos da "peste emocional", graças a meios técnicos-científicos de administração de uma sexualidade sadia e feliz.

A sexologia é uma pedagogia sexual: ensina cada um o controle racional de suas paixões, o momento em que podem ter o livre curso e o melhor meio para fazê-lo. O sexólogo ensina como controlar os impulsos imediatos do desejo, como se preparar para a sua satisfação, quais as técnicas para fantasiar durante a relação sexual de modo que, graças às fantasias solitárias, o gozo do casal seja maior, e sobretudo ensina cada parceiro a respeitar os interesses sexuais do outro.

A sexologia combina prazer e ascetismo, intelectualismo e sensualidade (técnicas de preparação para o prazer), espontaneidade e programação, participar (agir sexualmente) e ser espectador (ter suas fantasias próprias e vigiar para saber se o parceiro já conseguiu o orgasmo); querer a uniformidade (respeitar as técnicas aprendidas) e a diferença (querer ser original em cada relação sexual). Em suma: a esquizofrenia e a liberdade vigiada.

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Psicanálise e as descobertas sobre repressão

Freud não somente descobriu e demonstrou a existência da sexualidade infantil, mas ainda inverteu a principal concepção existente sobre o sexo ao afirmar que a libido não é a causa de doenças e distúrbios físicos e psíquicos, mas, pelo contrário, a causa deles se encontra na repressão da libido.

A peculiaridade do recalque está no fato de que nosso inconsciente, astuciosamente, encontra meios para fazer o recalcado reaparecer sem danos os sem ameaças, reaparecimento que não depende nem da nossa vontade nem de nossa razão, fazendo parte do cotidiano normal de nossa vida (sendo mesmo necessário, como descarga de energia): sonhos, atos falhos, humor, apego ou desagrado por certos objetos, certas situações ou pessoas sem que saibamos a causa do amor e da repulsa, da simpatia ou da antipatia, da satisfação ou do medo.

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Desejo e Frustração

Desejar é desejar alguma coisa ou alguém. É sentir carência, falta. O que desejamos no desejo?

A marca indelével do desejo é a de jamais oferecer-nos a garantia de haver sido realizado.
Porque desejamos o desejo de outra pessoa, a liberdade de cada um, os acidentes e destinos de cada um, o jogo das relações sociais, tudo impede a certeza do definitivo. Por isso distingue-se não apenas da necessidade, mas também do prazer.

É nesse núcleo infinito do desejo que a propaganda vem tocar. E o faz com perfeição porque o essencial do consumo é oferecer "provas" de nosso reconhecimento pelos outros e objetos de prazer efêmero para que outros venham a ser consumidos.
Por um lado, a função dos objetos e a de ocupar o lugar do desejado, em vez de trazer o desejado, por outro lado, e sobretudo, a propaganda padrozina os desejos e os objetos de sua satisfação.

Tanto assim, que a propaganda perfeita é aquela que exibe muito pouco o produto, exibindo muito mais as conseqüências felizes dele (o "sucesso", o "amor", a "limpeza", a "felicidade").

Sem dúvida, a isto aspiramos e a repressão sexual aí está para frustrar a nossa aspiração.

Cada produto da série é apresentado sucessivamente de modo que o sucessor "acrescente" qualidades ao anterior, suprindo as frustrações deliberadamente criadas pelo primeiro.

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Adorno e Horkheimer: "na civilização ocidental, e provavelmente em todas, o corpo é tabu, objeto de atração e de repugnância".

Através da descoberta da clonagem, o homem tornou-se capaz de uma operação espantosa: reproduzir-se sem sexo.
A questão é: por que houve interesse nessa modalidade de pesquisa?
Seja para descobrir, seja para inventar, o essencial é que a ciência tenha escolhido um rumo no qual pôde eliminar a relação sexo-vida.

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Transformar Desejos em Discursos

Na revista Cláudia, no que se refere ao sexo, a receita é: como segurar seu homem sendo esposa-amante-mãe perfeita (limpinha, arrumadinha, perfumadinha, informadinha, discreta, sempre jovem e jovial). No caso de Nova, a receita pe: como ser inteligente e sedutora, sem assustar o macho, e, para tal a nova mulher precisa gostar de si mesma tal como é ( o "como é", evidentemente, recebe uma ajudinha de cremes, massagens, comésticos, ginásticas, cirurgias plásticas, modistas, cabeleireiros, etc.).

"Sexo responsável, limpo, estatisticamente controlado e racional."

Foucault procura escavar o silêncio num lugar muito curioso: nos discursos. O silêncio não é o que os discursos não dizem, mas são os conjuntos de estratégias empregadas para a montagem desses discursos.
Isto é, conhecer uma época de uma sociedade é descobrir o que ela diz, como o diz, por que o diz, para que o diz, a quem o diz, como foi possível esse dizer, que práticas o suscitaram e foram suscitadas por ele, e o que não é dito.

Isto significa não só a crítica da medicina, da pedagogia, do direito, da psiquiatria, da psicanálise e da pedagogia, mas também a crítica de suas críticas.

Assim, em lugar de encontrarmos repressão sexual, nos deparamos com a produção da sexualidade como um saber que diz o verdadeiro e o falso sobre o sexo, e cujo ponto de partida foram regras e técnicas para maximizar a vida, para o crescimento demográfico e controle familiar da população.

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Duplo nó

O duplo nó consiste em afirmar e negar, proibir e consentir alguma coisa ao mesmo tempo.

No destino da mulher à maternidade e no desemprego das grávidas e mães.
Na necessidade do homosseuxal em assumir-se. Ora, o que é assumir-se?
No "namoro sério pra casar", criando uma contradição intolerável para a menina e o menino, pois a virgindade é exigida ocmo prova de amor, ao mesmo tempo em que a excitação recíproca, levada à exasperação, cria nos parceiros a dúvida: me ama ou não me ama? A "prova de amor" é resistência ou rendição?

Jornais e revistas procuram auxiliar homens e mulheres, tentando dimunuir-lher a angústia garantindo-lhes que "tamanho não é documento". Oferecem exemplos dessa ausência de importância, através das variações na história ou entre sociedades. A seguir, porém, oferecem soluções: cirurgia plástica, ginásticas, depilações, etc; que além da falta de acesso e da garantia de eficácia, recria e redobra o medo inicial.

Há uma resistência generalizada a tratar o aborto como um fenômeno cultural, físico e psíquico, dotado de simbolismos profundos e como se, na prática, não fosse vivenciado pelas mulheres como um ato sem liberdade e sem autonomia, algo que lhes é tão imposto quanto a maternidade.

Há uma série de investigações (policiais) para averiguar se a mulher currada ou estuprada realmente não consentiu na relação sexual, o que indica a existência de uma desconfiança implícita a cerca das mulheres, no tocante ao sexo.

Inúmeros estudos têm mostrado como, na geografia das cidades, o bordel é tão indispensável quanto a igreja, o cemitério, a cadeia e a escola.
Em suma, a sociedade elabora procedimentos de segregação visível e integração invisível, fazendo da prostituta peça fundamental da lógica social.

O adultério masculino é considerado o exercício, infelizmente excessivo e abusado, de autoridade e de uma sexualidade mais exigente do que a feminina. Além disso, os homens não ficam grávidos.

Através da medicalização classificatória, o homossexualismo tornou-se uma espécie sexual e um tipo social. De atividade, transformou-se num modo de ser que determina todas as outras atividades e o destino pessoal de alguém.

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A diferença importante: o possível não é o provável.
Talvez porque a libertação seuxal tenha tomado o único rumo que a sociedade aministrada lhe permitia tomar- o do cálculo, da re-manipulação e do provável- tomou uma direção que excluía a idéia do possível.
Cálculo, manipulação e provável são idéias governadas teórica e praticamente pela categoria do controle-controlável.
Mas o possível é o que jamais foi feito e, no entanto, poderia ser feito- é possibilidade e não probabilidade.

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Repressão Sexual- Essa Nossa (Des)Conhecida
Marilena Chauí

Desserts

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Sex

- When did being alone become the modern-day equivalent of being a leper? Will Manhattan restaurants soon be divided up into sections -- smoking / non-smoking, single / non-single?

- New York City is all about sex. People getting it, people trying to get it, people who can't get it. No wonder the city never sleeps.
It's too busy trying to get laid.

- There are 1.3 million single men in New York, 1.8 million single women, and of these more than 3 million people, about 12 think they're having enough sex.

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Appearence

- Modelizers are obsessed not with women but with models, who in most cities are safely confined to billboards and magazines, but in Manhattan actually run wild on the streets, turning the city into a virtual model country safari where men can pet the creatures in their natural habitat.

- When did all the men get together and decide that they were only going to get it up for giraffes with big breasts?

- I happen to love the way I look.
- You should. You paid enough for it.

- Monogamy is fabulous. It gives you a deep and profound connection with another human being, and you don't have to shave your legs as much.

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Men x Women

- You should go through life like I do - not expecting men to fill you up, except when, well, you know.

- Men cheat for the same reason dogs lick their balls: because they can.

- Everyone needs a man. That's why I rent. If you own and he still rents, then the power structure is all off. It's emasculating. Men don't want a woman who's too self-sufficient.

- I'm sorry, if a man is over thirty and single, there's something wrong with him. It's Darwinian. They're being weeded out or propagating the species.
- Okay, well, what about us?
- We're just choosy.

- Is he that bad in bed?
- No. He's just... he's a guy. He can rebuild a jet engine but when it comes to a woman... What's the big mystery? It's my clitoris, not the Sphinx.

- It's infuriating! Women sit around, obsessing about what went wrong, while men just say "alrighty", and move on

- Did you ever get a girl pregnant?
- Not that I know of.
- GodDAMN, it must be nice to be a guy sometimes.

- The only place you can control a man is in bed. If we perpetually gave men blow jobs we could run the world!

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Relationships

- Meanwhile, uptown, Charlotte wondered when relationships had gotten so complicated. She yearned for the time when dinner was followed by dessert, not lubricant.

- The universe may not always play fair, but at least it's got a hell of a sense of
humor.

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Sex And The City- Dialogues

domingo, março 16, 2008

Submissa ?! ...

Todo dia ele faz diferente
Não sei se ele volta da rua
Não sei se me traz um presente
Não sei se ele fica na sua
Talvez ele chegue sentido
Quem sabe me cobre de beijos
Ou nem me desmancha o vestido
Ou nem me adivinha os desejos

Dia ímpar tem chocolate
Dia par eu vivo de brisa
Dia útil ele me bate
Dia santo ele me alisa
Longe dele eu tremo de amor
na presença dele me calo

Eu de dia sou sua flor
Eu de noite sou seu cavalo

A cerveja dele é sagrada
A vontade dele é a mais justa
A minha paixão é piada
A sua risada me assusta

Sua boca é um cadeado
E meu corpo é uma fogueira
Enquanto ele dorme pesado
Eu rolo sozinha na esteira


Sem açúcar- Chico Buarque.

O que somos e o que vemos.

Se pergunto a mim mesmo, pela introspecção, como me sinto, em vez de obter uma compreensão mais refinada da minha solidão, eu obtenho uma compreensão menos clara.

Será que existe realmente algo que se possa chamar introspecção? Ou, em outras palavras, há realmente alguma coisa que possa ser considerada puro sujeito?

Para o caçador, a árvore é um abrigo para os pássaros que está procurando, para o madeireiro, é um objeto a ser medido, cortado, vendido, para o ecologista, algo a ser protegido, para alguém cansado, uma possibilidade de sombra. E, no entanto, a árvore é uma só. Trata-se de uma contradição?

Todos, porém, vêem uma realidade, eis o que é necessário sublinhar.

Tudo o que vemos, ouvimos, provamos ou cheiramos, interessa, em primeiro lugar, direta e espontaneamente, a nós mesmos.

A relação entre o homem e o mundo é tao íntima que seria errado separá-los.
Separar imagem e realidade seria separar homem e mundo.


Quando o paciente conta como o mundo lhe parece, está descrevendo, sem rodeios e sem enganos, o que ele mesmo é.

A memória, condição extremamente subjetiva, está estreitamente fundida com as vozes, os odores, com tudo o que está por aí, contido nos objetos.

Afinal, tudo se resume no seguinte: uma palavra, um olhar ou um gesto podem abrilhantar uma coisa ou torná-la sombria.

Uma carícia transforma a mão em mão, o corpo em corpo.
Como indivíduos, todos sentimos que o nosso corpo é mais ou menos estranho para nós.
O amor remove a distância do corpo; algo acontece que se pode chamar de adesão ou concordância, o indivíduo começa a ocupar o seu próprio corpo e é convidado a ser esse corpo.

Ao invés e propor uma teoria reflexiva sempre ligeiramente estranha, artificial e, portanto, pouco satisfatória sobre o problema, é necessário deixar que o problema fale por si.

O que está acontecendo é o seu primeiro e último alvo, expressão que se torna talvez mais clara quando complementada por mais uma palavra: o que está acontecendo aí.
Nós sempre entendemos a linguagem das coisas. Vivemos num mundo evidente por si mesmo.

A primeira coisa a dizer a respeito do passado, é que ele nos fala no presente.

Não só os neuróticos mitificam o passado, pois é fora de dúvida que todo o mundo comete enganos desse tipo. Pode-se mesmo dizer que o engano é a regra.
Às vezes somos nós mesmos os críticos da nossa própria memória.
Críticas sobre a ênfase, com que enfeitamos, contestações quanto à freqüência que lhe atribuímos.
O que relatamos nunca é completamente correto.

Nem tudo o que acontece é experiência.
Aquilo que não tem função, não tem realidade. Está ausente.
Está apenas presente como fato bruto ou condição.

Palavras como "mitos" e "lembranças ilusórias" pressupõem a existência de um passado de uma só forma, a forma observada por uma tstemunha sem emoção no momento que o incidente ocorreu. Pois bem, esse passado destituído de preconceitos não existe.

O tratamento do paciente, por conseguinte, não consiste em liberá-lo do seu trauma, mas em liberá-lo do significado desse trauma por meio da liberação do contato perturbado.

O paciente precisa de um velho passado para poder escapar de um presente penoso. São fatos trazidos para cena para serem utilizados como esconderijo. Pedaços de realidade que retêm outra realidade.
As relações com outras pessoas são de importância tão primordial neste contexto que a psicopatologia pode ser chamada a ciência da solidão e do isolamento.

Cada um de nós pensa muito mais nas coisas por vir do que nas coisas já passadas.
O futuro dificilmente pode ser uma entida obscura e irresoluta. O futuro é real, tão real que acordamos de manhã condicionados pelo que acontecerá no dia.
Existe uma conexão muito estreita entre presente e futuro.

Se acordamos de manhã com dor de cabeça, sentimos essa dor com mais intensidade quando o dia tem um aspecto pouco promissor. Se, ao contrário, as expectativas do dia são agradáveis, quase esquecemos a dor de cabeça.

Para os neuróticos, o futuro torna-se inacessível, pois um futuro acessível significa um passado bem ordenado.

O Paciente Psiquiátrico- Esboço de Psicopatologia Fenomenológica.- Van Den Berg.

quinta-feira, março 06, 2008

Culpa...

Até cortar os defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual o defeito que sustenta nosso edifício inteiro...
Há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo.

Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que imagina que é ruim em você - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse seu único meio de viver.

Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo o que sua vida exige.

Se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia ia ser punida e iria para um inferno qualquer.
Se é que uma vida morna não é ser punida por essa mesma mornidão.

Clarice Lispector

segunda-feira, março 03, 2008

Hostilidade... (cont.)

Existem substâncias estranhas, as quais, quando presentes no sangue e nos tecidos, provocam em nós, diretamente, sensações prazerosas, alterando, também, as condições que dirigem nossa sensibilidade, que nos tornamos incapazes de receber certos impulsos desagradáveis.

Devemos a tais veículos não só a produção imediata de prazer, mas também um alto grau de independência do mundo externo, pois sabe-se que, com o auxílio desse 'amortecedor de preocupações', é possível, em qualquer ocasião, afastar-de da pressão da realidade e encontrar refúgio num mundo próprio, com melhores condições de sensibilidade.
Sabe-se igualmene que é extamente esta propriedade dos intoxicantes que determina seu perigo e sua capacidade de causar danos.

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As pessoas receptivas à influência da arte não lhe podem lhe atribuir um valor alto demais como fonte de prazer e consolação na vida.
Não obstante, a suave narcose a que a arte nos induz, não faz mais do que ocasionar um afastamento passageiro das pressões vitais, não sendo suficientemente forte para nos levar a esquecer a aflição real.

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Evidentemente a beleza, a limpeza e a ordem ocupam uma posição especial entre as exigências da civilização, embora sua necessidade vital não seja muito aparente, da mesma forma que se revelam indesejáveis como fonte de prazer.

Os seres humanos revelam uma tendência inata para o descuido, a irregularidade e a irresponsabilidade em seu trabalho, e de que seja necessário um laborioso treinamento para que aprendam a seguir o exemplo de seus modelos celestes.

É impossível desprezar o ponto até o qual a civilização é construída sobre uma renúncia, o quanto ela pressupõe exatamente a não-satisfação.
Essa 'frustração cultural' domina o grande campo dos relacionamentos sociais entre os humanos.

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O que é mau, freqüentemente, não é de modo algum o que é prejudicial ou perigoso para o ego; pelo contrário, pode ser algo desejável e prazeroso para ele.

O que acontece no indivíduo para tornar inofensivo seu desejo de agressão?

Este motivo é facilmente decoberto no desamparo e na dependência em relação a outra pessoa.
Se a pessoa perde o amor do outro de quem é dependente, deixa também de ser protegida de uma série de perigos.
Acima de tudo, fica exposta ao perigo de que essa pessoa mais forte mostre a sua superioridade sob a forma de punição.

O sentimento de culpa é, claramente, apenas um medo da perda de amor, uma ansiedade 'social'.

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Posteriormente, devido à onisciência do superego, a diferença entre uma agressão pretendida e uma agressão executada perde a sua força. Daí por diante o sentimento de culpa podia ser produzido por um ato simplesmente pretendido: o crime reside na intenção.

É concebível que tampouco o sentimento de culpa produzido pela civilização seja percebido como tal, e em grande parte permaneça inconsciente, ou apareça como uma espécie de mal-estar, uma insatisfação para a qual as pessoas buscam outras motivações.

Como já sabemos, o problema que temos pela frente é saber como livra-se do maior estorvo à civilização- isto é, a inclinação, constitutiva dos seres humanos, para a agressividade mútua.

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Ao mesmo tempo, tivemos o cuidado de não concordar com o preconceito de que civilização é sinônimo de aperfeiçoamento, de que constitui a estrada para a perfeição, pré-ordenada para os homens.

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Freud - O mal-estar na civilização.