sábado, março 22, 2008

Que dá dentro da gente e que não devia, que desacata a gente...

A repressão sexual pode ser considerada como um conjunto de interdições, permissões, normas, valores, regras estabelecidas para controlar o exercício da sexualidade, pois, como inúmeras expressões sugerem, o sexo é encarado por diferentes sociedades (e particularmente pela nossa) como uma torrente impetuosa e cheia de perigos- estar "perdido de amores", "cair de amores", receber as "flechas do amor", "morrer de amor".

Aquele "inferno" que é preciso coibir, refrear, moderar, dissimular, ocultar e disfarçar.

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Corpo e Morte

Corporeidade significa carência (necessidade de outra coisa para sobreviver), desejo (necessidade de outrem para viver), limite (percepção de obstáculos) e mortalidade (pois nascer significa que não se é eterno, é ter começo e fim).

O homem, segundo um poeta, é "um cadáver adiado que procria".

Escreve ainda São Gregório: "O fogo, se nele não jogamos lenha, graveto ou palha, nem qualquer matéria combustível, não é de natureza a conservar-se a si mesmo. Assim, a potência da morte não se exercerá se o casamento não lhe fornecer matéria".

A idéia de "matéria combustível", isto é, que o sexo só segue se lhe for dado objeto de prazer, ainda signigifica (e é esse o ponto) que poderá extinguir-se por si mesmo, sem alimento.
Mas significa algo ainda mais profundo: que o prazer obtido por seres finitos também é finito, fugaz, passageiro, que a busca recomeça sem cessar tão logo passado o efeito de satisfação, dela só restando uma lembrança que estimula o recomeço, como se os mortais esperassem da multiplicação e a repetição dos prazeres dar-lhe perenidade. Mas nunca será possível o pleno contentamento.

Uma das conseqüências dessa percepção sera a distição feita pelo cristianismo entre amor profano e amor divino.

"Penso que é bom para o homem que não toque em mulher. Entretando, para evitar a impudicícia, que cada um tenha sua mulher e cada mulher tenha seu marido. Que o marido dê à sua mulher o que lhe deve e que a mulher aja da mesma maneira com relação à seu marido".

Em primeiro lugar, sendo a mulher culpada do pecado original, é mais sensual e mais sexuada do que o homem, mais fraca e sujeita a sucumbir a tentações, por isso, o casamento é para ela um freio e uma segurança. Em segundo lugar, indo o homem à procura de mulher na fornicação e no adultério, melhor será que não exista mulher disponível para isso, casando-as todas.

Até nosso século, a questão do sexo e do casamento sempre foi tratada pela Igreja a partir de duas oposições fundamentais: prazer/dever, prazer/procriação. O amor sempre esteve ausente. Agora ele é o centro da formulação.

É o aspecto carártico ou purificador, a exteriorização do tormento interiorizado, que torna a confissão um bem. O que, sem dúvida, é verdade. E como não seria assim, depois que aprendemos a nos atormentar? O mecaniso fundamental consiste, pois, em nos libertar depois de nos haver reprimido, mas sob a condição de aceitar nova repressão.

Sade é o único para quem a relação sexual não é o encontro de dois seres, considerando que "todo gozo partilhado se enfraquece". É o único a descobrir a sexualidade como egoísmo e egocentrismo, valorizando o amante cerebral e lúcido que não se perde nem se abandona.
Foi condenado por sua sexualidade ser perigosa. Não pelo vínculo entre coito e crueldade, mas pelo vínculo entre sexualidade e egoísmo.

Com dificuldade, a sociedade européia aceitou o sexo, mas uma das condições para aceitá-lo era garantir sua generosidade, sua relação necessária com a doação de si ao outro- isto é, aquilo que a moral burguesa definirá como amor conjugal e familiar.

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Ilusões e Violência Simbólica

O aburguesamento da sociedade, condenando as depravações da nobreza, começa a valorizar o pudor, a decência, a limpeza, o isolamento ou privacidade. O quarto do casal se fecha, recolhido, secreto e respeitado como um templo inviolável: só os cônjuges o freqüentam, os servidores aí entrando apenas para a limpeza e na ausência do casal. Os trajes de dormir se multiplicam: além da camisola, o roupão e a toca, escondendo cada vez mais os corpos conjugais, mas também os dos irmãos e servidores.

Ora, a família é organizada por relações de autoridade, de papéis distribuídos por sexo e idade, de deveres, obrigações e direitos, definidos tanto pelo sacramento do matrimônio quanto pelo casamento civil.

Está constituído o nosso cotidiano indubitável. Não o sentimos, a não ser em casos excepcionais, como violento ou repressivo. Talvez, então, para alcançarmos a sua violência simbólica, valha uma referência à família nazi-fascista, onde os traços suaves de nosso cotidiano ganhem as cores fortes e os traços nítidos do real.

Tem lugar um culto perverso do corpo. Através da Educação Física e da purificação do sangue, devem ser produzidos (e a palavra é esta:produzidos) corpos perfeitos em beleza.
Em nome da eugenia racial, não se matam apenas judeus, poloneses, tchecos ou russos. Esterelizam-se os que não realizam o padrão corporal esteticamente definido. Quanto aos disformes, são eliminados ao nascer.

O pediatra se encarrega do nascimento; o pediatra, da saúde e da alimentação; o professor, da inteligência e do treino profissional; o supermercado, da alimentação; e os meios de comunicação de massa, da imaginação. Os antigos papéis, funções e serviçoes de pais, mães, tias, tios, avôs, avós, já não são necessários. Os problemas serão resolvidos por especialistas.

O desejo do orgasmo perfeito e contínuo; a elaboração da mãe ideal (não tanto a "boa" mãe, mas a bela mãe, jovem, sadia, compreensiva, grávida em plena atividade esportiva e profissional, e que é bela por dois motivos: porque decidiu ter o filho e porque escolheu o tempo certo do nascimento); na elabração do pai ideal (jovem, compreensivo, com tempo e alegria para os filhos); na elaboração da criança ideal (basta assistirmos meia hora de anúncio de televisão para sabermos o que é uma bela-boa criança).
Ora, por mais críticos que sejamos da psicanálise, uma coisa ela nos ensinou: a fantasia dos ideais do ego pode ser uma das fantasias mais repressivas e autodestrutivas.

Faz parte de nossa imaginação a crença da nossa família como intimidade, privacidade, refúgio contra o mundo hostil, domesticidade que não pode ser violada.
Porém, baste que nos lembremos que o Estado regula e controla o casamento com leis sobre aborto, adultério, divórcio, tutela de filhos, herança, pensão familiar, responsabilidade paterna e materna; registro de nascimento, de casamento, de eleitor, de aposentadoria, de trabalho, de serviço militar, atestado de óbito- para perdermos nossas ilusões.

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Corpos "Funcionando"

Mas antes de mais nada, porém, é conveniente observarmos que a ética do trabalho pelo trabalho é muito mais eficaz na repressão da sexualidade do que a ética do casamento.
Em primeiro lugar, porque o casamento com todas as restrições e todas as suas regras, ainda é matéria combustível.

A sociedade capitalista, como escreveu Foucault, desenvolve não apenas técnicas para transformar o corpo todo numa máquina de trabalho, mas ainda técnicas para corrigir, disciplinar, vigiar e punir os corpos, criando corpos dóceis: disciplinados, operosos, assexuados.

Copos, garrafas, pratos, talheres, são calculados quanto ao tamanho, ao volume, ao peso, de modo a permitirem um consumo rápido em que possamos satisfazer fome e sede sem gastarmos muita energia nem muito tempo. Em resumo: nosso corpo está sendo administrado racionalmente.

A super-repressão, segundo Marcuse, só pode operar se estiver interiorizada, se as pessoas considerarem normal, natural e desejável viver dessa maneira.

Lygia Fagundes Telles no livro a Disciplina do Amor: "Homens, mulheres e crianças- todos com seus dias previstos e organizados. (...) Batizado na terça e na quarta, macarronada, que a feijoada fica para o sábado, comemoração prévia do futebol de domingo (...). As obedientes engrenagens da máquina funcionando com suas rodinhas ensinadas... Apáticos e não apático, covulsos e apaziguados, atentos e delirantes em pleno funcionamento num ritmo implacável..."

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Manual de Intruções

A masturbação é pedagogicamente recomendada, pois a sexologia considera que só é possível amar outra pessoa quando se ama a si mesmo (nova versão do segundo mandamento própria da civilização do self-service). O tratamento orgasmológico procura ensinar truques e malabarismos, estimulando a descoberta do que os sexólogos chamam de "zonas estratégicas".

Um sexólogo famoso escreveu que a finalidade da sexologia é livrar os seres humanos da "peste emocional", graças a meios técnicos-científicos de administração de uma sexualidade sadia e feliz.

A sexologia é uma pedagogia sexual: ensina cada um o controle racional de suas paixões, o momento em que podem ter o livre curso e o melhor meio para fazê-lo. O sexólogo ensina como controlar os impulsos imediatos do desejo, como se preparar para a sua satisfação, quais as técnicas para fantasiar durante a relação sexual de modo que, graças às fantasias solitárias, o gozo do casal seja maior, e sobretudo ensina cada parceiro a respeitar os interesses sexuais do outro.

A sexologia combina prazer e ascetismo, intelectualismo e sensualidade (técnicas de preparação para o prazer), espontaneidade e programação, participar (agir sexualmente) e ser espectador (ter suas fantasias próprias e vigiar para saber se o parceiro já conseguiu o orgasmo); querer a uniformidade (respeitar as técnicas aprendidas) e a diferença (querer ser original em cada relação sexual). Em suma: a esquizofrenia e a liberdade vigiada.

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Psicanálise e as descobertas sobre repressão

Freud não somente descobriu e demonstrou a existência da sexualidade infantil, mas ainda inverteu a principal concepção existente sobre o sexo ao afirmar que a libido não é a causa de doenças e distúrbios físicos e psíquicos, mas, pelo contrário, a causa deles se encontra na repressão da libido.

A peculiaridade do recalque está no fato de que nosso inconsciente, astuciosamente, encontra meios para fazer o recalcado reaparecer sem danos os sem ameaças, reaparecimento que não depende nem da nossa vontade nem de nossa razão, fazendo parte do cotidiano normal de nossa vida (sendo mesmo necessário, como descarga de energia): sonhos, atos falhos, humor, apego ou desagrado por certos objetos, certas situações ou pessoas sem que saibamos a causa do amor e da repulsa, da simpatia ou da antipatia, da satisfação ou do medo.

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Desejo e Frustração

Desejar é desejar alguma coisa ou alguém. É sentir carência, falta. O que desejamos no desejo?

A marca indelével do desejo é a de jamais oferecer-nos a garantia de haver sido realizado.
Porque desejamos o desejo de outra pessoa, a liberdade de cada um, os acidentes e destinos de cada um, o jogo das relações sociais, tudo impede a certeza do definitivo. Por isso distingue-se não apenas da necessidade, mas também do prazer.

É nesse núcleo infinito do desejo que a propaganda vem tocar. E o faz com perfeição porque o essencial do consumo é oferecer "provas" de nosso reconhecimento pelos outros e objetos de prazer efêmero para que outros venham a ser consumidos.
Por um lado, a função dos objetos e a de ocupar o lugar do desejado, em vez de trazer o desejado, por outro lado, e sobretudo, a propaganda padrozina os desejos e os objetos de sua satisfação.

Tanto assim, que a propaganda perfeita é aquela que exibe muito pouco o produto, exibindo muito mais as conseqüências felizes dele (o "sucesso", o "amor", a "limpeza", a "felicidade").

Sem dúvida, a isto aspiramos e a repressão sexual aí está para frustrar a nossa aspiração.

Cada produto da série é apresentado sucessivamente de modo que o sucessor "acrescente" qualidades ao anterior, suprindo as frustrações deliberadamente criadas pelo primeiro.

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Adorno e Horkheimer: "na civilização ocidental, e provavelmente em todas, o corpo é tabu, objeto de atração e de repugnância".

Através da descoberta da clonagem, o homem tornou-se capaz de uma operação espantosa: reproduzir-se sem sexo.
A questão é: por que houve interesse nessa modalidade de pesquisa?
Seja para descobrir, seja para inventar, o essencial é que a ciência tenha escolhido um rumo no qual pôde eliminar a relação sexo-vida.

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Transformar Desejos em Discursos

Na revista Cláudia, no que se refere ao sexo, a receita é: como segurar seu homem sendo esposa-amante-mãe perfeita (limpinha, arrumadinha, perfumadinha, informadinha, discreta, sempre jovem e jovial). No caso de Nova, a receita pe: como ser inteligente e sedutora, sem assustar o macho, e, para tal a nova mulher precisa gostar de si mesma tal como é ( o "como é", evidentemente, recebe uma ajudinha de cremes, massagens, comésticos, ginásticas, cirurgias plásticas, modistas, cabeleireiros, etc.).

"Sexo responsável, limpo, estatisticamente controlado e racional."

Foucault procura escavar o silêncio num lugar muito curioso: nos discursos. O silêncio não é o que os discursos não dizem, mas são os conjuntos de estratégias empregadas para a montagem desses discursos.
Isto é, conhecer uma época de uma sociedade é descobrir o que ela diz, como o diz, por que o diz, para que o diz, a quem o diz, como foi possível esse dizer, que práticas o suscitaram e foram suscitadas por ele, e o que não é dito.

Isto significa não só a crítica da medicina, da pedagogia, do direito, da psiquiatria, da psicanálise e da pedagogia, mas também a crítica de suas críticas.

Assim, em lugar de encontrarmos repressão sexual, nos deparamos com a produção da sexualidade como um saber que diz o verdadeiro e o falso sobre o sexo, e cujo ponto de partida foram regras e técnicas para maximizar a vida, para o crescimento demográfico e controle familiar da população.

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Duplo nó

O duplo nó consiste em afirmar e negar, proibir e consentir alguma coisa ao mesmo tempo.

No destino da mulher à maternidade e no desemprego das grávidas e mães.
Na necessidade do homosseuxal em assumir-se. Ora, o que é assumir-se?
No "namoro sério pra casar", criando uma contradição intolerável para a menina e o menino, pois a virgindade é exigida ocmo prova de amor, ao mesmo tempo em que a excitação recíproca, levada à exasperação, cria nos parceiros a dúvida: me ama ou não me ama? A "prova de amor" é resistência ou rendição?

Jornais e revistas procuram auxiliar homens e mulheres, tentando dimunuir-lher a angústia garantindo-lhes que "tamanho não é documento". Oferecem exemplos dessa ausência de importância, através das variações na história ou entre sociedades. A seguir, porém, oferecem soluções: cirurgia plástica, ginásticas, depilações, etc; que além da falta de acesso e da garantia de eficácia, recria e redobra o medo inicial.

Há uma resistência generalizada a tratar o aborto como um fenômeno cultural, físico e psíquico, dotado de simbolismos profundos e como se, na prática, não fosse vivenciado pelas mulheres como um ato sem liberdade e sem autonomia, algo que lhes é tão imposto quanto a maternidade.

Há uma série de investigações (policiais) para averiguar se a mulher currada ou estuprada realmente não consentiu na relação sexual, o que indica a existência de uma desconfiança implícita a cerca das mulheres, no tocante ao sexo.

Inúmeros estudos têm mostrado como, na geografia das cidades, o bordel é tão indispensável quanto a igreja, o cemitério, a cadeia e a escola.
Em suma, a sociedade elabora procedimentos de segregação visível e integração invisível, fazendo da prostituta peça fundamental da lógica social.

O adultério masculino é considerado o exercício, infelizmente excessivo e abusado, de autoridade e de uma sexualidade mais exigente do que a feminina. Além disso, os homens não ficam grávidos.

Através da medicalização classificatória, o homossexualismo tornou-se uma espécie sexual e um tipo social. De atividade, transformou-se num modo de ser que determina todas as outras atividades e o destino pessoal de alguém.

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A diferença importante: o possível não é o provável.
Talvez porque a libertação seuxal tenha tomado o único rumo que a sociedade aministrada lhe permitia tomar- o do cálculo, da re-manipulação e do provável- tomou uma direção que excluía a idéia do possível.
Cálculo, manipulação e provável são idéias governadas teórica e praticamente pela categoria do controle-controlável.
Mas o possível é o que jamais foi feito e, no entanto, poderia ser feito- é possibilidade e não probabilidade.

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Repressão Sexual- Essa Nossa (Des)Conhecida
Marilena Chauí