domingo, março 16, 2008

O que somos e o que vemos.

Se pergunto a mim mesmo, pela introspecção, como me sinto, em vez de obter uma compreensão mais refinada da minha solidão, eu obtenho uma compreensão menos clara.

Será que existe realmente algo que se possa chamar introspecção? Ou, em outras palavras, há realmente alguma coisa que possa ser considerada puro sujeito?

Para o caçador, a árvore é um abrigo para os pássaros que está procurando, para o madeireiro, é um objeto a ser medido, cortado, vendido, para o ecologista, algo a ser protegido, para alguém cansado, uma possibilidade de sombra. E, no entanto, a árvore é uma só. Trata-se de uma contradição?

Todos, porém, vêem uma realidade, eis o que é necessário sublinhar.

Tudo o que vemos, ouvimos, provamos ou cheiramos, interessa, em primeiro lugar, direta e espontaneamente, a nós mesmos.

A relação entre o homem e o mundo é tao íntima que seria errado separá-los.
Separar imagem e realidade seria separar homem e mundo.


Quando o paciente conta como o mundo lhe parece, está descrevendo, sem rodeios e sem enganos, o que ele mesmo é.

A memória, condição extremamente subjetiva, está estreitamente fundida com as vozes, os odores, com tudo o que está por aí, contido nos objetos.

Afinal, tudo se resume no seguinte: uma palavra, um olhar ou um gesto podem abrilhantar uma coisa ou torná-la sombria.

Uma carícia transforma a mão em mão, o corpo em corpo.
Como indivíduos, todos sentimos que o nosso corpo é mais ou menos estranho para nós.
O amor remove a distância do corpo; algo acontece que se pode chamar de adesão ou concordância, o indivíduo começa a ocupar o seu próprio corpo e é convidado a ser esse corpo.

Ao invés e propor uma teoria reflexiva sempre ligeiramente estranha, artificial e, portanto, pouco satisfatória sobre o problema, é necessário deixar que o problema fale por si.

O que está acontecendo é o seu primeiro e último alvo, expressão que se torna talvez mais clara quando complementada por mais uma palavra: o que está acontecendo aí.
Nós sempre entendemos a linguagem das coisas. Vivemos num mundo evidente por si mesmo.

A primeira coisa a dizer a respeito do passado, é que ele nos fala no presente.

Não só os neuróticos mitificam o passado, pois é fora de dúvida que todo o mundo comete enganos desse tipo. Pode-se mesmo dizer que o engano é a regra.
Às vezes somos nós mesmos os críticos da nossa própria memória.
Críticas sobre a ênfase, com que enfeitamos, contestações quanto à freqüência que lhe atribuímos.
O que relatamos nunca é completamente correto.

Nem tudo o que acontece é experiência.
Aquilo que não tem função, não tem realidade. Está ausente.
Está apenas presente como fato bruto ou condição.

Palavras como "mitos" e "lembranças ilusórias" pressupõem a existência de um passado de uma só forma, a forma observada por uma tstemunha sem emoção no momento que o incidente ocorreu. Pois bem, esse passado destituído de preconceitos não existe.

O tratamento do paciente, por conseguinte, não consiste em liberá-lo do seu trauma, mas em liberá-lo do significado desse trauma por meio da liberação do contato perturbado.

O paciente precisa de um velho passado para poder escapar de um presente penoso. São fatos trazidos para cena para serem utilizados como esconderijo. Pedaços de realidade que retêm outra realidade.
As relações com outras pessoas são de importância tão primordial neste contexto que a psicopatologia pode ser chamada a ciência da solidão e do isolamento.

Cada um de nós pensa muito mais nas coisas por vir do que nas coisas já passadas.
O futuro dificilmente pode ser uma entida obscura e irresoluta. O futuro é real, tão real que acordamos de manhã condicionados pelo que acontecerá no dia.
Existe uma conexão muito estreita entre presente e futuro.

Se acordamos de manhã com dor de cabeça, sentimos essa dor com mais intensidade quando o dia tem um aspecto pouco promissor. Se, ao contrário, as expectativas do dia são agradáveis, quase esquecemos a dor de cabeça.

Para os neuróticos, o futuro torna-se inacessível, pois um futuro acessível significa um passado bem ordenado.

O Paciente Psiquiátrico- Esboço de Psicopatologia Fenomenológica.- Van Den Berg.