domingo, setembro 28, 2008

Fina Película

Postula-se, inicialmente, que a doença é uma essência, uma entidade específica indicada pelos sintomas que a manifestam, mas anterior a eles, e de um certo modo independente deles (...).

Fenômenos que levam a descrever sua doença em termos de funções abolidas: a consciência do doente está desorientada, obscurecida, limitada, fragmentada.
Mas este vazio funcional é, ao mesmo tempo, preenchido por um turbilhão de reações elementares que parecem exageradas e como tornadas mais violentas pelo desaparecimento das outras condutas.

Não se deve então ler a patologia mental no texto demasiadamente simples das funções abolidas:
a doença não é somente a perda da consciência, entorpecimento de tal função, obnubilação de tal faculdade.
No seu corte abstrato, a psicologia do século XIX incitava esta descrição puramente negativa da doença;
e a semiologia de cada uma era muito fácil:
limitava-se a descrever as aptidões desaparecidas; a enumerar, nas amnésias, as lembranças esquecidas, a pormenorizar nos desdobramentos de personalidades as sínteses tornadas impossíveis.
De fato, a doença apaga, mas sublinha;
abole de um lado, mas é para exaltar de outro;
a essência da doença não está somente no vazio criado,
mas também na plenitude positiva das atividades de substituição que vêm preenchê-lo.


Uma descrição estrutural da doença deveria então, para cada síndrome, analisar os sinais positivos e negativos, isto é, detalhar as estruturas abolidas e as estruturas realçadas.

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Matar um animal na caça é uma conduta;
contar, depois do fato, que se matou um animal, é uma outra conduta.
Mas no momento em que se espreita, em que se mata,
conta-se a si mesmo que se mata, que se persegue, que se espreita,
para poder, em seguida, contar a epopéia aos outros;
ter simultaneamente a conduta real da caça e a virtual do relato,
é uma dupla operação, muito mais complicada que cada uma das duas outras,
e que só é mais simples aparentemente:
é a conduta do presente, germe de todas as condutas temporais,
na qual se superpõem e se imbricam o gesto atual e a consciência de que esse gesto terá um futuro,
isto é, que mais tarde poder-se-á narrá-lo como um acontecimento passado.

Isto quer dizer que estas condutas aparentemente tão simples que constituem a atenção no presente, o relato, a palavra,
implicam todas numa certa dualidade, que é no fundo a dualidade de todas as condutas sociais.


Se, então, o psicastênico acha tão árdua a atenção no presente, é devido às implicações sociais que obscuramente ele encerra;
tornam-se difíceis para ele todas estas ações que têm um contrario
(olhar-ser olhado, na presença;
falar-ser falado, na linguagem;
crer-ser acreditado, na narrativa)
porque são condutas que se desdobram num horizonte social.

Na evolução, é o passado que promove o presente e o torna possível;
na história, é o presente que se destaca do passado, confere-lhe um sentido e torna-o inteligível.
O devir psicológico é, ao mesmo tempo, evolução e história.

Todo este jogo de transformações e repetições manifesta que, nos doentes,
o passado só é invocado para substituir a situação atual;
e que só é realizado na medida em que se trata de irrealizar o presente.

Pode-se então dizer que a vantagem encontrada pelo doente em irrealizar seu presente na sua doença tem por origem a necessidade de se defender contra este presente.

A doença tem como conteúdo o conjunto das reações de fuga e de defesa atravéss das quais o doente responde à situação na qual se encontra;
é a partir deste presente, desta situação atual que é preciso compreender e dar sentido às regressões evolutivas que surgem nas condutas patológicas,
a regressão não é somente uma virtualidade da evolução,
é uma conseqüência da história.

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Quando o paranóico reprova seu companheiro por enganá-lo, quando sistematiza em torno desta infidelidade todo um conjunto de interpretações, não faz senão censurar no outro o que censura em si mesmo.

Contradição imanente, na qual os termos se misturam de tal forma que o compromisso, longe de ser uma solução, é em última instância um aprofundamento do conflito.

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Mas será possível compreender tudo? A característica da doença mental, em oposição ao comportamento normal, não é exatamente de poder ser explicada, mas resistir a qualquer compreensão.

A consciência que o doente tem de sua doença é rigorosamente original. Nada mais falso, sem dúvida, que o mito da loucura, doença que se ignora;
o distanciamento que separa a consciência do médico da consciência do doente não é medido pela distância que separa o conhecimento da doença e sua ignorância.

Um fato tornou-se, há muito tempo, o lugar comum da sociologia e da patologia mental: a doença só tem realidade e valor de doença no interior de uma cultura que a reconhece como tal.

A doença, reconhecida como tal, vê-se conferir um status pelo grupo que a denuncia.
Nossa sociedade não quer reconhecer-se no doente que ela persegue ou encerra;
no instante mesmo em que ela diagnostica a doença, exclui o doente.


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Estas casas não tem vocação médica alguma,
não se é admitido aí para ser tratado,
mas porque não se pode ou não se deve mais fazer parte da sociedade.

O internamento que o louco, juntamente com muitos outros, recebe na época clássica não põe em questão as relações da loucura com a doença, mas as relações da sociedade consigo própria, com o que ela reconhece ou não na conduta dos indivíduos.

Por outro lado a loucura, no internamento, criou parentescos novos e estranhos.
Este espaço de exclusão que agrupava, com os loucos, os portadores de doenças venéreas, os libertinos e muitos criminosos maiores ou menores provocou uma assimilação obscura, e a loucura estabeleceu com as culpas morais e sociais um parentesco que não está talvez prestes a romper.

Certamente Pinel fez ruir as ligações materiais (não todas entretanto), que reprimiam fisicamente os doentes.
Mas reconstitui em torno deles todo um encadeamento moral, que transformava o asilo numa espécie de instância perpétua de julgamento: o louco tinha que ser vigiado nos seus gestos, rebaixados nas suas pretensões, contradito no seu delírio, ridicularizado nos seus erros:
a sanção tinha que seguir imediatamente qualquer desvio em relação a uma conduta normal.

E isto sob a direção do médico que está carregado mais de um controle ético que de uma intervenção terapêutica.
Ele é, no asilo, o agente das sínteses morais.


O essencial é que o asilo fundado na época de Pinel para o internamento não representa a “medicalização” de um espaço social de exclusão;
mas a confusão no interior de um regime moral único cujas técnicas tinham algumas um caráter de precaução social e outras de estratégia médica.

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As dimensões psicológicas da loucura não podem então ser reprimidas a partir de um princípio de explicação ou de redução que lhes seria exterior.

Fala-se muito da loucura contemporânea, ligada ao universo da máquina, e ao esmaecimento das relações afetivas diretas entre os homens. Este vínculo não é falso, sem dúvida, e não é por acaso que o mundo mórbido toma tão frequentemente, hoje em dia, o aspecto de um mundo onde a racionalidade mecanicista exclui a espontaneidade contínua da vida afetiva.
Mas seria absurdo dizer que o homem doente maquiniza seu universo porque projeta um universo esquizofrênico no qual se perde;
falso mesmo pretender que ele é esquizofrênico porque aí está, para ele, o único meio de escapar ao constrangimento de seu universo real.(...)
O mundo contemporâneo torna possível a esquizofrenia, não porque seus acontecimentos o tornam inumano e abstrato, mas porque nossa cultura faz do mundo uma leitura tal que o próprio homem não pode mais reconhecer-se aí.

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Esta relação que funda filosoficamente toda psicologia possível só pode ser definida a partir de um momento preciso na história da nossa civilização:
o momento em que o grande confronto da Razão e da Desrazão deixou de se fazer na dimensão da liberdade e em que a razão deixou de ser para o homem uma ética para tornar-se uma natureza.

Há uma boa razão para que a psicologia não posso jamais dominar a loucura; é que ela só foi possível no nosso mundo uma vez a loucura dominada e já excluída do drama.

A psicologia é somente uma fina película na superfície do mundo ético na qual o homem moderno busca a sua verdade- e a perde.
Nunca a psicologia poderá dizer a verdade sobre a loucura, já que é esta que detém a verdade da psicologia.

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Doença Mental e Psicologia- Foucault.