sexta-feira, setembro 11, 2009

Glamour (?)

O tema do amor, da paixão e as relações afetivo-sexuais daí advindas estão presentes não só nas músicas - não importa o estilo ou a época - mas nos filmes, na literatura, na poesia, nas novelas, na arte de um modo geral.
Esse tema também está presente nas rodas de conversas geralmente em forma de confissões pessoais ou através de uma disposição sempre curiosa de saber sobre a vida amorosa-afetiva-sexual das outras pessoas.
Parece que estamos sempre em constante monitoramento, principalmente nesses tempos de transitoriedade das relações.
Desse modo, não há como negar o quanto, ao mesmo tempo em que o amor pode ser considerado da ordem do privado, ele também está na ordem do público.

De que forma o amor se tornou um importante motor para a glamourização de nossas vidas, ou seja, de que maneira ele se constituiu num poderoso sentimento que dá brilho, graça, energia à nossa existência, impulsionando-nos a dar o nosso melhor para o ser que amamos, fazendo com que nos sintamos seres tão especiais por conta disso?

Jurandir Freire Costa comenta que vivemos em uma sociedade que nos incita a pensar que “sem amor estamos amputados de nossa melhor parte. ... Nada substitui a felicidade erótica; nada traz o alento do amor-paixão romântico correspondido”.

Por outro lado, este autor chama atenção para o fato de termos, na contemporaneidade, uma descomunal máquina de reparar amores infelizes.
É cada vez maior o número de “especialistas” nesse tema, advindos das mais diversas áreas do conhecimento, tais como médicos, sexólogos, psicanalistas, cognitivistas, behavioristas, religiosos, cartomantes, astrólogos, gurus e muitos outros.
Temos também uma série de livros de auto-ajuda que intencionam fazer as pessoas mais felizes em suas vidas amorosas.
No entanto, é interessante observar o quanto o gerenciamento da vida afetiva e suas inúmeras vivências estão pautadas por relações de poder, alimentando assim desigualdades entre homens e mulheres.

Vera Lucia Pereira Alves (2005), em sua tese de doutorado sobre livros de auto-ajuda que ensinam a como conseguir e manter um relacionamento amoroso, mostra o quanto esse tipo de material produz uma pedagogia voltada especialmente para as mulheres, exigindo delas a árdua tarefa de se responsabilizarem pela manutenção da relação. Essa entrega implica constantemente em procedimentos que visam manter “a chama do amor” sempre acessa (necessidade de agradar o amado, por exemplo). Em muitas revistas e livros recentes ou não, é possível observar uma série de conselhos destinados às mulheres, reforçando a idéia de que elas são possuidoras de uma capacidade natural que as coloca na posição de cuidadoras em potencial (da casa, dos filhos, do marido, dos pais, dos amigos, etc).

Para muitos, o amor é regido pela lógica da racionalidade. Jurandir Freire Costa lembra que a imagem do amor transgressor e livre de amarras é mais uma peça do ideário romântico destinada a ocultar a evidência de que os amantes, socialmente falando, são, na maioria, sensatos, obedientes, conformistas e conservadores. Sentimo-nos atraídos sexual e afetivamente por certas pessoas, mas raras vezes essa atração contraria os gostos ou preconceitos de classe, “raça”, religião ou posição econômico-social que limitam o rol dos que “merecem ser amados”. ...O amor é seletivo como qualquer outra emoção presente em códigos de interação e vinculação interpessoais.

Por outro lado, autores como Bauman (1995) pontuam a ambivalência do amor, colocando-o como incerto e inseguro. Talvez seja interessante pensar o quanto as relações amorosas são instáveis, ao contrário das inúmeras tentativas que fazemos de domá-las, confinando-as a um ideal de estabilidade – tanto do sentimento amoroso quanto da relação que se estabelece a partir daí.

Talvez a pergunta mais interessante para nossa reflexão não esteja pautada na busca insana sobre as origens do amor ou da paixão,
mas na problematização das formas pelas quais amamos, ou ainda como administramos nossos desejos afetivo-sexuais e quais as estratégias e pressões sociais que se estabelecem para que transformemos nossos sentimentos em materialidade relacional, através do casamento, da conjugalidade e de todos os outros compromissos daí advindos.


Jane Felipe- Do amor (ou de como glamourizar a vida): apontamentos em torno de uma
educação para a sexualidade.

sábado, agosto 22, 2009

Perdas...

Vincular o dito acontecimento a outros acontecimentos antigos, que o inscreva em uma história e o considere o substituto atual de um acontecimento passado não realizado, ou até inexistente, insituável no tempo. É justamente a história que confere a um acontecimento atual seu estatuto de ato portador de um sentido.

Seja o mais antigo no passado, seja o mais esperado no futuro, o acontecimento ideal constitui o ato não realizado de que todos nossos atos involuntários são substitutos.
Nossos atos involuntários têm um sentido, portanto, produzido por sua substituição por um ideal não realizado.

No lugar de um objeto real, o eu instala um objeto fantasiado, como se, para deter o ímpeto da pulsão sexual, o eu constatasse a pulsão enganando-a com a ilusão de um objeto fantasiado.
Mas como o eu consegue realizar esse truque?
Pois bem, para transformar o objeto real num objeto fantasiado, ele precisa, primeiro, incorporar dentro de si o objeto real até transformá-lo em fantasia.

Agora que o ser amado está dentro de nós, nós o tratamos com um amor ainda mais poderoso do que aquele que lhe voltávamos quando ele era real.
Pra que isso? Porque, tomando uma parte de mim, eu gosto dele como de mim mesmo.
Amar o outro é sempre amar a si próprio.

Assim, a pessoa real passa a não mais existir para nós senão sob a forma de uma fantasia, mesmo que continuemos a reconhecer nela uma existência autônoma no mundo.
Por conseguinte, quando amamos, sempre amamos um ser misto feito ao mesmo tempo do estofo da fantasia e da pessoa real que existe do lado de fora.
Um duplo fantasiado.
O amado real se converte em objeto fantasiado.

Deixemos bem claro que o eu é um objeto fantasiado por sua natureza ilusória, e um objeto sexual pelo prazer que suscita ao satisfazer parcialmente a pulsão.
De fato, o amor narcísico do eu por ele mesmo, enquanto objeto sexual, está na base da formação de todas as nossas fantasias.
Por isso, podemos concluir que em toda fantasia, mais exatamente em cada personagem fantasístico, o clínico deve identificar a presença do eu.

As pulsões de vida tendem a investir tudo libidinalmente a garantir a coesão das diferentes partes do mundo vivo.
Em contrapartida, as pulsões de morte visam o desprendimento da libido dos objetos, seu desligamento, e o retorno inelutável do ser vivo à tensão zero, ao estado inorgânico.

Tanto a pulsão de vida quanto a pulsão de morte visam restabelecer um estado anterior no tempo.
Seja a pulsão de vida que, ligando os seres e as coisas, aumenta a tensão,
seja a pulsão de morte, que aspira à calma e ao retorno a zero,
ambas tendem a reproduzir e a repetir uma situação passada.

Aqueles que nos falam, nossos pacientes, com freqüência tem tendência a repetir seus fracassos e sofrimentos, com uma força mais poderosa, às vezes,
do que a que nos leva a reencontrar os acontecimentos agradáveis do passado.

Em suma, o novo conceito introduzido por Freud com a segunda teoria das pulsões foi o da compulsão à repetição no tempo.
A exigência de repetir o passado doloroso é mais forte do que a busca do prazer no acontecimento futuro.
A compulsão a repetir é uma pulsão primária e fundamental, a pulsão das pulsões; já não se trata de um princípio que orienta, mas de uma tendência que exige voltar atrás para reencontrar aquilo que já aconteceu.
O desejo ativo do passado, mesmo que o passado tenha sido ruim para o eu, explica-se por essa compulsão a retornar aquilo que não foi concluído, com vontade de completá-lo.
Havíamos demonstrado que nossos atos involuntários eram substitutos de uma ação ideal e não consumada.
Por isso, uma compulsão à repetição seria o desejo de retornar ao passado e rematar, sem entraves e sem desvios, a ação que ficara em suspenso, como se as pulsões inconscientes nunca se resignassem a ser condenadas ao recalcamento.

O Prazer de Ler Freud- Juan David Nasio.

Nome à norma.

Abalar o nosso conceito sexual convencional é uma tarefa difícil. Raramente nos concentramos durante muito tempo no enigma da heterossexualidade- nossa atenção volta-se rapidamente para o problema da homossexualidade.
A heterossexualidade resiste bravamente a ser um problema como vários outros modos peculiares de sentir, agir, falar e pensar.

Falamos sobre a história das mulheres, mas com muito menos freqüência sobre a dos homens.
Porque a história dos homens não tem levantado as mesmas questões que a das mulheres.

A não ser que pressionados por vozes fortes e insistentes,
não damos nome à norma, ao normal e ao processo social de normalização,
muito menos os consideramos desconcertantes, objetos de estudo.
A análise do anormal, do diferente e do outro, das culturas da minoria, aparentemente tem despertado um interesse muito maior.


A Invenção da Heterossexualidade- Katz.

terça-feira, junho 23, 2009

Considerações...

É inteiramente concebível que a separação do ideal do ego do próprio ego não pode ser mantida por muito tempo, tendo de ser temporariamente desfeita.
Em todas as renúncias e limitações impostas ao ego, uma infração periódica da proibição é a regra.
Isso, na realidade, é demonstrado pela instituição dos festivais, que, na origem, nada mais eram do que excessos previstos em lei e que devem seu caráter alegre ao alívio que proporcionam.
As saturnais dos romanos e o nosso moderno carnaval concordam nessa característica essencial com os festivais dos povos primitivos, que habitualmente terminam com deboches de toda a espécie e com a transgressão daquilo que, noutras ocasiões, constituem os mandamentos mais sagrados.
Mas o ideal do ego abrange a soma de todas as limitações a que o ego deve aquiescer e, por essa razão, a revogação do ideal constituiria necessariamente um magnífico festival para o ego, que mais uma vez poderia então sentir-se satisfeito consigo próprio.
Há sempre uma sensação de triunfo quando algo no ego coincide com o ideal do ego.
E o sentimento de culpa (bem como o de inferioridade) também pode ser entendido como uma expressão de tensão entre o ego e o ideal do ego.
Atenhamo-nos ao que é claro: com base em nossa análise do ego, não se pode duvidar que nos casos de mania, o ego e o ideal do ego se fundiram, de maneira que a pessoa, em estado de ânimo de triunfo e auto-satisfação, imperturbada por nenhuma auto-crítica, pode desfrutar a abolição de suas inibições, sentimentos de consideração pelos outros e autocensuras.


Freud- Psicologia de Grupo e a Análise do Ego.

terça-feira, junho 09, 2009

Lazer e Prazer: Uso Social do Corpo

Da Diferença à Semelhança.

Os bens simbólicos de lazer/prazer (sexo, praia, bares, etc., bens consumíveis a custo relativamente baixo) fazem com que o estilo de vida seja representado como “melhor qualidade de vida”.
Quero dizer com isto que o aspecto hedonista da vida social é mais valorizado que as atividades de trabalho- coerentemente com a ênfase dada pelas camadas sociais dominantes ao sexo e ao corpo como objeto de consumo e de prazer-, representando, para estes indivíduos status, prestígio e poder.

A performance verbal do homossexual estereotipado (travesti ou bicha) foi apropriada e é usada freqüentemente pelos meios de comunicação em massa, bem como pelo teatro, como um bem simbólico de consumo. Poderia se dizer que essa constante divulgação não somente dá a impressão de que o homossexual existe em maior número, como também abre espaço para que possa publicamente existir. É um solvente de moralidade.

Em sua discussão sobre o desenvolvimento sócio-histórico da sexualidade, Foucault refere-se a dois momentos de construção do dispositivo de sexualidade a partir do século XIX.
O primeiro momento corresponde à necessidade de construir uma força de trabalho e de assegurar a reprodução desta.
Alcançando este objetivo, é desencadeado um segundo momento, que exige um novo tipo de trabalho e de homem.
Segundo Foucault, a exploração do trabalho assalariado não exige do corpo as mesmas restrições violentas e físicas.
Da mesma forma a política do corpo não mais requer a supressão do corpo ou sua limitação ao papel exclusivo da reprodução.
O uso social do corpo adquire novos domínios.

Cria-se um novo espaço para a cultura do corpo, com a ampliação de algumas ocupações e a produção de novas, dirigidas às atividades de lazer e prazer.

A dimensão e o significado das relações afetivas e amorosas merecem discussão mais aprofundada. A produção literária e cultural a respeito do homossexualismo tende a focalizar o aspecto sexual e sensual da união, excluído o movimento afetivo e erótico (como se isso fosse possível, mesmo na relação tida como impersonal sex). Enfatizam-se a promiscuidade, os programas de “pegação”, a “transa”, limitando a relação homossexual ao contato físico, genital, e ao prazer orgástico.

Esta ênfase dada ao sexo, e ao sexo homossexual em particular, vem reforçar a colocação de Foucault quanto à necessidade de desmistificar a “hipótese repressiva” e encarar a sexualidade como instrumento de poder.

“A cultura do corpo”, objetivando unicamente a preparação e adequação deste como objeto de consumo sexual, esvazia o corpo de sua dimensão afetiva e erótica.

O Homossexual Visto por Entendidos- Carmen Dora Guimarães

"Descobertas"


A Produção do Mito do Silêncio


Qualquer investida na área da sexualidade, principalmente na nossa sociedade, é envolvida no mito do silêncio que a reveste.
E, com referência à categoria social homossexual, o mito da anormalidade reforça este silêncio, fazendo com que pareça impenetrável.

Foucault mostra que a partir do século XIX iniciam-se as “heterogeneidades sexuais” e um movimento centrífugo em relação à monogamia heterossexual.
São as “sexualidades periféricas” que questionam a “sexualidade regular”, formulando-se uma divisão no campo da sexualidade, refletida na construção de novas categorias “contra a natureza”, “perversas”, “desviantes”, “anormais”, etc., em oposição às categorias do “normal” e do “natural”.

Poderíamos perguntar, escreve Foucault, se esta “multiplicação” é devida a um relaxamento das regras ou se, ao contrário, é prova de um regime de controle mais severo.
Parece- responde o autor- que a questão não se coloca em termos de maior ou menor repressão, mas sim na forma pela qual o poder se exerce, não se restringindo apenas à sua função de interdição.

A partir do século XIX, os mecanismos de poder em relação ao sexo se deslocam da Igreja e da Lei para a hegemonia da Educação e da Ciência. Será na prática de uma sciencia sexualis que se produzirá a verdade sobre o sexo, sendo a confissão a técnica mais valorizada nesta produção.

A hipótese geral proposta por Foucault é de que a sociedade não se recusa a conhecer o sexo, muito pelo contrário, aciona todo um aparelho para produzir um discurso ‘verdadeiro’ e regulamentado.

É importante observar nesta proposta, que o discurso não é unilateral, havendo também discursos de “retorno”,(...) em que o homossexualismo fala de si mesmo, reivindicando sua legitimidade ou “naturalidade” com o mesmo vocabulário e as mesmas categorias empregadas para “desqualificá-lo”.

Assim, a necessidade de explicar a opção sexual é dos agentes sociais em questão, permintindo-nos verificar como a "pedagogia da sexualidade" se reproduz nas vivências cotidianas particulares do presente, ao mesmo tempo em que essas também a reproduzem.

A ideologia pedagógica que informa a socialização de papéis sexuais cumpre uma dupla função: orientar o indivíduo, antecipadamente, para as ações apropriadas (função prescritiva) e controlar e inibir as ações não apropriadas (função proscritiva).

Em outros termos, é o contexto relacional que vitaliza e legitima as normas e regras e nomeia determinadas ações como sendo "desviantes", situando tanto a ação quanto um dos participantes da ação "on the other side".

O componente sexual "desviante" do comportamento individual é visto como determinante de sua identidade social- estabelecendo-se como critério de discriminação para as demais ações sociais.

A homossexualidade é justificada por ser um destino sobre o qual não se tem controle ou mesmo escolha ("vítima" da educação dada pelos pai, mãe "dominadora", pai "submisso", "ausente", etc), ou se apresenta como uma "natureza singular".
Em qualquer dos casos, as categorias e elaborações denotam um "discurso de retorno!, articulado com a estratégia de poder.

A norma "ser gay, tudo bem, mas não conte para ninguém".

Evitar essa questão significa uma completa separação da vida profissional e social. Siginifica obedecer as normas heterossexuais em público e desobedecê-las em momentos privados.
Ainda há um sentimento de fracasso por não viver de acordo com regras homossexuais. Essa divisão de identidade fez com que para muitos homens, ser gay significasse apenas fazer sexo.

A trajetória comumente estabelecida- de homossexual "enrustido" no "mundo heterossexual" para "assumido"- significou, para alguns, a expressão pública da categoria homossexual estereotipada.
O comportamento e as atitudes, tanto sociais como sexuais, reproduzem a forma caricatural do papel de gênero feminino- o "efeminado".
O "ser homossexual" mostra-se visível, na forma e no conteúdo da fala, nos gestos e nas roupas- como uma declaração pública da identidade homossexual "assumida".

Assim, caberia perguntar: até que ponto a representação social, o estilo de vida e a visão de mundo dos indivíduos indicariam uma ruptura com o "mundo heterossexual", ou, pelo contrário, demonstraria um processo análogo de sucessivas aproximações?

Esta proposição tem por objetivo indicar a especificidade de cada relação e mostrar que a categoria homossexual compreende uma diversidade de ações sociais, tanto sexuais como não sexuais.

O problema da "descoberta" da identidade homossexual é constante, principalmente porque o estigma, uma vez que é atribuído, é um marco permanente e irremovível de culpa e autonegação da própria identidade.

O Homossexual Visto por Entendidos- Carmem Dora Guimarães.

sábado, junho 06, 2009

A Inocência e o Vício- introdução.

A subjetividade é um efeito das linguagens, das práticas lingüisticas que determinam suas regras de formação e reconhecimento privado e público.

Cultura significa inclusão e exclusão de certas possibilidades expressivas do sujeito e seu desejo. Estruturamos nossas subjetividades de acordo com os ideais de eu ou subjetividades modelares pressupostas na descrições do que "deve ser o sujeito" e que fazem parte de toda recomendação ética.
Acontece que a estabilidade da cultura, sem a qual não existiriam recorrência de regras e tampouco subjetividades que se reconhecessem como subjetividades, dá se às custas de diferenças e oposições ao que não é idêntico.
Uma cultura só reconhece sua identidade distinguindo-se de outras.
O mesmo ocorre com a identidade do sujeito e, finalmente, com os ideias de eu.
Para que um ideal de eu mantenha-se operante é preciso que existam casos ou ocorrências subjetivas que contrariem ou não cumpram os requisitos exigidos para a realização do ideal.
Assim, a construção de subjetividades ideais implica, ipso facto, a figura da antinorma ou do desvio do ideal, representada pelos que não podem, não sabem ou nao querem seguir as injunções ideais.
A esses, diz Freud, é reservada a posição de objeto do desejo de destruição da maioria, que em nme da norma ideal outorga-se o poder de atacar ou destruit física ou moralmente os que dela divergem ou simplesmente se diferenciam.
É o mecanismo da rivalidade em torno do "narcisismo das pequenas diferenças", uma das molas de sua interpretação do fato cultural.

Apresentando certas práticas sexuais como anormais, doentes, antinaturais ou moralmente incorretas, a linguagem da discriminação estigmatiza numerosos sujeitos que se afastam dos ideais sexuais da maioria.

Viver sendo considerado no dia-a-dia como "homossexual" é um fardo moral e psíquico extremamente custoso para muitos homens.
Uma vez etiquetados assim são constantemente identificados por suas preferências sexuais, as quais por seu turno são moralmente desaprovadas
, seja pelo ridículo seja pela classificação no rol das patologias médico-psiquiátricas ou mesmo psicanalíticas.

Grande parte não encontra respostas satisatórias para suas aspirações eróticas nos modelos de identidade sócio-sexuais disponíveis, isto é, nos modelos "heterossexuais", "homossexuais" ou "bissexuais".

Homoerotismo é uma noção mais flexível que descreve melhor a pluralidade das práticas ou desejos dos homens same-sex oriented.
Interpretar a idéia de "homossexualidade" como uma essência, uma estrutura ou denominador sexual comum a todos os homens com tendências homoeróticas é incorrer a um grande erro.
Penso que a noção de homoerotismo tem a vantagem de tentar afastar-se tanto quanto possível desse engano.
Primeiro, porque exclui toda e qualquer alusão a doença, desvio, anormalidade, perversão etc., que acabaram por fazer parte do sentido da palavra "homossexual".
Segundo, porque nega a idéia de que existe algo como uma "substância homossexual" orgânica ou psíquica comum a todos os homens com tendências homoeróticas.
Terceiro, enfim, porque o termo não possui a forma substantiva que indica identidade, como no caso do "homossexualismo", de onde derivou o substantivo "homossexual".
O último aspecto é importante por seus efeitos imaginários.
Porque usamos na linguagem ordinário o substantivo "homossexual" terminamos reféns de nossos hábitos.
O emprego freqüente do termo leva-nos a crer que realmente existe um tipo humano específico designado por esse substantivo comum.
Vamos além, acreditamos que a peculiaridade apresentada por esse tipo é uma propriedade permanente da natureza de certos homens, que independe das descrições que a tornam visível e plausível aos nossos hábitos lingüísticos.


Quando emprego a palavra homoerotismo refiro-me meramente à possibilidade que têm certos sujeitos de sentir diversos tipos de atração erótica ou de se relacionar fisicamente de maneiras diversas com outros do mesmo sexo biológico.
Em outras palavras, o homem homoerótico não é aquele que possui um traço ou um conjunto de traços psíquicos que determinam a inevitável e necessária expressão da sexualidade homoerótica em quem quer que os possuísse.
A particularidade do homoerotismo em nossa cultura não se deve à pretensa uniformidade psíquica da estrutura do desejo comum à todos; deve-se, sugiro, ao ato de ser uma experiência subjetiva moralmente desaprovada pelo ideal sexual da maioria.
Dizer isto é dizer que numa cultura como a nossa, voltada para a idéia de realização afetiva e sexual, privar certos sujeitos dessa realização é extremamente problemático.
Tanto mais quanto os mesmos sujeitos foram ensinados a desejar esse tipo de satisfação.

O emprego do termo visa sobretudo distanciar o interlocutor de sua familiaridade com a noção de "homossexualidade".

A palavra "homossexual" está excessivamente comprometida com o contexto médico-legal, psiquiátrico, sexológico e higienista de onde surgiu.
O "homossexual", como tento mostrar, foi uma personagem imaginária com a função de ser a antinorma do ideal de masculinidade requerido pela família burguesa oitocentista.

Com a introdução do termo homoerotismo, tomado de Ferenczi e que teve o assentimento de Freud, tive o intuito de apontar para aspector do problema que permanecem oculto enquanto permitimos usando as noções de "homossexualismo", "homossexual", "homossexualidade".

Nunca perguntamos- até porque é assim que formamos crenças- o que nos levou a crer que existe "algo de muito importante", "de muito fundamental" para nossa vida moral no fato de aprendermos a dividir os humanos em "homossexuais" e "heterossexuais".

Não existe objeto sexual "instintivamente adequado ao desejo" ou vice-versa, como reitera a psicanálise.
Todo objeto de desejo é produto da linguagem que aponta para o que é "digno de ser desejado" e para o que "deve ser desprezado" ou tido como indiferente; como incapaz de despertar excitação erótica.

Por que imaginamos que exista uma atração única, uniforme e suficiente para definir a identidade sexual, social e moral de uma pessoa por trás de tantos desejos e condutas díspares?
Por acaso tal atração é feita de uma "mesma substância", reconhecível em suas propriedades estáveis e capaz de reproduzir-se e repetir-se emocinalmente em pessoas diversas?

No século XIX, médicos, sexólogos, psquiatras, juristas, etc, definiam de várias formas o "homssexual".
Eram questões jurídicas-legais e tratavam dos limites histórico-sociais do ideário burguês, então triunfante e em pleno apogeu.
Tratavam de "até onde a idéia de igualdade, liberdade e direito à privacidade podia ser respeitada" sem que o modo de vida burguês fosse contestado ou posto em cheque. Por conseguinte a preocupação com a "verdadeira homossexualidade" na versão "adâmica" do "homossexualismo natural", reflete a obssessão criada pelas ideologias instintitivistas, evolucionistas e racistas do século XIX para justificar o modelo da sexualidade familiar, conjugal e heterossexual enquanto fortaleza da moral privada e signo da superioridade da cultura burguesa frente as outras classes sociais e aos povos colonizados.

Concordamos, porém, em favor do esclarecimento da discussão, que a "homossexualidade" seja um fenômeno geneticamente determinado. A questão no caso seria: por que tamanho interesse nisso? Por que seria indispensável encontrar genes responsáveis pelo fato de homens se sentirem eroticamente atraídos por outros homens?
Por que não nos interessamos em pesquisar que genes são responsáveis pela "verdadeira musicalidade dos verdadeiros músicos" à fim de distingui-los dos "músicos de ocasião" ou dos "músicos que aceitam fazer música e que se comportam como músicos, mas que não são verdadeiros músicos porque lhes faltam a verdadeira sensibilidade musical e os genes da musicabilidade?" Por que não temos interesse em fazer o mesmo com a "futebolisticidade"?

A atração que em nossa sociedade sentimos pela diferenciação entre "homossexuais" e "heterossexuais", a ponto de imaginar que não podemos viver sem ela, é tão "naturalmente" determinada quanto a divisão entre gentios e cristão, católicos e protestantes, castos e libertinos, metropolitanos e colonizados, ocidentais e orientais, civilizados e primitivos, etc. (...)
A busca de uma constituição genética particular aos sujeitos com inclinações homoeróticas só pode ter, então, um objetivo moralmente normativo. (...) Por que procurar legitimar uma determinada moral sexual recorrendo à benção da natureza?

Jamais fazemos o exercício imaginativo de supor como seria a vida de alguém que, malgrado sua vontade, fosse permanentemente obrigado a ser reconhecido por sua preferência erótica e não por outras qualidades pessoais que quisesse ver apreciadas e respeitadas pelos outros. No entanto seria interessante imaginar como reagiriam certos homens heteroeroticamente orientados, caso tivessem que conviver com a exposição pública de algumas de suas tendências sexuais, costumeiramente resguardadas do olhar público por nossos hábitos culturais.
Não custa nada perguntar como esses homens reagiriam se tivessem que responder socialmente, não enquanto maridos, pais, profissionais, artistas, trabalhadores, cidadãos, etc., e sim enquanto "praticantes do coito anal", "adeptos do sexo oral", "masturbadores costumazes" ou mesmo "usuários freqüentes de filmes e revistas pornográficas".
O exemplo nada tem de caricato. Ele é apenas ilustrativo do respeito que dedicamos à privacidade da maioria heteroerótica e do desrespeito com que tratamos a preferência sexual das minorias.


Enquanto sujeitos da linguagem e da sexualidade não podemos querer deixar de falar e desejar, mas enquanto sujeitos da vontade podemos redescrever moralmente as conseqüências daquilo que não pudemos escolher.

A Inocência e o Vício- Jurandir Freire Costa.

A Inocência e o Vício- trechos.

Ao meu ver, o “homossexual típico”, como toda figura de exclusão, é um puro estereótipo do preconceito. O “homossexual típico” é uma realidade tão palpável quanto o português da anedota, o “judeu típico”, ou de maneira mais inocente, o “paulista típico para o carioca, e o “carioca típico”, para o paulista.
O que existe de típico no homossexual é a crença de que todo sintoma ou signo do desejo homossexual é sinal de “homossexualismo”.

Por que, pergunto, não perdemos tempo e fostato tentando isolar e caracterizar a estrutura heterossexual? Pergunto por que não nos inquietamos com a presença da heterossexualidade entre homens e mulheres?

A heterossexualidade é egossintônica, com respeito ao imaginário.
Ou seja, ninguém procura análise queixando-se de “heterossexualismo”.
Conseqüentemente, porque não nos perguntamos como alguém é ou torna-se heterossexual, encerramos o assunto e damos a questão por resolvida.
Sabemos que existem tantas maneiras de ser-se heterossexual quanto permite a fantasia de cada um. Não pensamos em reduzir a heterossexualidade em uma única estrutura.

Hoje em dia, para a maioria dos sujeitos, ser ou não ser homossexual é uma questão mais aflitiva ou mais vital do que a de ser ou não ser herege, ser ou não ser religioso, ser ou não ser revolucionário, ser ou não ser corrupto, ser ou não ser oportunista e mesquinho, ser ou não ser generoso e tolerante para com o outro, etc.

.............
Se observarmos com cuidado, veremos que o sujeito com inclinações homoeróticas não dispões de modelos identificatórios que possas compatibilizar essas inclinações com o ideal da ética sexual conjugal.
Resta-lhe, então, identificar-se com o que sobra.
E o que sobra é a figura do homem manqué, do homossexual, com um “a-menos” da virilidade fálica imposta pelo ideal moral, com o qual, de resto, a maioria dos homens assim rotulados sonha e aspira.

Em nossa cultura, toda linguagem amorosa, que é essencialmente a linguagem do amor romântico, foi imaginariamente rebatida sobre o casal heteroerótico.
Da primeira “paquera” até o altar e depois ao berçário, tudo o que podemos dizer sobre o amor está imediatamente associado ás imagens do homem e da mulher.

O vocabulário do homoerotismo já foi codificado por médicos, religiosos, psicanalistas e pela Vox populi. Nos costumes leigos, científicos e literários, homossexual e relação homossexual pertencem à gramática da devassidão, obscenidade, pecado, hermafroditismo, promiscuidade, bestialidade, inversão, doença, falta de vergonha, sadismo, masoquismo, passividade, etc.

.............
Assim, aquilo que é chamado por alguns autores de traços de personalidade ou de estrutura psíquica da homossexualidade, chamo de resposta psíquica ou estratégia defensiva posta em marcha pelos sujeitos diante das injunções morais desqualificantes produzidas pelo preconceito.

E, se na aparência o estilo de vida de certos homossexuais ou grupos de homossexuais mostra-se extravagante aos nossos olhos, isso não se deve a nenhuma perversão intrínseca à estrutura homossexual, mas ao modo de vida de minorias sexualmente discriminadas.

Ouso mesmo avançar uma hipótese, ainda em germe, mas que suponho frutífera: há provavelmente mais risco de perversão na montagem social que opõe heterossexuais a homossexuais do que nas chamadas relações homossexuais. (...)
Foi assim com o homossexualismo sob o nazismo e o stalinismo; foi assim com os grupos de extermínio que, no Rio de Janeiro, metralharam, degolaram e incendiaram travestis com gasolina para depois jogar seus corpos em montes de lixo.

.............
Diante da opressão do ideal sexual conjugal e da privação de um vocabulário social aprovado para a expressão dos sentimentos homoeróticos, surgiram pelo menos três pautas de condutas possívels como modelo de reação ao homossexual à cultura da privação. Deixo de lado, no momento, a resposta da “militância gay” ou a resposta de certos setores da elite cultural e social por não considerá-las reações passivas e inconscientes ao preconceito, e sim respostas críticas e afirmativas, quaisquer que sejam, aliás, o alcance, a eficácia ou limite de cada uma delas.

- Camp é a palavra da gíria americana para significar o comportamento exagerado, escandaloso, propositalmente efeminado de certos homossexuais ou de certos círculos de homossexuais. Diz-se que alguém tem esse comportamento quando procura romper as regras do bom-tom ou escandalizar o preconceito, acentuando maneiras mal vistas ou discriminadas.
No entendimento de Sontag, o camp é uma reação ao domínio opressivo da “herossexualidade” pela exacerbação de estereótipos.
Algo assim como o teatro de Brecht onde o excesso denuncia a ilusão.
As maneiras de agir e falar não significam desprezo ou desqualificação moral dos termos usados, e sim uma retomada lúdica e sarcástica do que o preconceito leva a sério.
(...) Assim, tendem a reforçar cada vez mais o que o preconceito quer ver: o “homossexual” é um bufão da natureza; um bobo da corte, em meio à “nobreza heterossexual”.

- A outra resposta do homoerotismo ao social é a criação da cultura clandestina do gueto. O gueto é formado por um circuito de locais de encontro exclusivo dos homossexuais, que vão de praias a pontos de prostituição masculina. Nesses locais, alguns extremamente sórdidos, os indivíduos gozam da “liberdade” que a discriminação permite. Mas, justamente por tratar-se de uma liberdade vigiada e concedida, carrega todas as seqüelas do preconceito. (...)
Por fim, participando da cultura do gueto, sobretudo nas idas a saunas, boates e locais de prostituição, todos se sentem promíscuos e convivendo com a promiscuidade, realizando, assim, a imagem do “homossexual” criada pelo estereótipo do preconceito.

Enquanto o gueto mostra as relações amorosas do prisma do anonimato, da parcialização do contato, da burocratização do orgasmo ou da exclusiva dimensão da sensualidade, o amor romântico é mostrado a céu aberto, respirando o ar fresco e vendendo eloqüência, sob refletores coloridos e musicados em dolby stereo. Não há o que discutir: entre a sujeira, a tristeza, a escuridão e a ilicitude de um e a alegria luminosa e loquaz de outro a escolha está feita.
(...) Na distância intransponível entre o ideal sexual da maioria e a efetiva condição homossexual da minoria instalam-se a aflição, a ansiedade, o ressentimento e o sentimento de vida abortada, o que leva os sujeitos às mais extravagantes posições subjetivas na vida amorosa.

- O estilo de vida da ansiedade, da depressão crônica e dos acting-out sexuais é a terceira resposta do homoerotismo à hegemonia opressiva da heterossexualidade conjugal.

.............

Jurandir Freire Costa- Conjugalidade, ética sexual e parceria homoerótica.

sexta-feira, junho 05, 2009

Aprendendo a Tornar-se Homossexual.

Os indivíduos, ao organizarem a percepção da diferença de gêneros, isto é,
da diferença sócio-sexual entre masculino e feminino ou entre meninos e meninas,
organizam de imediato a percepção da hierarquia de valores que leva à interpretação do contato homoerótico como algo "diferente", algo da ordem da exceção.
De início, a relação homoerótica parece apontar simplesmente para a descoberta da excitação sexual.
Nessa etapa, o sentimento de que fazem algo proibido é igualmente válido para jogos sexuais com meninas.
Porém, enquanto as relações heteroetóticas recebem um veto parcial dos adultos, ou seja, são proibidas só nessa fase da vida, as relações homoeróticas recebem um veto total e absoluto.
Logo que são descobertas pelos adultos, são descritas como indesejáveis e desqualificadas do ponto de vista moral. (...)
Em outras palavras, aprender o que é sexo é aprender ao mesmo tempo o que é proibido e permitido em matéria de sexo.

A essas diversas formas de interdição, permissão e prescrição de condutas e desejos, chamamos ética.
São as éticas, portanto, que regem as práticas sexuais e os desejos nelas implicados.

Não existe, na perspectiva psicanalítica, nenhuma sexualidade humana estável, dada, natural ou adequada a todos os sujeitos.
Todas as sexualidades instituídas, com seus valores e hierarquizações, são, para Freud, "sintomáticas", na acepção psicanalítica do termo.

As éticas sexuais representam os limites que nos são oferecido para que possamos ter prazer sexual, sem comprometer a vida do próximo e sem impedi-lo de, por seu turmo, poder continuar sendo sujeito do próprio desejo, e não mero instrumento ou objeto do desejo do outro.

Os adultos, em nossa cultura, por força do sistema de interdições que lhe é própria, não mostram jamais atos como a masturbação, o coito ou quaisquer outras práticas sexuais.
As emoções ligadas ao sexo permanecem vagas e indeterminadas até que, na puberdade e na idade adulta, novas regras de uso, agora apoiadas em exemplos de conduta, venham esclarecer sua significação.
A idéia de que a "experiência sexual" é, pela própria natureza, imprecisa e indizível, já faz parte da definição que damos, em nossos hábitos linguisticos, do que são os sentimentos e sensações sexuais.

A divisão do espaço social entre o público e o privado, promovida pela revolução burguesa, leva-nos a identificar a vida afetivo-sexual como sinônimo da "verdadeira essência do indivíduo".
A idéia de que sem plena satisfação da sexualidade genital estamos privados da mola mestra da "realização" individual integra nosso credo moral básico.
Hoje somos "constrangidos" a ser "sexualmente felizes" como em outras épocas muitos foram coagidos a renunciar e a negar o prazer que a sexualidade pode dar.


No entanto, o culto moderno à sexualidade genital como fonte de "realização da felicidade pessoal", em suas "baixas origens" esteve ligado ao enorme esforço ideológico operado no século XIX para desqualificar as sexualidades marginais em prol da sexualidade reprodutiva.
O atual monopólio imaginário da genitalidade na produção e normatização de "sexualidades e felicidades" é um filho emancipado do feitiche teórico da "lei institiva e natural da reprodução", criado pela burguesia oitocentista da Europa.
Desse berço nasceu o "sexo rei", para tomar a expressão de Foucault que, desde então, vem se tornando cada vez mais "absoluto" em seu reinado.

Por essa razão, o controle e a regulação da sexualidade genital passaram a ter a enorme importância que têm na vida de cada um de nós.
A sexualidade genital tornou-se sinônimo de nossa autêntica e profunda identidade ou do núcleo de nosso eu.
As preferências, permissões ou proibições que gravitaram em torno dela tranformaram-se em indicadores das diversas maneiras que têm os indivíduos de reconhecer "o quê", e "quem são eles".


Os que cumprem suas normas realizam a "essência humana"; os que se desviam do bom caminho traem, por incompetência, invalidez ou perversidade, as "leis" da natureza, da cultura, da linguagem, do parentesco, da decência, da moralidade ou qualquer outra "lei", inventada conforme a ideologia do momento.

Em síntese, as regras identificatórias para a construção das sexualidades humanas confundem-se, em nosso hábito cultural, com as regras de construção da "identidade humana".


Assim, as regras identificatórias das disntinções sócio-sexuais reproduzem permanentemente as diferenças e a hierarquia dominantes e são transmitidas de modo a parecerem estáveis, naturais e universalmente válidas para todos os sujeitos.

Depois de Kinsey ficou razoavelmente demonstrado que não existe vínculo necessário entre comportamento sexual e identidade sexual.
De acordo com as estatísticas de Kinsey, "37% dos homens entrevistados tinham tido experiências homossexuais, mas menos de 4% eram exclusivamente homossexuais e mesmo estes não exprimiam necessariamente uma identidade 'homossexual'."

O comportamento pode fazer parte da identidade, mas a identidade não pode ser contida no comportamento.
Identidade é um termo genérico que designa tudo aquilo que o sujeito experimenta e descreve como sendo ou fazendo parte do eu.

A diversidade das práticas, condutas e desejos homoeróticos é enorme e extremamente difícil de ser tipificada, seja pelo observador, seja pelo sujeito.

O elemento central na definição da identidade "homossexual" é a presença do desejo homoerótico.
Mesmo assim, a simples admissão da atração sensual por homens, que é uma modalidade do desejo homoerótico, não é suficiente para caracterizar a "homossexualidade" daqueles que a experimentam.
Mais decisiva é a presença da atração terna, ou seja, do apaixonamento, que significa algo além do "puro tesão".

A "identidade homossexual" é predominantemente estabelecida a partir do sentimento vago e difuso de desvio ou diferença em relação ao que se julga ser a "identidade heterossexual", identidade esta igualmente difícil de ser descrita em seus atributos.

O relevo dado ao desejo erótico em vez de ao comportamento erótico mostra a individualização e interiorização das regras de construção da identidade sexual. Enquanto os comportamentos apontam para a vertente pública e visível da orientação social da sexualidade, o desejo volta-se para a privatização da realização ou frustração sexuais.
O “homossexual moderno” converteu-se, assim, em um indivíduo preso a um duplo sistema de referências, para a elaboração de sua subjetividade.
De um lado, acha-se às voltas com as regras da satisfação do desejo que o orientam no sentido de buscar formas singularizadas de realização sexual; de outro, encontra-se atrelado ao velho sistema de crenças que estigmatiza o homoerotismo como uma preferência sexual doente, imoral, deficiente ou desviante em relação à verdadeira finalidade do “instinto”.
Essa duplicidade de injunções é responsável pela desorientação sexual de muitos indivíduos.

Quanto mais os indivíduos se aproximam do modelo do militante gay menos tendem a ter conflitos e mais tendem a assumir publicamente a “identidade homossexual”.
Como mostrou Weeks (1991), reforçar a perceção da diferença nesses termos, significa, por um lado, alinhar-se à idéia tradicional de que realmente existe uma identidade “homossexual” à parte e, por outro, reafirma a idéia de que o mais importante predicado da “essência humana” pertence à ordem da sexualidade genital, ou melhor, à divisão dos indivíduos conforme suas preferências homo ou heteroeróticas.

No entanto, como assinala o mesmo Weeks, seguindo Foucault, a tônica posta na identidade “homossexual” teve a função de reverter a direção do preconceito, criando uma contradiçãpo no esquema cognitivo do senso comum.
Debatendo publicamente temas como os “direitos dos homossexuais” a ideologia gay acentuou positivamente o que o estigma havia desvalorizado.
O modelo de identidade gay, é assim, o modelo de identidade estratégica de resistência.

Dando um enorme peso à sexualidade na definição da identidade do sujeito, a subcultura gay não atende, como seria previsível a pluralidade de aspirações dos sujeitos homoeroticamente inclinados.

Recusando as definições prévias do “homossexualismo”, o movimento gay procurou criar uma alternativa identificatória aos modelos ainda hoje oferecidos aos indivíduos homoeroticamente inclinados, qual seja, os modelos da “mulherzinha” e do “viado”. Na ideologia gay, advoga-se a idéia de que homens que se sentem atraídos por outros homens nem por isso perdem suas características masculinas. (...) É possível, a partir desta ideologia, imaginar modelos de “identidade masculina” onde o atributo da atração pelo mesmo sexo não exija, como conseqüência, a renúncia a esta mesma identidade.

Depois da AIDS, tudo o que se desenhava em círculos minoritários do campo cultural ganhou uma publicidade inusitada. Através de depoimentos pessoais, livros e filmes, sujeitos portadores do vírus ou de sintomas da doença passaram a falar livremente de suas experiências sexuais e amorosas para o público “heterossexual”, sem constrangimento ou censura.

(...)

O Homoerotismo Diante da Aids
A Inocência e o Vício- Jurandir Freire Costa

sábado, maio 30, 2009

Imperturbáveis

A cura da raiva está em sair para uma longa caminhada; detê-la no início, antes que ela alimente mais raiva;
relaxar a musculatura; inspirar e expirar fundo,
ver tv, ir ao cinema, ler; anotar os pensamentos hostis tão logo surjam-
fazer tudo para “esfriá-la”.
A vacina contra a preocupação está em desviar a atenção; não ruminar; deter a “espiral de ansiedade” enquanto é tempo (...).
Para afastar a tristeza é melhor distrair-se: sair para comer ora, ir a um jogo, ir ao cinema, fazer trabalhos filantrópicos com populações carentes ou então ver TV, jogar vídeo-game, ler, fazer um quebra-cabeça, ir dormir; fantasiar a respeito da viagem dos sonhos, fazer aeróbica, criar “pequenos triunfos” (como cumprir uma tarefa doméstica ou um dever há muito adiados), vestir-se bem, maquiar-se.
Pesquisas feitas por psicólogos da Universidade do Texas mostraram que, diante de uma lista de “opções para afastar a mente de uma coisa triste, como o enterro de um amigo”, as pessoas tendem a escolher atividades melancólicas;
mas, reza o programa, nada de tristeza...

Miremo-nos no exemplo das pessoas “imperturbáveis” que, quando submetidas a realidades angustiantes, tendem a acionar mecanismos que as “higienizam”.
Os motivos últimos que justificam o controle dos impulsos são a preservação de relacionamentos valiosos,
a valorização crescente da inteligência emocional no mercado de trabalho
e os danos causados à saúde física pelas “amigdalites corticais”.
Em outras palavras, ele é vacina contra três tipos de males:
as “fendas conjugais”, que ocorreriam quando um dos parceiros padece de deficiência emocional;
a superada administração autoritária, uma vez que no campo da administração de empresas descobriu-se que a harmonia grupal e a administração cordial aumentam a produtividade;
os distúrbios psicossomáticos, fontes de prejuízos de hospitais e seguros de saúde pela desatenção às necessidades emocionais.

Ao contrário do que pode parecer, não se trata do elogio da emoção, mas do elogio da razão como instrumento de adaptação das pessoas aos ditames sociais: o que se quer é eliminar emoções disruptivas,
intento formulado por meio de expressões de aparência inócua como: “levar inteligência à emoção”,
“levar cognição para o campo do sentimento”,
“evitar o sentimento que esmaga toda a racionalidade”,
neutralizar o “poder que a emoção tem de aniquilar a razão”.
Dominar as emoções seria meio para não fazer “escolhas errôneas sobre quem devo desposar e que emprego arranjar”,
já que ter sucesso na vida é conseguir um casamento duradouro e um bom emprego.

As referências a instâncias econômicas, sociais e políticas primam pela abrstração: as pressões econômicas e sociais não passam de “preço que a modernidade cobra às crianças”, situação contra a qual nada se pode fazer exceto suprir, com programas educacionais de correção ou prevenção, as lacunas psicológicas que ela amplia.

Fala-se em desenvolver um “núcleo de maleabilidade” que garanta a sobrevivência em situações adversas, como são as da vida na pobreza.
Este verdadeiro “jogo de cintura” que se quer dos pobres vem formulado nos seguintes tempos: “ as chamadas população de risco poderiam obter ganhos, do ponto de vista clínico, se soubessem lidar com os custos emocionais dessas tensões”.

Levada às últimas conseqüências, a palavra de ordem “smile”, um dos lemas mais caros à cultura dominante norte-americana,
orienta propostas de produção de otimistas costumazes, verdadeiros bobos alegres que se mostram felizes diante de cenas de macacos tomando banho e de idiotices do mesmo tamanho.
Alguns estudos chegam a pregar a “dissociação positiva”, aptidão dos “imperturbáveis”, pessoas dotadas de “luz positiva”, que “experimentam realidades angustiantes mantendo o bom-humor”, estratégia de auto-regulação emocional festejadas pelos fabricantes de programas de educação emocional.
Ou seja, contra uma visão realista e apreensiva do mundo, a alegria sem freio; contra o luto e sua elaboração; a negação maníaca. Substituir o inconformismo por um obstinado e alucinado “jogo do contente”.

Ser racional é não pensar ou, na melhor das hipóteses, é pensar as emoções como manifestações neurofisiológicas para melhor dominá-las,
é nomeá-las e pareá-las com desenhos esquemáticos de fisionomias que supostamente as representam,
é fazer auto-crítica a procura de enganos de percepção e de avaliação dos problemas que preocupam ou enraivecem.
A recomendação mais freqüente no livro é o recurso à diversão ou à distração, palavras que denotam “desatenção”, “inadvertência”, “irreflexão”.
“Divertir” é desviar, fazer esquecer, fazer mudar de fim, de objeto, ir no sentido oposto;
“Distrair” significa tornar desatento, não reparar, manter alheio; em seu sentido original, é romper, dividir, cativar, engolir de um trago.

A ciência e os cientistas não escapam dessa ditadura: capturados eles também pela aparência como ideologia onipresente que aprisiona o indivíduo numa organização compacta, vinculam-se à sociedade como dado, identificam a ciência com as forças produtivas, tornam-se prisioneiros das idéias que dificultam a compreensão do real, julgam-se esclarecidos sem sê-lo e portam inscientes a debilidade ética que marca as formações sociais capitalistas.

Semiformação é a educação que prepara para a adesão ao que aí está, que converte as pessoas em “obedientes instrumentos da ordem vigente” e que, portanto, contribui para a constituição do sujeito mutilado.
Presa à “ditadura do existente”, ela adere ao que aparece e, por isso mesmo, “obscurece ao mesmo tempo que convence”.

Para educar para a emancipação é preciso romper com a educação “enquanto mera apropriação de instrumental técnico e receituário para a eficiência", diz Maar resumindo Adorno.
Parte integrante da ideologia da educação para a eficiência, um dos mitos mais freqüentes nos sistemas educacionais é a afirmação generalizada de que, numa sociedade competitiva, é preciso preparar crianças e jovens para a competição.

Esta passividade inofensiva constitui ela própria, provavelmente, apenas uma forma da barbárie, na medida em que está pronta para contemplar o horror e se omitir no momento decisivo.

De dentro de uma visão de vida social que proscreveu a dissidência- e que, no máximo, admite a mudança como rearranjo da ordem em vigor, para que ela permaneça como está-
só se pode insistir na colaboração das classes subalternas como projetos aparentemente universais da classe hegemônica e condenar qualquer modalidade de confronto, sempre tido como desordem que é preciso reprimir.
Nos programas educacionais que preparam para o conformismo, ser racional é ser razoável, é compor-se com os ditames sociais, com a definição oficial de cidadão exemplar, é ser otimista, obstinado, resistente à frustração, competitivo, auto-disciplinado, comedido, conformado, tolerante, conciliador, dócil.
Racionalidade obtém-se pela inibição de reações radicais desorganizadoras de consenso.
A “arte de viver em sociedade” inclui obediência, individualismo, competição, astúcia, cálculo, colaboração em nome do lucro, e, no apogeu do altruísmo, filantropia. O que se quer é a empatia a serviço do capital.
A inteligência emocional é instrumento de controle do que seus proponentes denominam “forças destrutivas da natureza humana”, entendendo por isso qualquer forma de contestação de uma organização social assentada na racionalidade produtivista, na qual a submissão, o amor às máquinas, a indiferença diante do sofrimento alheio- a imbecilidade, enfim- são uma espécie de personalidade básica.

Mutações do Cativeiro- Maria Helena Souza Patto.

domingo, maio 10, 2009

Amor de Mentira.

O amor não é expresso, é café-com-leite.
Meio a meio, pouco a meio.
Alguns preferem o leite; outros, o café.
Por isso, combinam os dois.

Ninguém ama por inteiro.
Eu amo e sou amado por fragmentos.
No início da paixão, mostramos a região predileta: os dons e os dotes.
Nossa parte benigna. Fácil decorar e pôr em prática.

Entendo agora: uma verdade que não se cansa é mentira.
Portanto, amo de verdade e amo de mentira, para não deixar nada sem amar.

Não amo por inteiro. Amo por fases. Por dias. Por horas.
Há incomodações, ódios e resmungos nos intervalos.
Nivelar o amor é aniquilá-lo.
É não admitir que a mulher não é o que espero, nem o que ela espera.
E passar a desconfiar que não amo por aquilo que não preciso mesmo amar.

Amar é suportar também não amar quem mais se ama.

Fabricio Carpinejar.

quarta-feira, abril 22, 2009

A Palavra e a Coisa

(...) toda época produz crenças sobre a "natureza" do bem e do mal, do sujeito e do mundo, que, aos olhos dos contemporâneos, sempre aparecem como óbvias e indubitáveis.

Assim, desde o século XIX, passamos a crer na existência de uma divisão natural dos sujeitos em "heterossexuais, bissexuais e homossexuais". Esta crença impõe-se à maioria de nós como um dado imediato da consciência, como algo "intuitivo", e, portanto, como algo universalmente válido para todos os sujeitos em qualquer circunstância espaço-temporal.

Livros, vídeos e programas computadorizados, com informações sobre o assunto, seriam editados,
e congressos, encontros e conferências seriam realizados tendo como tema as causas e as origens genéticas, psicológicas, antropológicas, sociológicas, históricas etc.
daqueles características sexuais "doentes", "anômalas" ou "anormais".
Certos especialistas afirmariam Ter descoberto", por redução analítico-conceitual, quais as invariantes psíquicas comuns ao desejo de cada um dos tipos,
e outros "provariam" pela experimentação quais os correlatos genéticos ou anatomocerebrais das preferências sexuais "desviantes" ou "mutantes".
Movimentos em defesa dos direitos civis dos "alien-sexuais" surgiriam,
e movimentos alienófobos acusariam aquela "minoria" de ter uma tendência sexual antinatural,
posto que, se todos se atraíssem por extraterrestres, a reprodução da espécie terráquea estaria ameaçada.

Mas, se neste futuro hipotético, pensadores como Freud, Wittgenstein, Foucault ou Richard Rorty ainda fossem lidos,
alguns de seus leitores seguramente diriam que todas estas questões eram triviais e equivocadas em relação a uma outra mais fundamental:
qual o interesse ou valor moral de tais divisões?
Em que e por que - deixemos agora a ficção - importa dividir moralmente os sujeitos humanos com base em suas inclinações sexuais?

Por que tomar a classificação das pessoas em "heterossexuais, bissexuais e homossexuais" como um imperativo atemporal da "razão científica" e não como uma gestalt descritivo-valorativa das experiências sexuais, tão datada historicamente quanto qualquer outra?
Por que, em vez da pergunta fastidiosa, repetitiva e circular sobre "as causas", "a estrutura", "as particularidades genéticas ou cerebrais" dos "tipos sexuais" que inventamos,
não perguntamos": qual o pressuposto ético que orienta esta divisão?
O que ganhamos ou perdemos, em solidariedade para com o nosso próximo, quando fazemos de sujeitos elementos lógicos destes grupos, classes ou conjunto de "espécimes sexuais"?

Finalmente, em que semelhante arranjo imaginário das sexualidades contribui para a construção de uma vida melhor, mais bela, mais virtuosa ou mais comprometida com nossos ideais de decência pública e auto-realização individual?


Jurandir Freire Costa- Homoerotismo: a palavra e a coisa.

Sexo e Identidade

Assim, por dispositivo da sexualidade, entendem-se práticas discursivas e não discursivas, saberes e poderes que visam normatizar, controlar e estabelecer "verdades" a respeito do corpo e seus prazeres.

...

Não obstante, a idéia de que se deve ter um verdadeiro sexo está longe de ser dissipada. Seja qual for a opinião dos biólogos a esse respeito, encontramos, pelo menos em estado difuso, não apenas na psiquiatria, psicanálise e psicologia, mas também na opinião pública, a idéia de que entre sexo e verdade existem relações complexas, obscuras e essenciais (FOUCAULT, 1982, p. 03).

...

[...] está certo, nós somos o que vocês dizem, por natureza, perversão ou doença, como quiserem. E, se somos assim, sejamos assim e se vocês quiserem saber o que somos, nós mesmos diremos, melhor que vocês. Toda uma literatura da homossexualidade, muito diferente das narrativas libertinas, aparece no final do século XIX: veja Wilde ou Gide. É a inversão estratégica de uma "mesma" vontade de verdade. (FOUCAULT, 1996, p. 233)

...

Se o corpo e a sexualidade revoltam-se a partir de sua própria exposição, intensificando os dizeres sobre o sexo e saturando a sociedade com uma sexualidade desmedida, o poder ressurge e torna a adequar esta resistência aos seus discursos, ou como afirma Foucault:
A revolta do corpo sexual é o contra-efeito desta ofensiva. Como é que o poder responde? Através de uma exploração econômica (e talvez ideológica) da erotização, desde os produtos para bronzear até os filmes pornográficos... Como resposta à revolta do corpo, encontramos um novo investimento que não tem mais a forma de controle-repressão, mas de controle-estimulação: "Fique nu... mas seja magro, bonito, bronzeado!" (FOUCAULT, 1996, p. 233)

...

Talvez como ponto fundamental para a discussão sobre os movimentos homossexuais organizados esteja a questão da identidade homossexual. Uma inquietação colocada por Foucault em uma de suas entrevistas relaciona-se com o problema central da homossexualidade, que segundo ele não deveria ser: "Quem sou eu? Qual o segredo do meu desejo?", mas sim: "Quais relações podem ser estabelecidas, inventadas, multiplicadas, moduladas através da homossexualidade?" (FOUCAULT, 2005, p. 1).

...

O discurso político e teórico que produz a representação "positiva" da homossexualidade também exerce, é claro, um efeito regulador e disciplinador. Ao afirmar uma posição-de-sujeito, supõe, necessariamente, o estabelecimento de seus contornos, seus limites, suas possibilidades e restrições. Nesse discurso, é a escolha do objeto amoroso que define a identidade sexual e, sendo assim, a identidade gay ou lésbica assenta-se na preferência em manter relações sexuais com alguém do mesmo sexo.

...

A afirmação da identidade implica sempre a demarcação e a negação do seu oposto, que é constituído como sua diferença. Esse "outro" permanece, contudo, indispensável. A identidade negada é constitutiva do sujeito, fornece-lhe o limite e a coerência e, ao mesmo tempo, assombra-o com a instabilidade. Numa ótica desconstrutiva, seria demonstrada a mútua implicação/constituição dos opostos e se passaria a questionar os processos pelos quais uma forma de sexualidade (a heterossexualidade) acabou por se tornar a norma, ou, mais do que isso, passou a ser concebida como "natural". (LOURO, 2001, p. 549)

...

... Não ficar preso em guetos, nos quais se localizam "nós" e "eles", e sim criar novas formas de vida que reconheçam a multiplicidade de prazeres e desejos, bem como as diversas formas de ser homem e mulher.

...


A homossexualidade e a perspectiva foucaultiana
Francis Madlener; Nilson Fernandes Dinis

sexta-feira, março 20, 2009

Vésperas...

Começa a haver meia-noite, e a haver sossego,
Por toda a parte das coisas sobrepostas,
Os andares vários da acumulação da vida...

......

Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.

......

Ah, todo eu anseio
Por esse momento sem importância nenhuma
Na minha vida,
Ah, todo eu anseio por esse momento, como por outros análogos —
Aqueles momentos em que não tive importância nenhuma

......

Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar
Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem)
Acendo o cigarro para adiar a viagem,
Para adiar todas as viagens.
Para adiar o universo inteiro.
Volta amanhã, realidade!
Basta por hoje, gentes!

......

Na véspera de não partir nunca
Ao menos não há que arrumar malas
Nem que fazer planos em papel,
Com acompanhamento involuntário de esquecimentos,
Para o partir ainda livre do dia seguinte.
Não há que fazer nada
Na véspera de não partir nunca.
Grande sossego de já não haver sequer de que ter sossego!
Grande tranqüilidade a que nem sabe encolher ombros
Grande alegria de não ter precisão de ser alegre,
Como uma oportunidade virada do avesso.

......

Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
E um domingo às avessas
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.

......

Começo a ler, mas cansa-me o que ainda não li.
Quero pensar, mas dói-me o que irei concluir.
O sonho pesa-me antes de o ter. Sentir
É tudo uma coisa como qualquer coisa que já vi.

......

Perdi os dias que já aproveitara.
Trabalhei para ter só o cansaço
Que é hoje em mim uma espécie de braço
Que ao meu pescoço me sufoca e ampara.

......

Álvaro de Campos.

quarta-feira, março 04, 2009

Deslumbramentos

A vida quotidiana se caracteriza pelo desencanto.
Temos sempre tantas coisas para fazer. Algumas de que gostamos; mas a grande maioria é exigida de nós.
O que nos pedem é sempre prioritário, urgente, merece sempre o primeiro lugar, e se não fazemos logo nos criticam, ficam aborrecidos, castigam-nos.
A ordem das coisas não nos tem como centro.
Ela é o resultado de pressões exercidas sobre nós.
O que verdadeiramente desejamos não realizamos nunca e, a certa altura, acabamos sem saber sequer se gostaríamos de fazê-lo.
Na vida quotidiana nosso desejo chega por forma de fantasia, "que bom seria se..."
Mas acontece sempre alguma coisa que nos impede de exercer nossa vontade.

A vida quotidiana é caracterizada pela obrigação de fazer algo diferente, pelo dever de escolher entre coisas que interessam a outras pessoas, isto é, temos de fazer uma escolha entre um desapontamento maior e um mais suave.
A polaridade da vida cotidiana está entre a tranquilidade e o desassossego;
a do enamoramento, entre o êxtase e o tormento.
Há pessoas que não suportam a tensão do enamoramento, querem logo refreá-la, torná-la quotidiana, doméstica, controlável.
No quotidiano se deseja, pois, o excepcional, no excepcional, o cotidiano.

Na vida quotidiana, as metas que nos propomos, as coisas que procuramos obter, tudo, enfim, leva em conta os meios de que dispomos.
Não nos propomos coisas irrealizáveis.
Mas nossos desejos são limitados.
Mas ninguém se enamora dizendo: "Visto que tenho os meios para fazê-lo se enamorar de mim, decido enamorar-me dele".
Primeiro, se enamora, primeiro deseja o amor do outro e em seguida procura os meios para se fazer amar por ele.

O enamoramento é o abrir-se a uma existência diferente sem qualquer garantia de que esta se realize.
A grandeza do enamoramento é desesperadamente humana, pois oferece momentos de felicidade e eternidade, cria um desejo ardente, mas não pode oferecer certezas.

A cultura quotidiana sempre procura impor suas dicotomias: ou se gosta sempre ou nunca se gosta, ou se está sempre junto ou sempre separado, etc.
Rotulando e interrogando desse modo, ela os força assim a se definirem contraditoriamente de maneira louca.

Ninguém se enamora se está, mesmo parcialmente, satisfeito com o que tem e com o que é.
O enamoramento surge da sobrecarga depressiva, isto é, da impossibilidade de encontrar alguma coisa de valor na vida quotidiana.

Uma experiência típica do enamoramento é a de se poder "saciar" do outro.
Estar enamorado é também resistir ao amor, não querer ceder ao risco existencial de se colocar completamente nas mãos do outro.
Por isso, procuramos a pessoa amada, mas também desejamos evitá-la.
Muitas vezes, nos momentos de felicidade, dizemo-nos: "Já consegui tudo o que poderia obter, agora posso perdê-la e voltar a ser como era antes levando comigo só a sua lembrança. Já tive o que queria. Agora chega."
Obter o máximo possível e depois renunciar: essa é a fantasia da saciedade.
Num certo sentido, só conseguimos nos abandonar completamente porque achamos que é a última vez.
Desse modo, porém, submetemo-nos à prova porque, depois da separação, nos damos conta de que o desejo volta e de que continuamos amando, desejando o outro desesperadamente, e temos a necessidade de uma outra "última vez".

Examinemos agora outro caso, colocando uma pergunta que muitos se fazem.
É verdade que nos enamoramos mais facilmente de quem opõe alguma resistência do que de quem se faz desejar?
É verdade que, se temos que escolher entre duas pessoas, não escolhemos a que nos ama e se enamora de nós, mas antes a que se esquiva?
É uma idéia muito difundida que, em parte, corresponde à verdade, mas realmente muito pouco.
Sua verdade está no seguinte: o enamoramento procura o diferente e o extraordinário.
Uma pessoa que esteja a ponto de se enamorar dificilmente o fará por outra que há muito tempo se mostra enamorada dela e lhe faz a corte;
já a conhece, já estudou essa possibilidade.

Para aqueles a quem queremos bem, o presente não é uma homenagem servil: é o testemunho de uma relação que não se romperá.
Nesse caso, diz-se realmente: "Gosto de você, continuo a gostar de você mesmo que não pareça, mesmo que você não tenha dado sinal de vida como devia. Não me esqueci de você".
Porque, na realidade, esquecemos. Esquecemos durante meses, durante anos.
Esquecemos os pais, o marido ou a mulher, os filhos, sobretudo quem está distante e, por vezes, até quem está perto,
As pessoas de quem gostamos não são, na verdade, o objeto de uma relação contínua.
Nós as encontramos de vez em quando, como acontece com um amigo distante.
Não sentimos continuamente necessidade dessas pessoas, fazemos o que temos de fazer por hábito, por dever, às vezes nos lamentando.

Quem tem mais vínculos, mais obrigações, mais coisas para integrar e para mudar é aquele para qual o enamoramento é mais perturbador.
Mas o outro o ama justamente por essa sua complexidade, que dá grandeza e sentido à sua capacidade de mudar, de proteger uma existência nova, ao seu desejo de poder.

A perda de outra pessoa desvaloriza tudo aquilo que se é, os valores, a imagem, a auto-estima.
Quem está enamorado não se da conta da terrível ofensa que faz àquele que abandona e que este não pode perdoar.
Por isso, onde esperava encontrar compreensão encontra o não, o desespero, o grito.

Apesar de a sexualidade ser para nós uma aspiração permanente e uma fonte constante de nostalgia, temos medo dela.

Conclui-se que os homens e as mulheres têm por semana um número limitado de relações sexuais, rápidas e quase sempre com o mesmo parceiro.
A sexualidade é, portanto, contínua, escassa e pouco intensa, quase como o ato de comer e de beber.
Apesar disso, nos fica a impressão de que poderia ser diferente.
De onde vem tal certeza?
A resposta pode ser a seguinte: todos os homens e todas as mulheres têm períodos de atividade sexual intensa, extraordinária e exultante, e gostariam que fosse sempre assim.

O enamoramento é uma exploração do possível a partir do impossível, uma tentativa feita pelo imaginário de se impor ao existente.
Quanto maior for a sua tarefa e mais longa a viagem, menos provável será a chegada.
Sua história reduz-se, então, à história dessa viagem ou de suas travessias, das lutas travadas sem que haja um abrigo, um porto feliz de chegada.

Enamoramento e Amor- Francesco Alberoni.

Homo Ludens

É nessa intensidade, nessa fascinação, nessa capacidade de excitar que reside a própria essência e a característica primordial do jogo.
O mais simples raciocínio nos indica que a natureza poderia igualmente ter oferecido a suas criaturas todas essas úteis funções de descarga de energia excessiva, de distensão após um esforço, de preparação para as exigências da vida, de compensação de desejos insatisfeitos, etc., sob a forma de exercícios e reações puramente mecânicos.
Mas não, ela nos deu a tensão, a alegria e o divertimento do jogo.

A arena, a mesa de jogo, o círculo mágico, o templo, o palco, a tela, o campo de tênis, o tribunal, etc,. têm todos a forma e a função de terrenos de jogo, isto é, lugares proibidos, isolados, fechados, sagrados, em cujo interior se respeitam determinadas regras.
Todos eles são mundos temporários dentro do mundo habitual, dedicados à prática de uma atividade especial.

Dentro do círculo do jogo, as leis e costumes da vida quotidiana perdem validade.
Somos diferentes e fazemos coisas diferentes.

Existe entre a festa e o jogo, naturalmente, as mais estreitas relações.
Ambos implicam uma eliminação da vida cotidiana.
Em ambos predominam a alegria, embora não necessariamente, pois também a festa pode ser séria.
Ambos são limitados no tempo e no espaço.
Em ambos encontramos uma combinação de regras estritas com a mais autêntica liberdade.
Em resumo, a festa e o jogo têm em comuns suas características principais.
O modo mais íntimo de união de ambos parece poder encontrar-se na dança.

A criança representa alguma coisa diferente, ou mais bela, ou mais nobre, ou mais perigosa do que habitualmente é.
Finge ser um príncipe, um papai, uma bruxa malvada ou um tigre.
A criança fica literalmente "transportada" de prazer,
superando-se a si mesma a tal ponto que chega a acreditar que realmente é esta ou aquela coisa,
sem contudo perder inteiramente o sentido da "realidade habitual".
Mais do que uma realidade falsa, sua representação é a realização de uma aparência:
é "imaginação", no sentido original do termo.

O jogo autêntico possui, além de suas característica formais e de seu ambiente de alegria,
pelo menos um outro traço dos mais fundamentais,
a saber a consciência, mesmo que seja latente, de estar apenas "fazendo de conta".

Esta característica de "faz de conta" do jogo exprime um sentimento da inferioridade do jogo em relação à "seriedade",
o qual parece ser tão fundamental quanto o próprio jogo.
Todavia, conforme já salientamos, está consciência do fato de "só fazer de conta" no jogo não impede de modo algum que ele se processe com a maior seriedade,
com um enlevo e um entasiasmo, que chegam ao arrebatamento e,
pelo menos temporariamente, tiram todo o significado da palavra "só" da frase acima.
Todo jogo é capaz, a qualquer momento, de absorver inteiramente o jogador.
Nunca há um contraste bem nítido entre ele e a seriedade,
sendo a inferioridade do jogo sempre reduzida pela superioridade de sua seriedade.

Reina dentro do domínio do jogo uma ordem específica e absoluta.
E aqui chegamos a sua outra característica, mais positiva ainda: o jogo cria ordem e é ordem.
Introduz na confusão da vida e na imperfeição do mundo uma perfeição temporária e limitada.
A menor desobediência a esta "estraga o jogo", privando-o de seu caráter próprio e de todo e qualquer valor.

O jogo é "tenso" como se costuma dizer.
É este elemento de tensão e solução que domina em todos os jogos solitários de tristeza e aplicação, como os quebra-cabeças, as charadas, as paciências, o tiro ao alvo,
e quanto mais estiver presente o elemento competitivo mais apaixonante se torna o jogo.
Essa tensão chega ao extremo nos jogos de azar e nas competições esportivas.

A essência do lúdico está contida na frase "há alguma coisa em jogo".
Mas esse "alguma coisa" não é o resultado material do jogo, nem o mero fato da bola estar no buraco,
mas o fato ideal de se ter acertado ou de o jogo ter sido ganho.
O sentimento de prazer e de satisfação aumenta com a presença de espectadores, embora está não seja essencial para esse prazer.

Homo Ludens- Johan Huizinga.

quinta-feira, fevereiro 19, 2009

Ambivalência...

A partir do momento do nascimento, o bebê tem de lidar com o impacto da realidade passando por inumeráveis experiências de gratificação e frustração de seus desejos.
A fantasia não é simplesmente uma fuga da realidade, mas um constante e inevitável acompanhamento de experiências reais, com as quais está em constante interação.

Por exemplo, um bebê ao adormecer, fazendo satisfeito barulhos de sucção e movimentos com sua boca ou chupando seus próprios dedos, fantasia que está realmente sugando ou incorporando o seio, e dorme com a fantasia de ter realmente para si o seio que dá leite. De modo análogo, um bebê faminto e furioso, gritando e esperneando, fantasia que está realmente atacando o seio, rasgando-o e destruindo-o, e experimenta seus próprios gritos que o rasgam e o machucam como se o seio rasgado o estivesse atacando dentro dele próprio.

Bastante cedo, o ego tem uma relação com dois objetos; o objeto primário, o seio, é, nesse estádio, dividido (split) em duas partes: o seio ideal e o seio persecutório.
A fantasia do objeto ideal funde-se com as experiências gratificantes de amor e alimentação recebidos da mãe externa real, e é confirmada por essas experiências,
ao passo que a fantasia de perseguição funde-se, de modo semelhante, com experiências reais de privação e sofrimento.

A divisão (splitting) está ligada à idealização crescente do objeto ideal, a fim de mantê-lo bem distante do objeto perseguidor e de torná-lo impermeável ao mal.
Essa extrema idealização também está em conexão com a negação mágica onipotente.

Com a divisão (splitting) estão em conexão a ansiedade persecutório e a idealização.
Naturalmente ambas, se retidas em sua forma original na vida adulta, deformam o julgamento, mas alguns elementos da ansiedade persecutória e da idealização estão sempre presentes e desempenham um papel nas emoções adultas. Um certo grau de ansiedade persecutória é precondição para que se seja capaz de reconhecer, apreciar e reagir a situações verdadeiras de perigo em condições externas.
A idealização é a base da crença na bondade de objetos e na própria bondade, e é precursora de boas relações de objeto.
A relação com um objeto bom geralmente contém um certo grau de idealização, e essa idealização persiste em várias situações, tais como apaixonar-se, apreciar a beleza, formar ideais sociais ou políticos- emoções que, embora possam não ser estritamente racionais, aumentam a riqueza e a variedade de nossas vidas.

......

Com o tempo, o bebê se relaciona cada vez mais não apenas com o seio, mãos, face, olhos da mãe, como objetos separados, mas com ela própria como pessoa total, que às vezes pode ser boa, às vezes má, presente ou ausente, e que pode ser tanto amada quanto odiada.
Esse reconhecimento de sua mãe como uma pessoa total tem implicações muito vastas e abre um mundo de novas experiências.
Reconhecer a mãe como uma pessoa total significa também reconhecê-la como um indivíduo que leva vida própria e que tem relações com outras pessoas.
O bebê descobre seu desamparo, sua completa dependência dela e seu ciúme de outras pessoas.

Na posição depressiva, as ansiedades brotam da ambivalência e a principal ansiedade da criança é a de que seus próprios impulsos destrutivos tenham destruído ou destruam o objeto que ela ama e do qual depende totalmente.
A descoberta feita de sua dependência com relação à seu objeto, que agora ele percebe como sendo independente e com possibilidades de se afastar. Isso aumenta sua necessidade de possuir esse objeto, de mantê-lo, e, se possível, de protegê-lo de sua própria destrutividade.

Anseia por compensar o dano que infligiu a eles em sua fantasia onipotente, por restaurar e recuperar seus objetos amados perdidos, e por lhes dar de volta a vida e integridade.
Acreditando que seus próprios ataques destrutivos foram responsáveis pela destruição do objeto, acredita também que seu próprio amor e seu próprio cuiddo podem desfazer os efeitos de sua agressividade.

O fracasso de sua reparação mágica diminui do mesmo modo que sua crença na onipotência de seu amor.
Gradualmente, ele descobre os limites tanto de seu ódio quanto de seu amor, e com o crescimento e o desenvolvimento de seu ego descobre cada vez mais meios de afetar a realidade externo.

......

O caráter do superego muda.
Os objetos ideais e perseguidores introjetados na posição esquizo-paranóide formam as primeiras raízes do superego.
O objeto perseguidor é experimentado como punitivo, de forma retaliativa e impiedosa.
O objeto ideal, com o qual o ego anseia por identifica-se, se torna a parte ego-ideal do superego, muitas vezes também perseguidora, por causa das altas exigências de perfeição.

O sofrimento do luto experimentado na posição depressiva e os impulsos reparadores desenvolvidos para restaurar os objetos amados, internos e externos, constituem a base da criatividade e da sublimação.
Essas atividades reparadoras são dirigidas tanto ao objeto quanto ao eu.

O anseio por recriar seus objetos perdidos fornece-lhe o impulso para recompor o que foi feito em pedaços, para reconstruir o que foi destruído, para recriar.
Ao mesmo tempo, seu desejo de poupar os objetos leva-o a sublimar seus impulsos quando são sentidos como destrutivos.

Sob esse ponto de vista, a formação simbólica é o produto de uma perda,
é um trabalho criativo que envolve o sofrimento e todo o trabalho do luto.

Os impulsos reparadores ocasionam um maior avanço na integração,
O amor é colocado mais nitidamente em conflito com o ódio,
e age tanto no controle da destrutividade quanto na reparação e na restauração do dano causado.

......

A reação maníaca com objetos é caracterizada por uma tríade de sentimentos- controle, triunfo e desprezo.
Esses sentimentos estão diretamente relacionados com sentimentos depressivos de valorizar o objeto e depender dele,
bem como de medo de perder e culpa, sendo também defensivos contra eles.
O controle é um modo de negar a dependência,
o triunfo é uma negação dos sentimentos de valorizar e de se importar,
o desprezo é uma negação do fato de valorizá-lo e age como defesa contra a experiência de perda e de culpa.

......


Introdução à Obra de Melanie Klein- Hanna Segal.

terça-feira, fevereiro 17, 2009

Amor?

Em suma, o casal tornou-se descartável como a esferográfica e o isqueiro.
"Não funciona mais? Jogue fora."

Em geral, preferimos encarar o casamento não como a construção laboriosa de uma vida juntos, mas como uma rápida contabilidade de prazeres: está chato? Acabe logo.

É claro que é melhor que a vida de um casal não seja uma sauna úmida onde todos se perdem e quase sufocam. (...)
Mas talvez não seja necessário que todo esse processo seja quase sempre descrito e apresentado como uma separação,
e não como a constituição ou a invenção de laços diferentes e viáveis.
Parece que, em nossa cultura, amadurecendo,
todos devem aprender a separar-se,
mas ninguém deve aprender a relacionar-se.

Ora, minha simpatia pelos esforços para manter e conciliar relações é uma maneira de apostar que a maturidade não só seja a capacidade de tolerar as separações mas também consista em inventar uma arte de relacionar-se.

Durante muito tempo, pensava que fôssemos todos vítimas de um ideal inalcançável:
a visão de um casal gloriosamente feliz no amor e no sexo.
Os casais concretos fracassariam por almejarem tamanha perfeição.
Cada dificuldade deixaria os parceiros inconsoláveis ao descobrirem a distância entre seu dia-a-dia e o ideal. Logo eles procurariam outras chances.

Pois me pareceu que, contrariamente ao que achava no passado, o convívio amoroso e sexual não é nosso ideal cultural dominante.
O casal moderno não sofre de um excesso de idealização da felicidade casamenteira.
Ao contrário, ele luta (batalha bem mais ímpar) contra uma falta de idealização:
o casal não tem onde encontrar inspiração, pois seus percalços não fazem sonhar ninguém.

Nossa cultura idealiza o amor romântico.
Mas você deve ter constatado: filmes e contos propõem quase sempre que idealizemos amores impossíveis, separações e nostalgias arrasadoras ou primeiros encontros deslumbrantes.
Pouquíssimas vezes, encontramos uma visão ideal de como é durar no amor e viver juntos.
Em geral, esse é um tema para comédia ou "vaudeville".
É sublime apaixonar-se, separar-se ou ser separado pela fatalidade, mas é ridículo conviver.

As histórias de amor dificílimas, a gente adora no "Aguenta Coração", do Faustão, em que elas valem como fragmentos de novela, ficções com as quais sonhar.
Muito mais difícil é apreciá-las na realidade.
Em geral, em matéria de amor, somos ousados apenas nos devaneios literários.

Um sujeito hesita, imóvel, entre desejos diferentes: amo ou não amo?
E, se amo, qual das duas ou dos dois?
É uma maneira (dispendiosa) de não perder nada.
Ou de nunca apegar-se para evitar as dores de uma separação.
Outro sujeito, prefere guardar a paixão no gueto dos sonhos, onde está sob controle.
São cálculos que podem parecer avaros, covardes ou absurdos e, sobretudo, dolorosos.

Para Kipnis, diante da vida de casal (e no meio dela), nossa ambivalência é sem solução:
"Por um lado, o anseio por intimidade; por outro, o desejo de autonomia;
por um lado, o conforto e a segurança da rotina; por outro, sua medonha previsibilidade;
por um lado, o prazer de ser conhecido profundamente (e de conhecer profundamente outra pessoa);
por outro, os papéis restritivos que essa familiaridade prevê".

Kipnis acrescenta que a familiaridade produz "a rotina do "Pare de Tentar Me Mudar" e a rotina do "Pare de Me Culpar por Sua Infelicidade'".
São, de fato, duas grandes armadilhas da intimidade do casal:
"Você me conhece tão bem que o deleite da surpresa foi substituído pela paixão pedagógica de me transformar".
Ou então: "Você me conhece tão bem que consegue sempre encontrar em mim as razões de sua insatisfação".

Nossa vida comporta sempre uma dose certa de frustrações.
Atribuir falhas e malogros a uma causa definida é uma grande consolação.
Não sei encontrar novos amigos e amores? É que sacrifiquei meus melhores anos a um casamento que me arrasou.
Meu orçamento estoura a cada mês? É que o maldito (ou a maldita) foi embora com meu dinheiro.
Não saio da depressão? É que o outro (ou a outra) levou consigo minha vontade de viver.

Nossas neuroses não são quase nunca solitárias:
os traços patológicos de nossa personalidade se expressam em nossas relações com os outros.
Quando, depois de amores e apaixonamentos, dois sujeitos se acasalam solidamente,
é possível que cada um esteja apenas oferecendo ao outro a ocasião de viver suas manhas neuróticas com a assiduidade desejada.
(...)Corolário e moral da história: quem muda de parceiro sem mudar de neurose vai ao encontro das mesmas pauladas tomadas ou dadas que sejam.

Contardo Calligaris

domingo, fevereiro 08, 2009

Estigma- Notas Sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada.

Baseando-nos nessas preconcepções, nós as transformamos em expectativas normativas, em exigências apresentadas de modo rigoroso.
Caracteristicamente, ignoramos que fizemos tais exigências ou o que elas significam até que surge uma questão efetiva.
Essas exigências são preenchidas?
É nesse ponto, provavelmente, que percebemos que estivemos fazendo algumas afirmativas em relação àquilo que o indivíduo que está à nossa frente deveria ser.

....

O termo estigma será usado em referência a um atributo profundamente depreciativo, mas o que é preciso, na realidade, é uma linguagem de relações e não de atributos.
Um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem, portanto ele não é, em si mesmo, honroso nem desonroso.
Um estigma é, então, na realidade, um tipo especial de relação entre atributo e estereótipo, embora eu proponha a modificação desse conceito, em parte porque há importantes atributos que em quase toda a nossa sociedade levam ao descrédito.

....

Os padrões que ele incorporou da sociedade tornam-no intimamente suscetível ao que os outros vêem como seu defeito, levando-o inevitavelmente, mesmo que em alguns poucos momentos, a concordar que, na verdade, ele ficou abaixo do que de realmente deveria ser.
A presença próxima de normais provavelmente reforçará a revisão entre auto-exigências e ego, mas na verdade o auto-ódio e a autodepreciação podem ocorrer quando somente ele e um espelho estão frente a frente.

Deve-se mencionar a predisposição à "vitimização" como um resultado da exposição da pessoa estigmatizada a servidores que vendem meios para corrigir a fala, para clarear a cor da pele, para esticar o corpo, para restaurar a juventude, curas pela fé e meios para se obter fluência na conversação.
Quer se trate de uma técnica prática ou de fraude, a pesquisa, freqüentemente secreta, dela resultante, revela, de maneira específica, os extremos a que os estigmatizados estão dispostos a chegar e, portanto, a angústia da situação que os leva a tais extremos.

....

A criatura estigmatizada usará, provavelmente, o seu estigma para "ganhos secundários", como desculpa pelo fracasso a que chegou por outras razões:

- Essa desvantagem era o "cabide" no qual o paciente pendurava todas as insuficiências, todas as insatisfações, todas as protelações e todas as obrigações desagradáveis da vida social, e do qual veio a depender não somente como forma de libertação racional da competição mas ainda como forma de proteção contra a responsabilidade.
Quando esse fator é removido por cirurgia, por exemplo, o paciente perde a proteção emocional mais ou menos aceitável que ele oferecia e logo descobre, para sua surpresa e inquietação, que a vida não é fácil de ser levada, mesmo pelas pessoas que têm rostos "comuns", sem máculas. Ele está despreparado para lidar com as situações sem o apoio de uma "desvantagem". - (Baker e Smith sobre "Facial Disfigurement and Personality).

Faltando o feedback saudável do intercâmbio social, a pessoa que se auto-isola possivelmente se torna desconfiada, deprimida, hostil, ansiosa e confusa.

....

Diz-se, freqüentemente, que um estigmatizado que consegue uma família e um trabalho "fez algo de sua vida". De maneira semelhante, diz-se que alguém que casou com um estigmatizado "jogou a vida fora".
Tudo isso é reforçado, em alguns casos, quando o indivíduo transforma-se num "caso" para assistentes sociais ou outros funcionários das agências de bem-estar social e se mantém no status de "caso" por toda a sua vida.

- "Desenvolvemos uma filosofia. Parece que as pessoas insistem em que se tenha uma, e elas pensam que estamos blefando quando dizemos que não temos nenhuma. Assim, fazemos todo o possível para agradar e damos a nossa pequena mostra aos estranhos que encontramos em trens, restaurantes ou no metrô e que desejam saber por que nos mantemos de pé.
Um homem de grande discernimeno é o que descobre que a sua filosofia raramente é uma invenção pessoal, mas um reflexo da noção que o mundo tem da cegueira". - (Chevigny).

- "Aprendi também que o aleijado deve ter cuidado em não agir de maneira diferente da expectativa das pessoas. Acima de tudo, eles esperam que o aleijado seja aleijado; seja incapacitado e indefeso: inferior e aeles, e, assim, têm desconfiança e sentem-se inseguros se os aleijados não corresponderem a essas expectativas. É batante estranho, mas o aleijado tem de desempenhar o papel de aleijado, assim como as mulheres têm que ser o que os homens esperam delas, ou seja, simplesmente mulheres (...). Certa vez conheci uma anã que era um exemplo patético do que eu estou dizendo. Era muito pequena, tinha cerca de um metro de altura e extremamente bem educada. Na frente de outras pessoas, entretando, tinha muito cuidado em não ser outra coisa que não "a anã", e desempenhava o papel de boba (...). Quando estava com os amigos, ela podia tirar o gorro, os sinos, e atrever-se a ser a mulher que realmente era: inteligente, triste e muito solitária."- (Carling).

Os conselhos ao estigmatizado freqüentemente se referem com bastante singeleza à parte de sua vida da qual ele mais se envergonha e que considera a mais privada; suas feridas mais profundamente escondidas são tocadas e examinadas clinicamente tal como na moda literária atual. São embrulhadas e colocadas à sua disposição fantasias de humilhação e triunfo sobre os normais.
Nesse ponto, o mais privado e embaraçoso é o mais coletivo, porque os sentimentos mais profundos do indivíduo estigmatizado são feitos do mesmo material que os membros de sua categoria apresentam numa versão escrita ou oral bastante fluente.

....

Os normais não têm, na realidade, nenhuma intenção maldosa; quando o fazem, é porque não conhecem bem a situação.
Deveriam, portanto, ser ajudados, com tato, a agir delicadamente. Observações indelicadas de menosprezo e desdém não devem ser respondidas na mesma moeda.
O indivíduo, estigmatizado deve não prestar atenção a elas ou, então, fazer um esforço no sentido de uma reeducação complacente do normal, mostrando-lhe, ponto por ponto, com delicadeza, que, a despeito das aparências, é, no fundo, um ser humano completo.
Quando descobre que os normais têm dificuldades em ignorar seu defeito, a pessoa estigmatizada deve tentar ajudá-los e à situação social fazendo esforços conscientes para reduzir a tensão.
Nessas circunstâncias, o indivíduo estigmatizado pode, por exemplo, tentar "quebrar o gelo", referindo-se explicitamente ao seu defeito de um modo que mostre que ele está livre, que pode vencer suas dificuldades facilmente. Além da trivialidade, recomenda-se também a frivolidade.

....

Fica evidente a natureza do "bom ajustamento".
Ele exige que o estigmatizado se aceite, alegre e inconscientemente, como igual aos normais enquanto, ao mesmo tempo,
se retire voluntariamente daquelas situações em que os normais considerariam difícil manter uma aceitação semelhante.

A fórmula geral é evidente. Exige-se do indivíduo estigmatizado que ele se comporte de maneira tal que não signifique nem que sua carga é pesada, e nem que carregá-la tornou-o diferente de nós;
ao mesmo tempo, ele deve-se manter a uma distância tal que nos assegure que podemos confirmar, de forma indolor, essa crença sobre ele.

A ironia dessas recomendações não é o fato de se pedir ao estigmatizado que ele seja, pacientemente, frente aos outros, o que eles não lhe deixam ser,
mas que essa expropriação de sua resposta possa ser a sua melhor recompensa.

Se, de fato, ele deseja viver tanto quanto possível "como qualquer outra pessoa" e ser aceito "pelo que realmente é",
então, em muitos casos, a posição mais inteligente a tomar é a de que tem um fundo falso,
já que, em muitos casos, o grau de aceitação da pessoa estigmatizada pelos normais pode ser maximizado se ela atuar com absoluta espontaneidade e naturalidade como se a aceitação condicional de si mesma, que ela procura não superar,
fosse a aceitação total.

Mas é claro que o que é um bom ajustamento para o indivíduo é ainda melhor para a sociedade.
Pode-se acrescentar que a confusão dos limites é uma característica básica da organização social;
o que, até certo ponto, se pede que muitos aceitem é a manutenção da aceitação-fantasma.


Embora algumas dessas normas, como a visão e a alfabetização, dcevam ser, em geral, sustentadas com total adequação pela maior parte das pessoas da sociedade,
há outras normas, como as associadas com a beleza física, que tomam a forma de ideais e constituem modelos perante os quais quase todo mundo fracassa em algum período de sua vida.
E mesmo quando estão implícitas normas amplamente realizadas, a sua multiplicidade tem o efeito de desqualificar muitas pessoas.
Por exemplo, num sentido importante há só um tipo de homem que não tem nada do que se envergonhar: um jovem, casado, pai de família, branco, urbado, heterossexual, de educação universitária, bem empregado, de bom aspecto, bom peso, boa altura e com um sucesso recente nos esportes.(...)
Os valores de identidade gerais de uma sociedade podem não estar firmemente estabelecidos em lugar algum, e ainda assim podem projetar algo sobre os encontros que se produzem em todo o lugar na vida cotidiana.

É óbvio que os estudantes de psquiatria freqüentemente mostram a conseqüência patológica da autodepreciação, assim como argumentam que o preconceito contra um grupo estigmatizado pode ser uma forma de doença.
Esses extremos, entretando, não nos interessam, porque os padrões de resposta e adaptação considerados nesse ensaio parecem poder ser completamente compreendidos dentro do quadro de referência da psicologia normal.

O estigmatizado e o normal não são pessoas, e sim perspectivas que são geradas em situações sociais durante os contatos mistos, em virtude de normas não cumpridas que provavelmente atuam sobre o encontro.

Estigma- Notas Sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada.
Erving Goffman.

quinta-feira, janeiro 29, 2009

A Representação do Eu na Vida Cotidiana

As máscaras são expressões controladas e ecos admiráveis do sentimento, ao mesmo tempo fiéis, discretas e supremas.
As coisas vivas em contato com o ar devem adquirir uma cutícula,
e não pode argumentar que as cutículas não são corações;
contudo alguns filósofos parecem aborrecidos com as imagens por não serem objetos
e com as palvras por não serem sentimentos.
Palavras e imagens são como as conchas,
não menos parte da natureza do que as substâncias que conrem,
porém melhor dirigidas ao olhar e mais abertas à observação.


Geoge Santayana

Aqueles que têm tempo e talento para desempenhar bem uma tarefa não podem, por este motivo, ter tempo para mostrar que estão representando bem.
É possível dizer que algumas organizações resolvem este dilema delegando oficialmente a função dramática a um especialista,
que gastará o tempo expressando o significado da tarefa e não perderá tempo em desempenhá-la efetivamente.

Como disse Sartre: "O aluno atento que deseja ser atento, olhos fixos no professor, ouvidos bem abertos, consome-se tanto em representar o papel de atento que termina por não ouvir mais nada".

Se um indivíduo tem de dar expressão a padrões ideais na representação, então terá de abandonar ou esconder ações que não sejam compatíveis com eles.
Quando tal conduta imprópria é em certo sentido satisfatória como muitas vezes acontece, verifica-se então comumente que o indivíduo entrega-se a ela secretamente.

É mantida uma impressão de infabilibilidade, tão importante em muitas representações.
É famoso o comentário de que os médicos enterram seus erros.

Muitas escolas e instituições anunciam qualificações e exames de admissões inflexíveis, mas de fato rejeitam muito poucos candidatos.
Por exemplo, um hospital de doentes mentais pode exigir que os candidatos e servidores se submetam a um exame de Rorschach e a uma longa entrevista, mas contrata todos os que aparecem.

Na nossa sociedade, alguns gestos involuntários ocorrem numa variedade tão ampla de representações, dando impressões geralmente tão incompatíveis com as que se pretende transmitir, que estes acontecimentos inoportunos adquiriram uma condição simbólica coletiva. Primeiro, o ator pode tropeçar, claudicar, cair; pode arrotar, bocejar, coçar-se ou ter flatulência; pode, acidentalmente, esbarrar em outro participante. Segundo, o ator pode agir de tal maneira que dê a impressão de estar preocupado demais ou de menos com a interação. Pode gaguejar, esquecer o que tem a dizer, mostrar-se nervoso, culpado ou consciente de si mesmo; pode ter inadequadas explosões de riso, raiva ou outros estados emocionais que momentaneamente o incapacitam; pode revelar um envolvimento e interesse demasiado sérios ou pequenos demais.

Um meio de tratar essas interrupções perturbadoras consiste, para as pessoas envolvidas, em rir delas, como sinal de que suas implicações foram compreendidas mas não levadas a sério.

A conservação desta concordância superficial, desta aparência de consenso, é facilitada pelo fato de cada participante ocultar seus próprios desejos por trás de afirmações que apóiam valores aos quais todos os presentes se sentem obrigados a prestar falsa homenagem.

Na vida cotidiana, é em geral possível para o ator criar propositadamente quase todos os tipos de falsa impresão sem se colocar na posição indefensável de ter dito uma flagrante mentira. As técnicas de comunicação, tais como a insinuação, a ambigüidade estratégica e omissões essenciais permitem ao informante enganador aproveitar-se da mentira sem tecnicamente dizer nenhuma.

A despeito de nossa boa vontade em apreciar as exigências expressivas dos vários tipos de situação, tendemos a vê-las como casos especiais, inclinamo-nos a nos manter cegos para o fato de que representações diárias seculares devem passar muitas vezes por uma rigorosa prova de idoneidade, conveniência, propriedade e decoro. Talvez essa cegueira se deva, em parte, ao fato de que, como atores, somos freqüentemente mais conscientes dos padrões que deveríamos ter aplicado à nossa atividade, mas não o fizemos, do que dos padrões que irrefletidamente usamos.

Em outras palavras, devemos estar capacitados para compreender que a impressão de realidade criada por uma representação é uma coisa delicada, frágil, que pode ser quebrada por minúsculos contratempos.

A coerência expressiva exigida nas representações põe em destaque uma decisiva discrepância entre o nosso eu demasiado humano e nosso eu socializado.
Como seres humanos somos, presumivelmente, criaturas com impulsos variáveis, com estados de espírito e energias que mudam de um momento para o outro.
Quando porém nos revestimos de caráter de personagens em face de um público, não devemos estar sujeitos a altos e baixos.

Como diz Santayana: Mas, quer a fisionomia que adotamos seja alegre ou triste, ao tomá-la e acentuá-la definimos nosso temperamento supremo predominante.
Daí em diante, enquanto continuarmos sob o feitiço deste autoconhecimento, não viveremos apenas, mas atuaremos;
compomos e representamos nosso personagem escolhido, defendemos e idealizamos nossas paixões, encorajamo-nos eloqüentemente a ser o que somos-
dedicados ou desdenhosos, descuidados ou austeros;
monologamos (diante de um público imaginário) e envolvemo-nos graciosamente no manto de nosso papel inalienável.
Assim trajados, solicitamos aplausos e esperamos morrer em meio ao silêncio universal.
Declaramos mostrar-nos à altura dos belos sentimentos que enunciamos, quando tentamos acreditar na religião que professamos.
Quanto maiores nossas dificuldades, maior nosso zelo.
Por baixo de nossos princípios propalados e de nossa linguagem comprometida, devemos esconder assiduamente todos os defeitos de nosso temperamento e conduta, e isto sem hipocrisia,
visto que nosso personagem deliberado é mais verdadeiramente nós mesmos que o fluxo de nossos devaneios involuntários.


Ao dizer que os atores agem de maneira relativamente informal, familiar e descontraída quando estão nos bastidores em atitude vigilante durante a representação, não se deve pensar que as coisas agradáveis e interpessoais da vida- a cortesia, o calor humano, a generosidade e o prazer com a companhia dos outros- estão sempre reservadas aos bastidores, enquanto a suspeita, a pretensão e a demonstração de autoridade são próprias das atividades da região de fachada.
Freqüentemente parece que, seja qual for o entusiasmo e vivo interesse que nos anima,
nós os reservamos para aqueles diante dos quais estamos representando,
e que o sinal mais claro de solidariedade de bastidores é sentir a segurança de cair num estado de espírito insociável de mal-humorada e silenciosa irritabilidade.


Como indicou Riezler, temos portanto uma moeda social básica, com respeito de um lado e vergonha do outro.
Como demonstra um sem-número de contos populares e de ritos de iniciação, freqüentemente o verdadeiro segredo por trás do mistério é que realmente não há mistério.

E porque esses padrões são muito numerosos e muito difundidos, os indivíduos que são os atores vivem, mais do que poderíamos pensar, num mundo moral.
Mas, enquanto atores, os indivíduos interessam-se não pela questão moral de realizar essas ações,
mas pela questão amoral de maquinar uma impressão convincente de que esses padrões estão sendo realizados.


Erving Goffman- A Representação do Eu na Vida Cotidiana.