quarta-feira, abril 22, 2009

A Palavra e a Coisa

(...) toda época produz crenças sobre a "natureza" do bem e do mal, do sujeito e do mundo, que, aos olhos dos contemporâneos, sempre aparecem como óbvias e indubitáveis.

Assim, desde o século XIX, passamos a crer na existência de uma divisão natural dos sujeitos em "heterossexuais, bissexuais e homossexuais". Esta crença impõe-se à maioria de nós como um dado imediato da consciência, como algo "intuitivo", e, portanto, como algo universalmente válido para todos os sujeitos em qualquer circunstância espaço-temporal.

Livros, vídeos e programas computadorizados, com informações sobre o assunto, seriam editados,
e congressos, encontros e conferências seriam realizados tendo como tema as causas e as origens genéticas, psicológicas, antropológicas, sociológicas, históricas etc.
daqueles características sexuais "doentes", "anômalas" ou "anormais".
Certos especialistas afirmariam Ter descoberto", por redução analítico-conceitual, quais as invariantes psíquicas comuns ao desejo de cada um dos tipos,
e outros "provariam" pela experimentação quais os correlatos genéticos ou anatomocerebrais das preferências sexuais "desviantes" ou "mutantes".
Movimentos em defesa dos direitos civis dos "alien-sexuais" surgiriam,
e movimentos alienófobos acusariam aquela "minoria" de ter uma tendência sexual antinatural,
posto que, se todos se atraíssem por extraterrestres, a reprodução da espécie terráquea estaria ameaçada.

Mas, se neste futuro hipotético, pensadores como Freud, Wittgenstein, Foucault ou Richard Rorty ainda fossem lidos,
alguns de seus leitores seguramente diriam que todas estas questões eram triviais e equivocadas em relação a uma outra mais fundamental:
qual o interesse ou valor moral de tais divisões?
Em que e por que - deixemos agora a ficção - importa dividir moralmente os sujeitos humanos com base em suas inclinações sexuais?

Por que tomar a classificação das pessoas em "heterossexuais, bissexuais e homossexuais" como um imperativo atemporal da "razão científica" e não como uma gestalt descritivo-valorativa das experiências sexuais, tão datada historicamente quanto qualquer outra?
Por que, em vez da pergunta fastidiosa, repetitiva e circular sobre "as causas", "a estrutura", "as particularidades genéticas ou cerebrais" dos "tipos sexuais" que inventamos,
não perguntamos": qual o pressuposto ético que orienta esta divisão?
O que ganhamos ou perdemos, em solidariedade para com o nosso próximo, quando fazemos de sujeitos elementos lógicos destes grupos, classes ou conjunto de "espécimes sexuais"?

Finalmente, em que semelhante arranjo imaginário das sexualidades contribui para a construção de uma vida melhor, mais bela, mais virtuosa ou mais comprometida com nossos ideais de decência pública e auto-realização individual?


Jurandir Freire Costa- Homoerotismo: a palavra e a coisa.