sexta-feira, junho 05, 2009

Aprendendo a Tornar-se Homossexual.

Os indivíduos, ao organizarem a percepção da diferença de gêneros, isto é,
da diferença sócio-sexual entre masculino e feminino ou entre meninos e meninas,
organizam de imediato a percepção da hierarquia de valores que leva à interpretação do contato homoerótico como algo "diferente", algo da ordem da exceção.
De início, a relação homoerótica parece apontar simplesmente para a descoberta da excitação sexual.
Nessa etapa, o sentimento de que fazem algo proibido é igualmente válido para jogos sexuais com meninas.
Porém, enquanto as relações heteroetóticas recebem um veto parcial dos adultos, ou seja, são proibidas só nessa fase da vida, as relações homoeróticas recebem um veto total e absoluto.
Logo que são descobertas pelos adultos, são descritas como indesejáveis e desqualificadas do ponto de vista moral. (...)
Em outras palavras, aprender o que é sexo é aprender ao mesmo tempo o que é proibido e permitido em matéria de sexo.

A essas diversas formas de interdição, permissão e prescrição de condutas e desejos, chamamos ética.
São as éticas, portanto, que regem as práticas sexuais e os desejos nelas implicados.

Não existe, na perspectiva psicanalítica, nenhuma sexualidade humana estável, dada, natural ou adequada a todos os sujeitos.
Todas as sexualidades instituídas, com seus valores e hierarquizações, são, para Freud, "sintomáticas", na acepção psicanalítica do termo.

As éticas sexuais representam os limites que nos são oferecido para que possamos ter prazer sexual, sem comprometer a vida do próximo e sem impedi-lo de, por seu turmo, poder continuar sendo sujeito do próprio desejo, e não mero instrumento ou objeto do desejo do outro.

Os adultos, em nossa cultura, por força do sistema de interdições que lhe é própria, não mostram jamais atos como a masturbação, o coito ou quaisquer outras práticas sexuais.
As emoções ligadas ao sexo permanecem vagas e indeterminadas até que, na puberdade e na idade adulta, novas regras de uso, agora apoiadas em exemplos de conduta, venham esclarecer sua significação.
A idéia de que a "experiência sexual" é, pela própria natureza, imprecisa e indizível, já faz parte da definição que damos, em nossos hábitos linguisticos, do que são os sentimentos e sensações sexuais.

A divisão do espaço social entre o público e o privado, promovida pela revolução burguesa, leva-nos a identificar a vida afetivo-sexual como sinônimo da "verdadeira essência do indivíduo".
A idéia de que sem plena satisfação da sexualidade genital estamos privados da mola mestra da "realização" individual integra nosso credo moral básico.
Hoje somos "constrangidos" a ser "sexualmente felizes" como em outras épocas muitos foram coagidos a renunciar e a negar o prazer que a sexualidade pode dar.


No entanto, o culto moderno à sexualidade genital como fonte de "realização da felicidade pessoal", em suas "baixas origens" esteve ligado ao enorme esforço ideológico operado no século XIX para desqualificar as sexualidades marginais em prol da sexualidade reprodutiva.
O atual monopólio imaginário da genitalidade na produção e normatização de "sexualidades e felicidades" é um filho emancipado do feitiche teórico da "lei institiva e natural da reprodução", criado pela burguesia oitocentista da Europa.
Desse berço nasceu o "sexo rei", para tomar a expressão de Foucault que, desde então, vem se tornando cada vez mais "absoluto" em seu reinado.

Por essa razão, o controle e a regulação da sexualidade genital passaram a ter a enorme importância que têm na vida de cada um de nós.
A sexualidade genital tornou-se sinônimo de nossa autêntica e profunda identidade ou do núcleo de nosso eu.
As preferências, permissões ou proibições que gravitaram em torno dela tranformaram-se em indicadores das diversas maneiras que têm os indivíduos de reconhecer "o quê", e "quem são eles".


Os que cumprem suas normas realizam a "essência humana"; os que se desviam do bom caminho traem, por incompetência, invalidez ou perversidade, as "leis" da natureza, da cultura, da linguagem, do parentesco, da decência, da moralidade ou qualquer outra "lei", inventada conforme a ideologia do momento.

Em síntese, as regras identificatórias para a construção das sexualidades humanas confundem-se, em nosso hábito cultural, com as regras de construção da "identidade humana".


Assim, as regras identificatórias das disntinções sócio-sexuais reproduzem permanentemente as diferenças e a hierarquia dominantes e são transmitidas de modo a parecerem estáveis, naturais e universalmente válidas para todos os sujeitos.

Depois de Kinsey ficou razoavelmente demonstrado que não existe vínculo necessário entre comportamento sexual e identidade sexual.
De acordo com as estatísticas de Kinsey, "37% dos homens entrevistados tinham tido experiências homossexuais, mas menos de 4% eram exclusivamente homossexuais e mesmo estes não exprimiam necessariamente uma identidade 'homossexual'."

O comportamento pode fazer parte da identidade, mas a identidade não pode ser contida no comportamento.
Identidade é um termo genérico que designa tudo aquilo que o sujeito experimenta e descreve como sendo ou fazendo parte do eu.

A diversidade das práticas, condutas e desejos homoeróticos é enorme e extremamente difícil de ser tipificada, seja pelo observador, seja pelo sujeito.

O elemento central na definição da identidade "homossexual" é a presença do desejo homoerótico.
Mesmo assim, a simples admissão da atração sensual por homens, que é uma modalidade do desejo homoerótico, não é suficiente para caracterizar a "homossexualidade" daqueles que a experimentam.
Mais decisiva é a presença da atração terna, ou seja, do apaixonamento, que significa algo além do "puro tesão".

A "identidade homossexual" é predominantemente estabelecida a partir do sentimento vago e difuso de desvio ou diferença em relação ao que se julga ser a "identidade heterossexual", identidade esta igualmente difícil de ser descrita em seus atributos.

O relevo dado ao desejo erótico em vez de ao comportamento erótico mostra a individualização e interiorização das regras de construção da identidade sexual. Enquanto os comportamentos apontam para a vertente pública e visível da orientação social da sexualidade, o desejo volta-se para a privatização da realização ou frustração sexuais.
O “homossexual moderno” converteu-se, assim, em um indivíduo preso a um duplo sistema de referências, para a elaboração de sua subjetividade.
De um lado, acha-se às voltas com as regras da satisfação do desejo que o orientam no sentido de buscar formas singularizadas de realização sexual; de outro, encontra-se atrelado ao velho sistema de crenças que estigmatiza o homoerotismo como uma preferência sexual doente, imoral, deficiente ou desviante em relação à verdadeira finalidade do “instinto”.
Essa duplicidade de injunções é responsável pela desorientação sexual de muitos indivíduos.

Quanto mais os indivíduos se aproximam do modelo do militante gay menos tendem a ter conflitos e mais tendem a assumir publicamente a “identidade homossexual”.
Como mostrou Weeks (1991), reforçar a perceção da diferença nesses termos, significa, por um lado, alinhar-se à idéia tradicional de que realmente existe uma identidade “homossexual” à parte e, por outro, reafirma a idéia de que o mais importante predicado da “essência humana” pertence à ordem da sexualidade genital, ou melhor, à divisão dos indivíduos conforme suas preferências homo ou heteroeróticas.

No entanto, como assinala o mesmo Weeks, seguindo Foucault, a tônica posta na identidade “homossexual” teve a função de reverter a direção do preconceito, criando uma contradiçãpo no esquema cognitivo do senso comum.
Debatendo publicamente temas como os “direitos dos homossexuais” a ideologia gay acentuou positivamente o que o estigma havia desvalorizado.
O modelo de identidade gay, é assim, o modelo de identidade estratégica de resistência.

Dando um enorme peso à sexualidade na definição da identidade do sujeito, a subcultura gay não atende, como seria previsível a pluralidade de aspirações dos sujeitos homoeroticamente inclinados.

Recusando as definições prévias do “homossexualismo”, o movimento gay procurou criar uma alternativa identificatória aos modelos ainda hoje oferecidos aos indivíduos homoeroticamente inclinados, qual seja, os modelos da “mulherzinha” e do “viado”. Na ideologia gay, advoga-se a idéia de que homens que se sentem atraídos por outros homens nem por isso perdem suas características masculinas. (...) É possível, a partir desta ideologia, imaginar modelos de “identidade masculina” onde o atributo da atração pelo mesmo sexo não exija, como conseqüência, a renúncia a esta mesma identidade.

Depois da AIDS, tudo o que se desenhava em círculos minoritários do campo cultural ganhou uma publicidade inusitada. Através de depoimentos pessoais, livros e filmes, sujeitos portadores do vírus ou de sintomas da doença passaram a falar livremente de suas experiências sexuais e amorosas para o público “heterossexual”, sem constrangimento ou censura.

(...)

O Homoerotismo Diante da Aids
A Inocência e o Vício- Jurandir Freire Costa