sábado, junho 06, 2009

A Inocência e o Vício- introdução.

A subjetividade é um efeito das linguagens, das práticas lingüisticas que determinam suas regras de formação e reconhecimento privado e público.

Cultura significa inclusão e exclusão de certas possibilidades expressivas do sujeito e seu desejo. Estruturamos nossas subjetividades de acordo com os ideais de eu ou subjetividades modelares pressupostas na descrições do que "deve ser o sujeito" e que fazem parte de toda recomendação ética.
Acontece que a estabilidade da cultura, sem a qual não existiriam recorrência de regras e tampouco subjetividades que se reconhecessem como subjetividades, dá se às custas de diferenças e oposições ao que não é idêntico.
Uma cultura só reconhece sua identidade distinguindo-se de outras.
O mesmo ocorre com a identidade do sujeito e, finalmente, com os ideias de eu.
Para que um ideal de eu mantenha-se operante é preciso que existam casos ou ocorrências subjetivas que contrariem ou não cumpram os requisitos exigidos para a realização do ideal.
Assim, a construção de subjetividades ideais implica, ipso facto, a figura da antinorma ou do desvio do ideal, representada pelos que não podem, não sabem ou nao querem seguir as injunções ideais.
A esses, diz Freud, é reservada a posição de objeto do desejo de destruição da maioria, que em nme da norma ideal outorga-se o poder de atacar ou destruit física ou moralmente os que dela divergem ou simplesmente se diferenciam.
É o mecanismo da rivalidade em torno do "narcisismo das pequenas diferenças", uma das molas de sua interpretação do fato cultural.

Apresentando certas práticas sexuais como anormais, doentes, antinaturais ou moralmente incorretas, a linguagem da discriminação estigmatiza numerosos sujeitos que se afastam dos ideais sexuais da maioria.

Viver sendo considerado no dia-a-dia como "homossexual" é um fardo moral e psíquico extremamente custoso para muitos homens.
Uma vez etiquetados assim são constantemente identificados por suas preferências sexuais, as quais por seu turno são moralmente desaprovadas
, seja pelo ridículo seja pela classificação no rol das patologias médico-psiquiátricas ou mesmo psicanalíticas.

Grande parte não encontra respostas satisatórias para suas aspirações eróticas nos modelos de identidade sócio-sexuais disponíveis, isto é, nos modelos "heterossexuais", "homossexuais" ou "bissexuais".

Homoerotismo é uma noção mais flexível que descreve melhor a pluralidade das práticas ou desejos dos homens same-sex oriented.
Interpretar a idéia de "homossexualidade" como uma essência, uma estrutura ou denominador sexual comum a todos os homens com tendências homoeróticas é incorrer a um grande erro.
Penso que a noção de homoerotismo tem a vantagem de tentar afastar-se tanto quanto possível desse engano.
Primeiro, porque exclui toda e qualquer alusão a doença, desvio, anormalidade, perversão etc., que acabaram por fazer parte do sentido da palavra "homossexual".
Segundo, porque nega a idéia de que existe algo como uma "substância homossexual" orgânica ou psíquica comum a todos os homens com tendências homoeróticas.
Terceiro, enfim, porque o termo não possui a forma substantiva que indica identidade, como no caso do "homossexualismo", de onde derivou o substantivo "homossexual".
O último aspecto é importante por seus efeitos imaginários.
Porque usamos na linguagem ordinário o substantivo "homossexual" terminamos reféns de nossos hábitos.
O emprego freqüente do termo leva-nos a crer que realmente existe um tipo humano específico designado por esse substantivo comum.
Vamos além, acreditamos que a peculiaridade apresentada por esse tipo é uma propriedade permanente da natureza de certos homens, que independe das descrições que a tornam visível e plausível aos nossos hábitos lingüísticos.


Quando emprego a palavra homoerotismo refiro-me meramente à possibilidade que têm certos sujeitos de sentir diversos tipos de atração erótica ou de se relacionar fisicamente de maneiras diversas com outros do mesmo sexo biológico.
Em outras palavras, o homem homoerótico não é aquele que possui um traço ou um conjunto de traços psíquicos que determinam a inevitável e necessária expressão da sexualidade homoerótica em quem quer que os possuísse.
A particularidade do homoerotismo em nossa cultura não se deve à pretensa uniformidade psíquica da estrutura do desejo comum à todos; deve-se, sugiro, ao ato de ser uma experiência subjetiva moralmente desaprovada pelo ideal sexual da maioria.
Dizer isto é dizer que numa cultura como a nossa, voltada para a idéia de realização afetiva e sexual, privar certos sujeitos dessa realização é extremamente problemático.
Tanto mais quanto os mesmos sujeitos foram ensinados a desejar esse tipo de satisfação.

O emprego do termo visa sobretudo distanciar o interlocutor de sua familiaridade com a noção de "homossexualidade".

A palavra "homossexual" está excessivamente comprometida com o contexto médico-legal, psiquiátrico, sexológico e higienista de onde surgiu.
O "homossexual", como tento mostrar, foi uma personagem imaginária com a função de ser a antinorma do ideal de masculinidade requerido pela família burguesa oitocentista.

Com a introdução do termo homoerotismo, tomado de Ferenczi e que teve o assentimento de Freud, tive o intuito de apontar para aspector do problema que permanecem oculto enquanto permitimos usando as noções de "homossexualismo", "homossexual", "homossexualidade".

Nunca perguntamos- até porque é assim que formamos crenças- o que nos levou a crer que existe "algo de muito importante", "de muito fundamental" para nossa vida moral no fato de aprendermos a dividir os humanos em "homossexuais" e "heterossexuais".

Não existe objeto sexual "instintivamente adequado ao desejo" ou vice-versa, como reitera a psicanálise.
Todo objeto de desejo é produto da linguagem que aponta para o que é "digno de ser desejado" e para o que "deve ser desprezado" ou tido como indiferente; como incapaz de despertar excitação erótica.

Por que imaginamos que exista uma atração única, uniforme e suficiente para definir a identidade sexual, social e moral de uma pessoa por trás de tantos desejos e condutas díspares?
Por acaso tal atração é feita de uma "mesma substância", reconhecível em suas propriedades estáveis e capaz de reproduzir-se e repetir-se emocinalmente em pessoas diversas?

No século XIX, médicos, sexólogos, psquiatras, juristas, etc, definiam de várias formas o "homssexual".
Eram questões jurídicas-legais e tratavam dos limites histórico-sociais do ideário burguês, então triunfante e em pleno apogeu.
Tratavam de "até onde a idéia de igualdade, liberdade e direito à privacidade podia ser respeitada" sem que o modo de vida burguês fosse contestado ou posto em cheque. Por conseguinte a preocupação com a "verdadeira homossexualidade" na versão "adâmica" do "homossexualismo natural", reflete a obssessão criada pelas ideologias instintitivistas, evolucionistas e racistas do século XIX para justificar o modelo da sexualidade familiar, conjugal e heterossexual enquanto fortaleza da moral privada e signo da superioridade da cultura burguesa frente as outras classes sociais e aos povos colonizados.

Concordamos, porém, em favor do esclarecimento da discussão, que a "homossexualidade" seja um fenômeno geneticamente determinado. A questão no caso seria: por que tamanho interesse nisso? Por que seria indispensável encontrar genes responsáveis pelo fato de homens se sentirem eroticamente atraídos por outros homens?
Por que não nos interessamos em pesquisar que genes são responsáveis pela "verdadeira musicalidade dos verdadeiros músicos" à fim de distingui-los dos "músicos de ocasião" ou dos "músicos que aceitam fazer música e que se comportam como músicos, mas que não são verdadeiros músicos porque lhes faltam a verdadeira sensibilidade musical e os genes da musicabilidade?" Por que não temos interesse em fazer o mesmo com a "futebolisticidade"?

A atração que em nossa sociedade sentimos pela diferenciação entre "homossexuais" e "heterossexuais", a ponto de imaginar que não podemos viver sem ela, é tão "naturalmente" determinada quanto a divisão entre gentios e cristão, católicos e protestantes, castos e libertinos, metropolitanos e colonizados, ocidentais e orientais, civilizados e primitivos, etc. (...)
A busca de uma constituição genética particular aos sujeitos com inclinações homoeróticas só pode ter, então, um objetivo moralmente normativo. (...) Por que procurar legitimar uma determinada moral sexual recorrendo à benção da natureza?

Jamais fazemos o exercício imaginativo de supor como seria a vida de alguém que, malgrado sua vontade, fosse permanentemente obrigado a ser reconhecido por sua preferência erótica e não por outras qualidades pessoais que quisesse ver apreciadas e respeitadas pelos outros. No entanto seria interessante imaginar como reagiriam certos homens heteroeroticamente orientados, caso tivessem que conviver com a exposição pública de algumas de suas tendências sexuais, costumeiramente resguardadas do olhar público por nossos hábitos culturais.
Não custa nada perguntar como esses homens reagiriam se tivessem que responder socialmente, não enquanto maridos, pais, profissionais, artistas, trabalhadores, cidadãos, etc., e sim enquanto "praticantes do coito anal", "adeptos do sexo oral", "masturbadores costumazes" ou mesmo "usuários freqüentes de filmes e revistas pornográficas".
O exemplo nada tem de caricato. Ele é apenas ilustrativo do respeito que dedicamos à privacidade da maioria heteroerótica e do desrespeito com que tratamos a preferência sexual das minorias.


Enquanto sujeitos da linguagem e da sexualidade não podemos querer deixar de falar e desejar, mas enquanto sujeitos da vontade podemos redescrever moralmente as conseqüências daquilo que não pudemos escolher.

A Inocência e o Vício- Jurandir Freire Costa.