terça-feira, fevereiro 17, 2009

Amor?

Em suma, o casal tornou-se descartável como a esferográfica e o isqueiro.
"Não funciona mais? Jogue fora."

Em geral, preferimos encarar o casamento não como a construção laboriosa de uma vida juntos, mas como uma rápida contabilidade de prazeres: está chato? Acabe logo.

É claro que é melhor que a vida de um casal não seja uma sauna úmida onde todos se perdem e quase sufocam. (...)
Mas talvez não seja necessário que todo esse processo seja quase sempre descrito e apresentado como uma separação,
e não como a constituição ou a invenção de laços diferentes e viáveis.
Parece que, em nossa cultura, amadurecendo,
todos devem aprender a separar-se,
mas ninguém deve aprender a relacionar-se.

Ora, minha simpatia pelos esforços para manter e conciliar relações é uma maneira de apostar que a maturidade não só seja a capacidade de tolerar as separações mas também consista em inventar uma arte de relacionar-se.

Durante muito tempo, pensava que fôssemos todos vítimas de um ideal inalcançável:
a visão de um casal gloriosamente feliz no amor e no sexo.
Os casais concretos fracassariam por almejarem tamanha perfeição.
Cada dificuldade deixaria os parceiros inconsoláveis ao descobrirem a distância entre seu dia-a-dia e o ideal. Logo eles procurariam outras chances.

Pois me pareceu que, contrariamente ao que achava no passado, o convívio amoroso e sexual não é nosso ideal cultural dominante.
O casal moderno não sofre de um excesso de idealização da felicidade casamenteira.
Ao contrário, ele luta (batalha bem mais ímpar) contra uma falta de idealização:
o casal não tem onde encontrar inspiração, pois seus percalços não fazem sonhar ninguém.

Nossa cultura idealiza o amor romântico.
Mas você deve ter constatado: filmes e contos propõem quase sempre que idealizemos amores impossíveis, separações e nostalgias arrasadoras ou primeiros encontros deslumbrantes.
Pouquíssimas vezes, encontramos uma visão ideal de como é durar no amor e viver juntos.
Em geral, esse é um tema para comédia ou "vaudeville".
É sublime apaixonar-se, separar-se ou ser separado pela fatalidade, mas é ridículo conviver.

As histórias de amor dificílimas, a gente adora no "Aguenta Coração", do Faustão, em que elas valem como fragmentos de novela, ficções com as quais sonhar.
Muito mais difícil é apreciá-las na realidade.
Em geral, em matéria de amor, somos ousados apenas nos devaneios literários.

Um sujeito hesita, imóvel, entre desejos diferentes: amo ou não amo?
E, se amo, qual das duas ou dos dois?
É uma maneira (dispendiosa) de não perder nada.
Ou de nunca apegar-se para evitar as dores de uma separação.
Outro sujeito, prefere guardar a paixão no gueto dos sonhos, onde está sob controle.
São cálculos que podem parecer avaros, covardes ou absurdos e, sobretudo, dolorosos.

Para Kipnis, diante da vida de casal (e no meio dela), nossa ambivalência é sem solução:
"Por um lado, o anseio por intimidade; por outro, o desejo de autonomia;
por um lado, o conforto e a segurança da rotina; por outro, sua medonha previsibilidade;
por um lado, o prazer de ser conhecido profundamente (e de conhecer profundamente outra pessoa);
por outro, os papéis restritivos que essa familiaridade prevê".

Kipnis acrescenta que a familiaridade produz "a rotina do "Pare de Tentar Me Mudar" e a rotina do "Pare de Me Culpar por Sua Infelicidade'".
São, de fato, duas grandes armadilhas da intimidade do casal:
"Você me conhece tão bem que o deleite da surpresa foi substituído pela paixão pedagógica de me transformar".
Ou então: "Você me conhece tão bem que consegue sempre encontrar em mim as razões de sua insatisfação".

Nossa vida comporta sempre uma dose certa de frustrações.
Atribuir falhas e malogros a uma causa definida é uma grande consolação.
Não sei encontrar novos amigos e amores? É que sacrifiquei meus melhores anos a um casamento que me arrasou.
Meu orçamento estoura a cada mês? É que o maldito (ou a maldita) foi embora com meu dinheiro.
Não saio da depressão? É que o outro (ou a outra) levou consigo minha vontade de viver.

Nossas neuroses não são quase nunca solitárias:
os traços patológicos de nossa personalidade se expressam em nossas relações com os outros.
Quando, depois de amores e apaixonamentos, dois sujeitos se acasalam solidamente,
é possível que cada um esteja apenas oferecendo ao outro a ocasião de viver suas manhas neuróticas com a assiduidade desejada.
(...)Corolário e moral da história: quem muda de parceiro sem mudar de neurose vai ao encontro das mesmas pauladas tomadas ou dadas que sejam.

Contardo Calligaris