quinta-feira, janeiro 29, 2009

A Representação do Eu na Vida Cotidiana

As máscaras são expressões controladas e ecos admiráveis do sentimento, ao mesmo tempo fiéis, discretas e supremas.
As coisas vivas em contato com o ar devem adquirir uma cutícula,
e não pode argumentar que as cutículas não são corações;
contudo alguns filósofos parecem aborrecidos com as imagens por não serem objetos
e com as palvras por não serem sentimentos.
Palavras e imagens são como as conchas,
não menos parte da natureza do que as substâncias que conrem,
porém melhor dirigidas ao olhar e mais abertas à observação.


Geoge Santayana

Aqueles que têm tempo e talento para desempenhar bem uma tarefa não podem, por este motivo, ter tempo para mostrar que estão representando bem.
É possível dizer que algumas organizações resolvem este dilema delegando oficialmente a função dramática a um especialista,
que gastará o tempo expressando o significado da tarefa e não perderá tempo em desempenhá-la efetivamente.

Como disse Sartre: "O aluno atento que deseja ser atento, olhos fixos no professor, ouvidos bem abertos, consome-se tanto em representar o papel de atento que termina por não ouvir mais nada".

Se um indivíduo tem de dar expressão a padrões ideais na representação, então terá de abandonar ou esconder ações que não sejam compatíveis com eles.
Quando tal conduta imprópria é em certo sentido satisfatória como muitas vezes acontece, verifica-se então comumente que o indivíduo entrega-se a ela secretamente.

É mantida uma impressão de infabilibilidade, tão importante em muitas representações.
É famoso o comentário de que os médicos enterram seus erros.

Muitas escolas e instituições anunciam qualificações e exames de admissões inflexíveis, mas de fato rejeitam muito poucos candidatos.
Por exemplo, um hospital de doentes mentais pode exigir que os candidatos e servidores se submetam a um exame de Rorschach e a uma longa entrevista, mas contrata todos os que aparecem.

Na nossa sociedade, alguns gestos involuntários ocorrem numa variedade tão ampla de representações, dando impressões geralmente tão incompatíveis com as que se pretende transmitir, que estes acontecimentos inoportunos adquiriram uma condição simbólica coletiva. Primeiro, o ator pode tropeçar, claudicar, cair; pode arrotar, bocejar, coçar-se ou ter flatulência; pode, acidentalmente, esbarrar em outro participante. Segundo, o ator pode agir de tal maneira que dê a impressão de estar preocupado demais ou de menos com a interação. Pode gaguejar, esquecer o que tem a dizer, mostrar-se nervoso, culpado ou consciente de si mesmo; pode ter inadequadas explosões de riso, raiva ou outros estados emocionais que momentaneamente o incapacitam; pode revelar um envolvimento e interesse demasiado sérios ou pequenos demais.

Um meio de tratar essas interrupções perturbadoras consiste, para as pessoas envolvidas, em rir delas, como sinal de que suas implicações foram compreendidas mas não levadas a sério.

A conservação desta concordância superficial, desta aparência de consenso, é facilitada pelo fato de cada participante ocultar seus próprios desejos por trás de afirmações que apóiam valores aos quais todos os presentes se sentem obrigados a prestar falsa homenagem.

Na vida cotidiana, é em geral possível para o ator criar propositadamente quase todos os tipos de falsa impresão sem se colocar na posição indefensável de ter dito uma flagrante mentira. As técnicas de comunicação, tais como a insinuação, a ambigüidade estratégica e omissões essenciais permitem ao informante enganador aproveitar-se da mentira sem tecnicamente dizer nenhuma.

A despeito de nossa boa vontade em apreciar as exigências expressivas dos vários tipos de situação, tendemos a vê-las como casos especiais, inclinamo-nos a nos manter cegos para o fato de que representações diárias seculares devem passar muitas vezes por uma rigorosa prova de idoneidade, conveniência, propriedade e decoro. Talvez essa cegueira se deva, em parte, ao fato de que, como atores, somos freqüentemente mais conscientes dos padrões que deveríamos ter aplicado à nossa atividade, mas não o fizemos, do que dos padrões que irrefletidamente usamos.

Em outras palavras, devemos estar capacitados para compreender que a impressão de realidade criada por uma representação é uma coisa delicada, frágil, que pode ser quebrada por minúsculos contratempos.

A coerência expressiva exigida nas representações põe em destaque uma decisiva discrepância entre o nosso eu demasiado humano e nosso eu socializado.
Como seres humanos somos, presumivelmente, criaturas com impulsos variáveis, com estados de espírito e energias que mudam de um momento para o outro.
Quando porém nos revestimos de caráter de personagens em face de um público, não devemos estar sujeitos a altos e baixos.

Como diz Santayana: Mas, quer a fisionomia que adotamos seja alegre ou triste, ao tomá-la e acentuá-la definimos nosso temperamento supremo predominante.
Daí em diante, enquanto continuarmos sob o feitiço deste autoconhecimento, não viveremos apenas, mas atuaremos;
compomos e representamos nosso personagem escolhido, defendemos e idealizamos nossas paixões, encorajamo-nos eloqüentemente a ser o que somos-
dedicados ou desdenhosos, descuidados ou austeros;
monologamos (diante de um público imaginário) e envolvemo-nos graciosamente no manto de nosso papel inalienável.
Assim trajados, solicitamos aplausos e esperamos morrer em meio ao silêncio universal.
Declaramos mostrar-nos à altura dos belos sentimentos que enunciamos, quando tentamos acreditar na religião que professamos.
Quanto maiores nossas dificuldades, maior nosso zelo.
Por baixo de nossos princípios propalados e de nossa linguagem comprometida, devemos esconder assiduamente todos os defeitos de nosso temperamento e conduta, e isto sem hipocrisia,
visto que nosso personagem deliberado é mais verdadeiramente nós mesmos que o fluxo de nossos devaneios involuntários.


Ao dizer que os atores agem de maneira relativamente informal, familiar e descontraída quando estão nos bastidores em atitude vigilante durante a representação, não se deve pensar que as coisas agradáveis e interpessoais da vida- a cortesia, o calor humano, a generosidade e o prazer com a companhia dos outros- estão sempre reservadas aos bastidores, enquanto a suspeita, a pretensão e a demonstração de autoridade são próprias das atividades da região de fachada.
Freqüentemente parece que, seja qual for o entusiasmo e vivo interesse que nos anima,
nós os reservamos para aqueles diante dos quais estamos representando,
e que o sinal mais claro de solidariedade de bastidores é sentir a segurança de cair num estado de espírito insociável de mal-humorada e silenciosa irritabilidade.


Como indicou Riezler, temos portanto uma moeda social básica, com respeito de um lado e vergonha do outro.
Como demonstra um sem-número de contos populares e de ritos de iniciação, freqüentemente o verdadeiro segredo por trás do mistério é que realmente não há mistério.

E porque esses padrões são muito numerosos e muito difundidos, os indivíduos que são os atores vivem, mais do que poderíamos pensar, num mundo moral.
Mas, enquanto atores, os indivíduos interessam-se não pela questão moral de realizar essas ações,
mas pela questão amoral de maquinar uma impressão convincente de que esses padrões estão sendo realizados.


Erving Goffman- A Representação do Eu na Vida Cotidiana.