domingo, dezembro 05, 2010

Narcisismo

Basear a identidade no narcisismo significa dizer que o sujeito é o ponto de partida e chegada do cuidado de si. A noção de narcisismo é entendida como uma vertente do individualismo contemporâneo particularmente insensível a compromissos com ideais de conduta coletivamente orientados. (Este uso da palavra não coincide com o que é feito na literatura técnica psicanalítica. Nascisismo, em psicanálise é a condição mental indispensável à aquisição do sentimento e da consciência da “identidade” subjetiva. Neste sentido, nada tem a ver com “egoísmo” nem com distúrbio “psicopatológico”, em certas leituras normativas do desenvolvimento psíquico.)
Família, pátria, Deus, sociedade, futuras gerações só interessam ao narcisista como instrumentos de auto-realização, em geral entendida como sucesso econômico, prestígio social ou bem-estar físico emocional. O hedonismo, por sua vez, é um efeito desta dinâmica identitária. O narcisista cuida apenas de si, porque aprendeu a acreditar que a felicidade é sinônima de satisfação sensorial. Assim, o sujeito da moral hodierna teria se tornado indiferente a compromissos com os outros- faceta narcisista- e a projetos pessoais duradouros- faceta hedonista.
Esta leitura é plausível e corresponde, em certa medida, ao que podemos observar. Mas simplifica questões tortuosas. Em primeiro lugar, podemos perguntar se, de fato, abdicamos a todos os valores tradicionais; em segundo lugar, se não abdicamos a eles, como tais valores foram reconfigurados ao estado atual da cultura?
Enunciada de outra maneira, a pergunta é a seguinte: se não delegamos mais à religião, ao trabalho, à política ou à família o papel de dar sentido à vida, o que funciona com valor transcendente aos meros propósitos de auto-realização?
Minha hipótese é a de que essas instâncias não perderam toda a força normativa que tinham. Simplesmente, foram “privatizadas”.

O lugar do universal, do incontestável, passou a ser ocupado pelo mito cientificista. Entre os fabricantes de opinião, em especial a mídia, o mito científico encampou o direito intelectual de falar do lugar da Verdade, provocando uma reviravolta no terreno dos valores.
Agora, o bom ou o Bem são definidos pela distância ou proximidade da “qualidade de vida”. A renaturalização das condutas humanas, todavia, não tenta descartar os antigos valores, e sim retraduzi-los no triunfalismo cientificista. O cuidado de si, antes voltado para o desenvolvimento da alma, dos sentimentos ou das qualidades morais, dirige-se agora para a longevidade, a saúde, a beleza e a boa forma. Inventou-se um novo modelo de identidade, a bioidentidade, e uma nova forma de preocupação consigo, a bioascese, nos quais a fitness é a suprema virtude. Ser jovem, saudável, longevo e atento à forma física tornou-se a regra científica que aprova ou condena outras aspirações à felicidade.
O sentido da existência, a origem das obrigações éticas, as escolhas dos estilos de viver, todos estes items implicados na busca da felicidade foram agregados ao rol de perguntas que a ciência, cedo ou tarde, vai responder.
Tornamo-nos, dessa forma, politeístas tolerantes, sexualmente liberados e coplacentes co as pequenas transgressões morais, desde que nada disso desequilibre as taxas de colesterol.
Para muitos indivíduos, desejável é o que pode ser sensorialmente experimentado como agradável, prazeroso ou extático; indesejável é o que pede tempo para se realizar ou que, ao se realizar, não excita ou traz o gozo sensorial esperado. O Outro atrai não por ser uma “chance para a ação” mas por ser uma “promessa de sensação”.
Hoje, a figura do desvio é a estultícia. Criamos um código axiológico no qual os “normais” são os que dão mostras da vontade forte. No pólo oposto, estão os fracos, os piores, os estultos. Estultícia é a inépcia, a incompetência para exercer a vontade no domínio do corpo e da mente, segundo os preceitos da qualidade de vida. Os estultos são, então, tipificados segundo o grau ou a natureza do desvio em: a) dependentes ou adictos, isto é, os que não controlam a necessidade de drogas lícitas e ilícitas; de sexo; de amor; de consumo; de exercício físico; de jogos de azar; de jogos eletrônicos ou da internet etc. b) desregulados, isto é, os que não podem moderar o ritmo ou a intensidade das carências físicas (bulímicos, anoréxicos) ou mentais (portadores de síndrome do pânico, fobias sociais); c)inibidos, isto é, os que se intimidam com o mundo e não expandem a força de vontade, como os dístimicos, os apáticos, os não assertivos, os “não assumidos”; d) estressados, isto é, os que não sabem priorizar os investimentos afetivos e desperdiçam energia, tornando-se perdulários da vontade: e) deformados, isto é, os que ficam para trás na maratona da fitness: obsesos, manchados de pele, sedentários, envelhecidos precocemente; tabagistas; não siliconados; não lipoaspirados etc.
A teia cultural que anima a contradição se baseia no jogo da tutela e da culpabilização. O indivíduo deve creditar o sucesso de seus esforços à sua vontade. Mas, em caso de fracasso, deve se sentir fisicamente doente, e, por isso mesmo, não contstar o valor e o sentido dos ideais corporais dominantes. O anseio por independência, ao falhar, deve ser visto como uma anomalia biológica e não como denúncia da estreiteza da norma social em face da diversidade expressiva da vida humana. O sujeito vê-se, simultaneamente, como onipotente- ao acreditar que pode criar o eu moral e psicológico a partir da pura experiência sensual do corpo- e como impotente- ao ser forçado a crer que o sentido do sofrimento humano está inscrito nos genes ou nos circutos neuro-hormonais.
A segunda contradição tem a ver com a relação com o outro. Em muitos casos, o cuidado de si, centrado na forma corpórea e no gozo das sensações vem desgastando a importância emocional do outro humano. Todavia, continuamos a precisar do reconhecimento do outro para estarmos seguro do valor de nossos ideais de eu Chegamos, então, a um beco sem saída: menosprezamos o outro próximo, em seu papel de avalista do que somos, e idealizamos o outro anônimo, cuja preocupação emocional conosco é igual a zero. Aqueles que, de fato, têm responsabilidade para conosco não conseguem se sobrepor aos modelos impessoais das celebridades ou das figuras de outdoors veiculados pela publicidade. O corpo da publicidade, entretanto, não se dirige diretamente a nenhum de nós ou considera as peculiaridades de nossas histórias de vida, ao provocar o nosso desejo de imitá-lo.
Tudo que resta é correr atrás, sempre em atraso e de forma angustiante, do corpo da moda. Até, é claro, chegar a velhice e semos convencidos a assumir uma outra bioidentidade, a da terceira idade, última tentariva bioascética de permanecer jovem, vital, por dentro da moda.
A terceira contradição concerne à relação da felicidade com o prazer. Quanto mais falamos em minimizar o sofrimento e otimizar o prazer, mais nos privamos de prazer e mais nos atormentamos com os sofrimentos que não podemos evitar. Tornamo-nos seres espartanos, anedônicos e cronicamente ansiosos diante da perspectiva de dores e frustrações. A cada episódio de sofrimento, reagimos como se algo extraordinário nos tivesse atingido e como se, de alguma maneira, o que padecemos tivesse sido causado por falhas no cumprimento de nossos deveres bioascéticos.
A cultura narcísica, da exibição publicitária, ao explorar o hábito das confissões públicas de segredos sexuais e emocionais, com vistas à venda de bens e serviços. A cultura somática finalizou o assédio ao fazer do corpo espelho da alma. O corpo se tornou a virtine compulsória de nossos vícios e virtudes, permanentemente devassada pelo olhar do outro anônimo.
Disso resultam algumas das caracterísitcas marcantes do indivíduo atual. A primeira é a desconfiança persecutória. Dado que a identidade é exposta, de pronto, na superífice corporal, o outro se tornou um observador incômodo e invasivo de nossos possíveis desvios bioidentitários e não um parceiro de ideais comuns. Se nos sentimentos bem com a nossa forma física, tememos que o outro nos inveje por não ter alcançado o que alcançamos; se nos sentimos mal, ele é um suposto acusador, que nos humilha pelo simples fato de encarnar a norma somática que lutamos, enarniçadamente, para corporificar.
Qualquer comentário sobre hábitos alimentares, por exemplo, desencadeia, em geral, uma tagarela, bizarra e infantilizada competição sobre quem faz mais exercícios; quem come menos gordura; quem é capaz de perder mais quilos em menos tempo; quem parou de fumar há mais tempo; quem ingere mais vegetais, alimentos e fármacos naturais etc.
Há um sentimento persecutório da vulnerabilidade ao olhar do outro.
O indivíduo jamais consegue estar tranqüilo consigo, isto é, livre da invasão persecutória do ideal da fitness.

Jurandir Freire Costa- O Vestígio e a Aura


Da cultura da vergonha para a cultura da culpa, houve a atrofia da esfera pública.
Reduzidos ao estado de massa consumidora de bens e serviços, como no capitalismo avançado, ou ao estado de massa privada de qualquer consumo, como nos países pobres, grande parte dos indivíduos das sociedades ocidentais vêem seus direitos de cidadania cada vez mais circunscritos à retórica vazia das elites que controlam o poder. Emergem as ideologias das liberdades individuais, simulacro das liberdades públicas reais.
Ao cidadão supérfluo e politicamente descomprometido oferece-se o consolo da militância em favor dos exaustivos e monopolizantes exercícios de intimidade. Esta cultura do desengajamento, Christopher Lasch chamou de ‘cultura narcísica’ e mais recentemente Peter Sloterdijk descreveu como reinado da razão ‘cínica’. A cultura do narcisismo é aquela em que o conjunto de itens materiais e simbólicos maximizam real ou imaginariamente a condição de desproteção e superfluidade dos indivíduos, forçando o Ego a ativar, de modo extremo, os mecanismos de autopreservação da identidade própria. Ou, dito de outro modo, é a cultura onde o recrudescimento da angústia diante da experiência crescente de impotência e desamparo é levada a um tal ponto que torna conflitante e muitas vezes inviável a prática da solidariedade social. A cultura do cinismo, por seu turno, é a variante da cultura narcísica, que enfatiza os processos de justificação do status quo por parte daqueles que, cientes dos instrumentos de acaliação crítica, usam estes instrumentos com o objetivo de reforçar a prática social dominante.
É necessário analisar qual o sentido do desenfreado culto ao corpo e ao sexo, que contagiou as classes médias e urbanas brasileiras.
O indivíduo de classe média viu-se constrangido a legitimar a ordem social, demitindo-se da participação política e aderindo à ficção de que a essência de sua humanidade e liberdade encontrava-se no corpo saudável e no sexo liberado. Para isso, montou-se uma parafernália técnco-teórica destinada a acolher, orientar, corrigir e avalizar a justeza de pedidos ansiosos de sujeitos em busca de sexos livres de conflitos e corpos isentos de mortalidade.
Gerou-se o mito da eterna juventude e do gozo infinito, que ainda hoje alimenta o comércio do bem-estar pré-fabricado.
Injunções deste gênero precipitam os sujeitos num permanente estado de culpa/e ou de dívida para com uma imagem do corpo e do sexo fabricada pelo mass-media e permentada na cultura do apolitismo e da exaltação da vida privada. Não há meios de realizar a norma psicossomática da cultura narcísica. Nunsa se é suficientemente saudável ou livre sexualmente, frente às exigências da indústria de felicidade individual.
E isto pelo simples fato de que a cadência técnico-industrial da produção de desejos, ou, mais precisamente, de miragens de gozo, é impossível de ser seguida por qualquer consumidor em particular.
O automatismo de preservação narcísica, descrito pela psicanálise, é habitualmente responsável pela homeostase da imagem egóica, tem de ser controlado pelas instâncias ideais, sob pena de impor-se à revelia de qualquer respeito pela estabilidade das normas e leis institucionais ou culturais.
Depende do narcisismo, desta ilusão estruturante, responsável pela experiência de ipseidade e continuidade, a vivência da nossa experiência de identidade. Ele não é uma formação imaginária descartável; é a pré-condição de nossa adaptação pragmática ao mundo.
O produto da cultura narcísica não é o sujeito repleto e saciado física e sexualmente; é o sujeito aflito, ressentido e culpado, às voltas com um perene sentimento de injúria narcísica, e perpetuamente à cata de técnicas e artifícios que venham remediar o mal-estar em viver.
Banido há muito tempo da cidade política, o cidadão viu-se, agora, despido do direito à justiça.
Os indivíduos acreditam-se realmente ameaçados em suas sobrevidas, sem poder contar com nenhuma outra proteção além da própria astúcia, força ou esperteza, neste limiar, pouco importa o outro ou o amanhã, importa sobreviver hoje.

Jurandir Freire Costa- Psicanálise e Moral.