quarta-feira, dezembro 08, 2010

Em muitas culturas, o álcool possuía tanto um significado religioso quanto medicinal, além de ter uma benquista função de relaxamento na condição de droga utilizada no cotidiano e nos dias festivos. E mesmo na literatura da Grécia antiga, que possui muitos tratados sobre o efeito frenético do alcool, nos quais as vantagens e desvantagens eram cuidadosamente avaliadas, nunca se observou, explicitamente, nenhum sinal de sintomas de abstinência.

E por que todo esse reabastecimento não conduziu à ruína? Ora, tal periodo de frenesi coletivo não se refere a uma antiga e normal conduta de vida, e a profunda relação entre frenesi e festa
pronuncia-se contra tal uso. Tempos de festa eram tempos especiais.

Algo diferente parece ocorrer onde a cerveja ganhou espaço de alimento básico, tal como nas regiões do norte e central da Europa no final da Idade Média. Já no café da manhã de muitas localidades se servia uma sopa de cerveja. Entretanto, ela era preparada de forma bem mais fraca
do que nos dias de hoje. O medidor de nível alcoolico do dia a dia deve ter sido suficientemente baixo, de modo que os frenesis- os quais tiveram a oportunidade de se tornar abundantes, uma vez que aumentara a quantidade de dias festivos (no final da Idade Média já eram
contabilizados mais de cem dias ao ano!)- se tornaram mais destacados.

Também aqui vale aquilo que é característico de todas as formas sociais pré-modernas: o ciclo das festas, que estruturou os cursos do ano e da vida, determinou também o ciclo de frenesis que fazia com que a comunidade festiva como que biorritmicamente regressasse com maior ou menor frequencia ao cotidiano apático.

Com a separação da festa e do frenesi nasce aquilo que hoje signfica vício.
Seu princípio histórico foi uma invenção que os árabes levaram para a Europa já no século XII: a destilação do alcool de alta percentagem.

Duas forças totalmente opostas estavam presentes no agente químico: A primeira referiu-se à devastação e à corrosão do culto de Deus, da moral do trabalho e do sentido da família; já a outra força possibilitava a disciplina com muito mais eficácia.

A bebida destilada, que lhe era misturada em porções diárias, servia como um tipo de lubrificante fisiopsicológico assegurando que as funções serão executadas sem dificuldades. As porções distribuídas de destilado parecem conter a exata medida que proporciona a anestesia (e não a embriaguez), onde já se identifica o trabalho preparatório para a posterior disciplina que será exigida nas indústrias.

O trabalhador chega cansado do seu trabalho e quer relaxar em casa; então ele encontra uma moradia sem qualquer conforto, úmida, pouco agradável e suja; ele necessita urgentemente de algo que o alegre, deve ter algo que faça valer a pena o esforço do trabalho, que torne
suportável a expectativa do próximo dia árduo
. Os donos de fábrica até o final do século XIX, distribuíam gratuitamente aguardente para a sua força de trabalho e, com isso, estimularam consideravelmente o alcoolismo entre os trabalhadores. Em muitas fábricas, uma parte do
salário era paga em bebida destilada.

Assim como na Bíblia Deus se fez homem, na modernidade o mercado desenfreado se fez representar no consumo desenfreado de das drogas.
Uma comunidade antiquíssmia adentrou numa nova fase. Da mesma forma que o mercado, as drogas têm sua origem no sacrifício sacro; tal como o mercado, elas se desenvolveram na condição de inseparáveis companheiras e benfeitoras, como acessório e ingrediente de ações de culto, e permaneceram, mesmo quando se destacam desse contexto de culto, a ele relacionadas.

E a droga é absoluta não apenas num sentido técnico, mas também social. Ela é como que destilada para fora de todos os contextos sacros e cessa de ser uma experiência que extasiava e alçava todo o coletivo para além do seu cotidiano. Por um lado, ela se torna
infinitamente banal, é mera substância que provoca frenesi, sem qualquer significado mais elevado. Por outro, ela não tem nada mais sobre si própria. Então, subitamente, ela mesma começa a representar o vago papel do mais elevado, pois deixa de ser acessório para se
tornar algo fundamental,
deixa de ser acidente para se transformar em substância, filosoficamente falando. Em duplo sentido, ela se transforma num concentrado. E isso ocorre não só porque a destilação aumenta sua dosagem alcóolica dez ou até 20 vezes, mas sim porque seu
alto percentual concentra também as mais elevadas expectativas concernentes, no início, a um contexto cultural harmonioso que posteriormente se eleva à esfera sacra. A aguardente se transforma no sucedâneo do sagrado desaparecido, no substituto da própria coisa.

Meios que entorpecem não podem ser desprezados. O que seria da medicina moderna sem a anestesia? A bebida destilada, usada para entorpecer as dores e angústias insuportáveis dos soldados, sendo que ocorria inevitavelmente o entorpecimento do caráter do soldado, pode ser por isso registrada como a “primeira ajuda”. O destilado, como ração periódica para os soldados, como meio de lubrificação psicofisiológico, como algo que garante o funcionar sem dificuldades é, no entanto, algo qualitativamente diferente, a saber, preparação para um cotidiano que não é de modo algum por estados de dor e de angústia cortantes, mas que se tornou, em certa medida, profano, e que, sem a ajuda desses meios de entorpecimento, dificilmente seria suportado.

Na medida em que grupos sociais rigidamente delimitados se tranformaram em massas amorfas e jogadas de um lado para o outro, sem que tivessem meios seguros de subsistência, sem uma coesão social segura, cujos hábitos e costumes tradicionais se desvaneceram. Todos
sentiram a necessidade de escapar desse estado e aspiraram a uma saída. Eis que o álcool destilado a oferece triplamente: ele era muito barato, facilmente acessível e agira de forma rápida, tal como nenhuma outra droga o fizera anteriormente.

O vício é a busca de um apoio vital num objeto falso, sendo que aqueles que o procuram não devem ser informados de que se trata de algo falso. Eles sentem, eles sabem que a substância na qual se aferram não fornece nenhum apoio, mas eles não têm outra e, por isso, cada vez mais se jogam a ela, a mesma substância que os priva daquilo que lhes deveria proporcionar. Quando se fala em sintomas de abstnência, os quais seguem o vício do mesmo modo como a sombra segue a luz, esquece-se facilmente de que é o próprio vício já um sintoma de abstinência. Entretanto, a sua abstnência, que representa uma forma de reação desamparada, silenciosa e continuamente moderna, não é tão evidente. Onde há abstinência perdeu-se algo que fora desejado. A energia emocional, por meio da qual se ligou ao desejado, vagueia por todos os lados, pressiona por recolhimento; e onde ela se vincula com algo que serve como alternativa para tal, e que não se distancia tanto assim do que fora privado e desejado, mas como que se coloca em seu lugar e é tratada como se fosse esse algo, realiza-se aquilo que Freud denominou “feitichismo”. Seja o feitiche um sapato, um tecido, um lápis, uma bebida, é sempre “absoluto” no sentido de que ele é percebido como algo desatado e separado do objeto de desejo que fora
privado. Entretando a escolha do feitiche nunca é aleatória, pois ele deve ser percebido como algo que remete ao privado, tornando possível tal substituição e, por outro lado, deve diferenciar-se dele, de tal modo que o fetiche não lembre claramente o privado, fazendo com que a dor da privação não penetre no limiar da consciência. O fetiche, portanto, possui um significado peculiar e flutuante. Ele representa o abstraído e, ao mesmo tempo, oculta-se.; ele é, na mesma medida, seu substituto e seu código.

Logo que o mercado cresce na forma de uma instância de sociabilização, aprofunda-se a concorrência, que não se restringe mais a um problema específico da relação entre negociantes e compradores, mas se tranforma em problema existencial. A concorrência penetra em todas as
relações de trabalho e não para nem diante da relação familiar tradicional. Pai e filho, mãe e filha, esposo e esposa se tornam tendencialmente concorrentes, assim que os postos de trabalho se tornam exiguos e cada um só pode vender sua própria mercadoria, ou seja, sua própria força de trabalho. O mercado é um caldeirão que junta os diferentes individuos, mas que também os isola no ato de troca. Cada um se troca contra o outro. Por isso, na luta geral do mercado só se impoõe quem troca melhor do que o outro.

E mesmo os mais ricos possuem, no final das contas, menos do que poderiam ter. Sempre se é ameaçado pelo prejuízo e pelo excedente.

O sentido comparativo da mercadoria faz dela própria um sintoma de abstinencia, pois fornece a ela, tambem num aspecto teoretico-funcional, um caráter fetichista, e revela a dinamica de
expansao do capitalismo como viciadora.


O simples desejar mais do que se tem se trransformou numa obstinação penetrante, tenaz e sistematica, e a dinamica sistematicamente viciadora se tornou um pano de fundo social do qual se servem todos os comportamentos viciados particulares.

A privação penetra profundamente tanto nas estruturas sociais quanto no sistema nervoso; ela penetra na conexão completa, no “controle' meneado em volta dos dogmas cristãos e dos sacramentos. É como se o sutil filamento que ligava tudo, de forma invisível, fosse extraído de
seu tecido sólido, tanto na dimensão social quanto na neuronal.

O fato de que a perda dessa coesão vital produziu uma, tal como os estatísticos diriam, correlação significativa com a garrafa de aguardente é corroborado na experiencia de coesão par excellence: a festa.

Pode significar exatamente o contrário: que se hoje se tem mais festas é porque o particular não mais possui a mesma força rebelde e entusiastica de tempos passados; que o aumento de sua quantidade não significou simplesmente mais diversao, mas sim sintoma de abstinencia. Para muitos, a inflaçao festima no limiar dessa epoca representa uma institintiva (certamente não consciente de si e dificil de ser demonstrada empiricamente) formação de anticorpos diante da
fragilizada força de ligaçao do sistema cristao de referencia e de relação.

Foi diante da impressao de um consumo excessivo de aguardente por parte dos trabalhadores assalariados, para os quais o consumo do do ópio se apresentava, em muitas regioes, excessivamente caro, que Marx pode formular sua famosa metafora da religiao como “opio do povo”. De certo modo, essa metafora perdeu o trem da historia, ela não interessa ao tempo no qual a pobreza não mais se afina com o apoio transmitido pela religiao.

O alcool destilado pode existir por séculos sem que fosse considerado uma substancia viciadora.
Foi uma imensa experiencia de privaçao que engendrou um novo padrao de comportamento social, que se denomina vicio.
A privaçao de tudo aquilo que era solido, duradouro e veneravel, produz uma sobriedade profana e sem compaixao.

O viciado sabe que a substância com a qual ele se agarra não fornece um apoio verdadeiro, mas ele não tem alternativa e nela se aferra. O seu organismo “crê” na substância e não para de exigi-la, embora ele duvide de seu efeito redentor. O vício torna evidente a dimensão fisiológica da crença e da descrença.

Tal como o álcool, o ópio começou sua carreira como calmante e analgésico e representou, até o início do século XIX, um papel semelhante ao representado hoje pela aspirina. Ele teve um ligar fixo na farmácia da casa. O médico familiar o receitou como nenhum outro medicamento.

Se os notoriamente desiguais ópio e haxixe são considerados mais oportunos do que o álcool,isso se deve ao fato de que ambos podem exercer uma estimulação especificamente desencadeadora de fantasia.

Eu o tomei e, dentro de uma hora, oh céus! Que revolução! Que ascensão dos mais profundos abismos do meu espírito! Um apocalipse do mundo dentro de mim! O ter-me aliviado das minhas dores era agora insignificante diante dos meus olhos: todo aspecto negativo foi tragado pela imensidade daqueles efeitos positivos que se abriram diante de mim, no abismo da alegria então repentinamente revelada. A felicidade podia agora ser comprada com uma moeda e carregada no bolso do casaco: êxtases portáteis poderiam ser engarrafados e a paz de espírito poderia ser remetida em galões pela diligência do correio. (Thomas de Quincey, 2001).

Mas ele sabe, e por isso escreve, que uma felicidade que pode ser comprada por um preço irrisório pode muito bem significar nenhuma.


Os paraísos artificiais, para os quais o ópio e o haxixe conduzem, têm, por um lado, uma inexprimível raiz no proibido que permite ponderar os paraísos como teologicamente corretos. Por outro lado, tais paraísos possuem o subsolo melancolicamente profundo do sentimento seguro de que, no meio de sua felicidade, o indivíduo se encontra infinitamente solitário.


É um mundo de sensação absoluta: o completo, isolado e desesperançoso deleite da felicidade na forma de seu fugaz substituto. O insistir obstinado em antiparaísos artificiais, como sendo paraísos exclusivamente humanos, num mundo destituído de paraísos.

A camada de verniz poética que se se coloca sobre o ópio e o haxixe, não deve procovar o engano de que eles são tratados cotidianamente conforme o prosaico exemplo do álcool. Ou seja, de que eles são tratados cotidianamente com a intenção de destilar concentrados.

No cenário da bebeida houve uma multiplicação da eficácia tóxica com consideráveis consequencias sociais. A vitória da cocaína sobre as folhas de coca também é um produto do século XIX. Cada vez mais as drogas concentradas, pelas quais se erige um modelo de comportamento, a exemplo da epidemia de destilado se trransforma naquilo que denominamos vício. “entrega-se, aconteça seja lá o que for, a uma fixação emocional que se expressa na forma de um comportamento estereotipado de grande intensidade pulsional.

O tipo de concentração feitichista, que é praticada nas drogas concentradas, também pode ser transferido para o consumo de amendoins, hobgies, qualquer outro meio de obter prazer ou quaisquer outras formas de comportamento. E isso tem tudo a ver com a lógica de desenvolvimento do vício, quando seu padrão básico varia de múltiplas formas e se torna irreconhecível. O vício de comer cada vez mais, o vício de emagrecer, o vício de trabalhar, de fazer sexo, de amar, são, há tempos objetos de pesquisas científicas correntes.

Mas continuará infrutífero o esforço de discernir quais fenômenos podem ser classificados como vícios e quais não podem, enquanto eles não forem compreendidos como sintomas de diluição de seu padrao basico, enquanto não se estiver atento ao processo historico de diluição que se livra do nitido e evidente comportamento de vicio, assim como de tudo que se encontro “parado” e que é pulverizado no moinho da condition moderne.

O que é o vício? Talvez uma teoria do fetichismo possa responder essa questão, pois ela coloca o sintoma de abstinencia e a formaçao substitutiva no contexto ao qual eles pertencem: o teológico. Surpreendentemente, foi um revolucionario russo quem esboçou esse contexto em alguns traços e que, num pequeno escrito dedicado meramente a uma tática política, acidentalmente forneceu a triade que compõe a fórmula do fetichismo moderno: aguardente- igreja- cinema. O autor se chama Trótski. Todos os três distraem, divertem e entretêm. A esse respeito, cada um deles pode colocar-se no lugar do outro, assim como a santíssima trindade. “A necessidade de o ser humano ter contato com o teatral, ou seja, para ver e ouvir algo que o conduza para o incomum, para o deslumbrante, para fora da monotonia da vida, é enorme, insaciável e se faz presente desde a infancia até a velhice. Sair dos trilhos da mesmice opaca, uma vez que rompem a limitação, a algema, o cárcere da experiencia cotidiana."

O destilado acaba com a tradicional cultura do beber. Enquanto a cerveja e o vinho eram consumidos em tragos e o processo de embriaguez era mais gradativo, o copo de bebida destilada é rapidamente virado e o frenesi é, por assim dizer, uma consequencia imediata. O destilado representa um processo de aceleração do frenesi que se vincula internamente a outros processos de aceleração da modernidade. A maximização do efeito, a aceleração e a redução do preço fazem do destilado um filho genuíno da Revolução Industrial. O destilado é, na esfera do beber, aquilo que a cadeira de tear mecânica é para a tecelagem.