domingo, dezembro 05, 2010

Cartas a um Jovem Terapeuta

O psicoterapeuta não deve esperar a gratidão de seus pacientes. Nada de presentes no Natal, na Páscoa ou nas outras festas. Nas curas que proporciona, o psicoterapeuta é, por assim dizer, ele mesmo o remédio. E, nos melhores dos casos, quando tudo dá certo, ele acaba exatamente como um remédio que a gente usou e que fez seu efeito: uma caixinha aberta, com as poucas pílulas que sobraram, no fundo do armário do banheiro. A caixinha é guardada durante um tempo, porque nunca se sabe; um dia a gente a encontra, não se lembra mais qual era seu uso, constata que, de qualquer forma, o remédio está vencido e joga fora. E é bom que seja assim.

De fato, se a psicoterapia faz seu efeito, o paciente pára de idealizar o terapeuta.

Estes são os traços de caráter que eu procuraria em quem quisesse se tornar psicoterapeuta. Não sei decidira ordem, mas todos estes eu gostaria de encontrar:

1) Um gosto pronunciado pela palavra e um carinho espontâneo pelas pessoas, por diferentes que sejam de você.
2) Uma extrema curiosidade pela variedade da experiência humana com o mínimo possível de preconceito.
3) Este ponto é controvertido: além de uma grande e indulgente curiosidade pela variedade da experiência humana, eu gostaria que o futuro terapeuta já tivesse, nessa variedade, uma certa quilometragem rodada.
4) O quarto e último traço que gostaria de encontrar no futuro psicoterapeuta é uma boa dose de sofrimento psíquico. Desaconselho a profissão a quem está “muito bem, obrigado”.

Resumindo, meu jovem amigo que pensa em ser terapeuta, se você sofre, se seus desejos são um pouco (ou mesmo muito) estranhos, se (graças à sua estranheza) você contempla com carinho e sem julgar (ou quase) a variedade das condutas humanas, se gosta da palavra e se não é animado pelo projeto de se tornar um notável de sua comunidade, amado e respeitado pela vida afora, então, bem-vindo ao clube: talvez a psicoterapia seja uma profissão para você.

Por que diabo me aventurarei a explorar os porões de minha cabeça, lugares malcheirosos e arriscados, se eu não for empurrado pela vontade de resolver um conflito, acalmar um sintoma e conseguir viver melhor?

Um psicoterapeuta (e ainda mais um psicanalista) que define uma conduta como “desvio” não fala em nome da psicoterapia e ainda menos em nome da psicanálise. Ele fala quer seja em nome de seu anseio de normalidade social, quer seja em nome de seu esforço para reprimir nele mesmo o desejo que parece condenar.
Segundo, e mais geral, quem estigmatiza categorias universais, como “os homossexuais”, “os sadomasoquistas”, “os exibicionistas” etc., é um atacadista, enquanto a psicanálise trabalha no varejo: a fantasia e o desejo só encontram seu sentido nas vidas singulares.

A psicanálise (e a mesma coisa vale para qualquer psicoterapia) não tem, nem quer ter, uma noção preestabelecida de normalidade. Ou melhor, nosso ideal de normalidade é o estado em que um sujeito se permite realizar suas potencialidades, ou seja, o estado em que nada impede que alguém viva plenamente o que lhe é possível nos limites impostos por sua história e sua constituição.
Se a normalidade for definida assim, ela pode perfeitamente ser o alvo de nossas curas. Quanto à idéia de que curar seria levar de volta um sujeito ao estado anterior à doença, é óbvio que uma psicoterapia não funciona nunca como a extirpação cirúrgica de um cisto ou como a exterminação de uma bactéria, atos que devolveriam o corpo a seu estado anterior. Uma psicoterapia é uma experiência que transforma; pode-se sair dela sem o sofrimento do qual a gente se queixava inicialmente, mas ao custo de uma mudança. Na saída, não somos os mesmos sem dor; somos outros, diferentes.

Você não deve se vestir, conter seus gestos, modular sua aparência ou inibir sua vida pública de forma a compor a vinheta de uma normalidade desejável. Deveria, ao contrário, comportar-se pública e privadamente como seu desejo manda. Você me pergunta por quê? Aqui vai. Concordei com você: em alguma medida, inevitavelmente, o paciente se identifica com o terapeuta.


Espera-se que o terapeuta ou analista empurre o paciente na direção de seu desejo. Aliás, é por isso que uma terapia leva tempo, porque, antes de empurrar, é preciso que esse desejo consiga se manifestar um pouco.

Na época, eu ainda me preocupava em defender a aura de misténo atrás da qual os terapeutas gostam de se esconder, sob pretexto de que o paciente precisa idealizar seu terapeuta. Portanto, fiquei perplexo e calado, com aquela cara de “Hâ!” que os analistas usam para fazer pensar que, primeiro, eles já estariam vendo a razão verdadeira da pergunta que está sendo feita e que, segundo, essa razão (desconhecida por quem pergunta) é infinitamente mais interessante do que a resposta que eles deveriam dar.

Afinal, se um terapeuta não enxergasse (mais) a intensidade e a originalidade do drama e da tragédia por trás da eventual banalidade de cada vida que lhe é contada, ele estaria precisando de reciclagem urgente.

A transferência permite ao paciente viver ou reviver, na relação com o terapeuta, a gama de afetos e paixões que são ou foram também dominantes em sua vida; essa nova vivência, aliás, é a ocasião de modificar os rumos e o desfecho dos padrões afetivos que, geralmente, assolam uma vida, repetindo-se até o enjôo.

O terapeuta não é quem a paciente imagina. A situação leva a paciente a supor que seu terapeuta detenha o segredo ou algum segredo de sua vida e que, graças a esse saber, ele poderá entendê-la, transformá-la e fazê-la feliz. Ou seja, a paciente idealiza o terapeuta, e quem idealiza acaba se apaixonando. Conclusão: o apaixonamento da paciente é um equívoco.

Os amores da vida são fundados num qüiproquó tanto quanto os amores terapêuticos. Quando nos apaixonamos por alguém, a coisa funciona assim: nós lhe atribuímos qualidades, dons e aptidões que ele ou ela, eventualmente, não têm; em suma, idealizamos nosso objeto de amor. E não é por generosidade; é porque queremos e esperamos ser amados por alguém cujo amor por nós valeria como lisonja. Ou seja, idealizamos nosso objeto de amor para verificar que somos amáveis aos olhos de nossos próprios ideais.

O sofrimento psíquico é como a massinha de modelar de nossa infância; você não a quer num determinado quartinho da casa de boneca, empurra com força, consegue deslocá-la, mas ela não sumiu, apenas se insinuou pelas frestas e reaparece no quarto ao lado.

No fim dos anos 60 nasceu o movimento antipsiquiátrico. Era o projeto de esvaziar os asilos, onde apodreciam legiões de pacientes de quem se esperava apenas que se tornassem crônicos e permanecessem presos para não atrapalhar a vida dos outros. Era também a idéia de que os “loucos”, uma vez liberados, poderiam se tornar uma força revolucionária que transformaria a vida de todos. Melhor, ao se tornarem revolucionários, eles de uma certa forma estariam curados: o engajamento político seria sua terapia final.
A palavra “adaptação” voava no ar como o último xingamento. Curar significava permitir que um paciente estivesse melhor, portanto que ele perdesse seu potencial de revolta, ficasse mais resignado e complacente com a realidade política e social do momento. Quem curava traía a causa do proletariado e da revolução. Quem curava levava seu paciente a esquecer-se de que ninguém deve salvar-se sozinho.

Algo daquela época permaneceu, no mínimo, até os anos 90. O quê? A idéia de que a pretensão de curar-se, de ser um pouco mais “feliz”, seria só uma idiotice vendida pela propaganda de iogurte, carros e cartão de crédito, um sonho de consumo feito para nos distrair do que importa. Nisso, a rebeldia nascida nos anos 60 reata com a tradição romântica do século XIX, glorificando a inquietude, a angústia e mesmo o sofrimento psíquico como provas de vitalidade subjetiva.
Nota à margem. É um estranho paradoxo: é bem possível que o sonho de felicidade seja a cenoura atrás da qual nossa cultura individualista e liberal força todos a correr, mas é certo também que o sonho só é uma cenoura eficaz à condição que seja entretida uma insatisfação permanente com nosso destino. Ou seja, é preciso não ser feliz para correr atrás da felicidade e de seus substitutos. O culto da inquietude inconformada e angustiada é tão essencial ao funcionamento de uma sociedade liberal quanto o sonho de felicidade. Mas, enfim, esses eram (e ainda são) os tempos.

Os textos psicanalíticos obscuros são geralmente concebidos para produzir e alimentar amores de transferência. Funciona assim: se você não entende bulhufas, é que meu texto diz coisas que você não quer saber; deve tratar de coisas que têm tudo a ver com você. Portanto, quanto menos você entende, tanto mais você pode e deve me idealizar e me amar como detentor de uma verdade sua que você desconhece e que eu conheço.

Só uma consolação: sempre chega um dia em que o truque pára de funcionar e parece evidente que, quando você não entende, é porque o autor não tem grande coisa para dizer ou, mesmo que tenha algo para dizer, prefere preservar sua aura de mistério a transmitir o que sabe. Em ambos os casos, provavelmente não vale a pena se esforçar.

Desde aquela época, há meios psicanalíticos em que a palavra “paciente” é malvista. Paciente é o chato que se queixa e quer ser curado, enquanto quem faz análise é “analisando” ou “analisante”, não paciente, pois ele deve esperar análise e não cura. Você deve ter notado que penso diferente. A psicanálise me interessa por sua capacidade de transformar as vidas e atenuar a dor. Se tenho uma reserva diante da palavra “paciente”, é porque espero que todos sejamos impacientes com o sofrimento desnecessário que, eventualmente, estraga nossos dias.

Aconteceu assim. Lacan se perguntava o que seria o fim de uma análise, ou seja, como definir uma análise propriamente terminada. Sua resposta foi a seguinte: o fim de uma análise (diferentemente de uma interrupção) não é o esgotamento dos assuntos, o sumiço dos sintomas, o fim das queixas ou coisa que o valha. O fim de uma análise propriamente dito seria uma experiência radical produzida pelo próprio processo analítico. Pouco importa aqui examinar como Lacan entendia essa experiência e o processo que a ela levaria. Mas, descrita em termos psicológicos e muito simples (que ele teria detestado), seria a experiência de que não somos grande coisa e, em particular, não somos a única coisa que falta para que o mundo seja perfeito e para que a nossa mãe seja feliz. Isso parece (e é) uma coisa fácil de saber e mesmo de admitir, mas uma experiência efetiva dessa superfluidade de nossa existência é uma outra história. Nesse momento final, o sujeito vivenciaria, logicamente, uma espécie de desamparo depressivo, mas também uma extrema liberação. Por que liberação? Pois é, o que mais nos faz sofrer talvez seja justamente a relevância excessiva que atribuímos à nossa presença no mundo, pois essa relevância é a pedra de fundação de todas nossas obstinadas repetições, é graças a ela que insistimos em ser sempre “iguais a nós mesmos” (sendo que, no caso, essa expressão não tem um sentido positivo). Há boas razões para se pensar que, uma vez essa experiência feita, a gente possa passar a viajar pela vida carregando malas um pouco mais leves. Ou seja, seríamos capazes de largar os sintomas que nos devastam e que, obviamente, adoramos a tal ponto que não conseguimos desistir deles. Em suma; essa experiência conclusiva teria um valor terapêutico.

Quanto menor nossa intervenção na escolha e na organização do que falamos, tanto mais essa lógica interna poderá nos levar a dizer coisas inesperadas por nós mesmos, a descobrir algo que estava em nossos pensamentos sem que soubéssemos. Alguns analistas e terapeutas enunciam essa regra no começo de cada cura e a repetem regularmente, para que o paciente não se perca, por exemplo, em meandros de explicações e elaborações preparadas de antemão.
Outros analistas e terapeutas notam (com razão) que a dita lógica se impõe de qualquer forma na fala de nós todos, mesmo quando fazemos o possível para controlar nossas palavras. Aliás, geralmente, é logo quando tentamos policiar cuidadosamente nosso discurso que podemos cometer um lapso revelador.
Além disso, a experiência mostra o seguinte: quase sempre, mesmo o paciente mais prevenido, que anotou seus tópicos por medo de perder seu tempo ou de não ter nada para dizer, acaba sendo levado, no decorrer da sessão, a falar de coisas que ele não previu.
Um detalhe: se um paciente chegar de papel na mão, decidido a ler o que preparou, e se isso deixar você incomodado, você poderá pedir para ele guardar o papel e falar “espontaneamente”, pois certamente ele deve se lembrar dos temas que previu tratar.
Agora, lembre-se do seguinte: de qualquer forma, as palavras sempre levarão seu paciente por terras imprevistas.
Mas cuide disto: enunciar a regra deve servir para autorizar o paciente a falar, não para obrigá-lo a falar do que você quer ouvir. É possível se esconder de si mesmo por trás de racionalizações e assuntos preparados. Mas é possível também se esconder por trás de associações quase poéticas, que pulam de palavra em palavra.

Como cada relação é um encaixe em que convivem, mais ou menos harmoniosa mente as neuroses de todos os interessados, é claro que mexer num dos elos significa atrapalhar a vida de todos.

Na verdade, não faço uma grande diferença entre acontecimentos da infância e acontecimentos da vida adulta (também não sei muito bem quando começa a vida adulta). Explico melhor: não estou nada certo de que os acontecimentos da infância sejam de uma natureza diferente do que nos acontece hoje. Tampouco sei se é verdade que, pela receptividade de nossos primeiros anos, eles nos marcam com um ferro mais quente, que deixaria vestígios para a vida inteira.
Mas uma coisa sei: qualquer evento nos marca e nos transforma só na repetição ou, melhor dito, num segundo momento, em que ele é evocado, retomado, revivido. O caráter traumático de um acontecimento não depende de alguma qualidade específica da experiência vivida, mas é um efeito de como, mais tarde, essa experiência pode ou não integrar uma história que faça sentido para o sujeito.
Os fatos de nossas vidas agem em nós pela história em que se integram ou, melhor, pela história em que conseguimos ou não integrá-los. Não que a vida seja um continuum. Ao contrário, não é; reconstituir (melhor dito, inventar) um sentido que ligue o presente ao passado é uma obra incessante, que nos oferece um conforto necessário, nos dá a sensação de que atos e fatos se inserem numa história, num conjunto, que somos nós. Aliás, reinterpretar o passado, descobrir (ou inventar) novos sentidos para o que aconteceu é quase sempre uma maneira de mudar nosso presente. Pois, no fim dessa empreitada, sendo o resultado de uma narração diferente, somos mesmo diferentes.
Qualquer cura tem duas faces: uma, digamos assim, demolidora, que desfaz as certezas cristalizadas da história que nos acua em sintomas que, à vista de nosso passado, parecem inelutáveis, e outra, construtiva, que nos permite reinventar ou modificar um pouco a história da qual seríamos o fruto.
Talvez tenha conseguido explicar um pouco por que a infância se torna importante no nosso trabalho. Não é porque os eventos da infância seriam mais marcantes do que os de hoje, mas porque os eventos de hoje tomam relevância e sentido a partir dos de nosso passado e, portanto, de nossa infância.

Parece que saímos de uma cultura em que o passado nos impedia de inventar o presente para entrar numa cultura em que o futuro nos impede de saborear o que estamos vivendo. É freqüente, por exemplo, que alguém recuse um namoro porque “não sei no que vai dar”. O prazer que uma relação proporciona é preterido porque duvidamos de seu futuro. Mais um exemplo, que conheço bem, por tê-lo encontrado em muitos pacientes e por ter passado perto de vivê-lo. Durante quase dez anos, vivi entre Nova York e São Paulo. O grande prazer de viver em duas metrópoles entre as mais interessantes do mundo podia ser facilmente estragado pela incumbência da escolha futura do lugar onde fincaria pé na hora em que parasse de viajar.
Enfim, para entender como e quanto o futuro pode parasitar o presente, pergunte aos adolescentes. Em geral, eles não agüentam mais ser considerados sempre como promessas de um futuro e vivem na impressão de que os adultos que mais os amam desconsideram o presente de suas vidas.

Enfim, você me pergunta qual seria minha última recomendação. Aqui vai: seja humilde. Não quanto aos efeitos e resultados que você espera de seu trabalho. Mas seja humilde na aceitação das condições impostas por seus pacientes.
Haverá os que não conseguem nem sentar nem deitar, mas só podem falar caminhando. Haverá os que devem ficar silenciosos durante semanas para se convencerem de que não é proibido calar-se. Haverá os que só querem vir de vez em quando porque não toleram uma obrigação em suas vidas. Haverá os que somem durante semanas a cada vez que você viaja, porque não podem se impedir de punir quem os abandonou. Haverá os que querem vir cada dia só para sentir o cheiro de uma presença amiga. Haverá os que não falam, mas perguntam o que você acha, porque precisam ouvir sua voz, e pouco importa o que você dirá. Haverá os que se irritam porque você não os abraça e os que não agüentam ser tocados.

Seu primeiro compromisso não é com “a psicanálise” ou “a psicoterapia”, nem com Freud, Melanie Klein, Lacan ou qualquer outro chefe de escola, nem com a instituição na qual você se formou. Seu primeiro compromisso é com as pessoas que confiam em você e trazem para seu consultório uma queixa que pede para ser escutada e, por que não, resolvida. Ou, mais geralmente, seu primeiro compromisso é com a comunidade na qual você presta serviços. E o compromisso é de prestar o melhor serviço possível.

Contardo Calligaris- Cartas a um jovem terapeuta.