quarta-feira, dezembro 26, 2007

História da Vida Privada- Subjetividade.

A Memória

Agora que as pessoas vivem cada vez mais, começam a trabalhar cada vez mais tarde e param cada vez mais cedo, as férias são cada vez mais longas e a jornada de trabalho cada vez mais curta, elas decidiram que não têm mais tempo para escrever. Apenas alguns amantes obstinados se arriscam a criar esses traços indeléveis. O telefone está mais adaptado à civilização do efêmero, e os prudentes acham, com razão, que ele dá espaço para os desmentidos: "Eu nunca disse isso."

O processo de memorização funciona idiossincraticamente. Duas pessoas que vivem juntas há décadas retêm seletivamente certos episódios, e não os mesmos. Quando um casal rememora o passado, as lembranças guardadas não são iguais, e quando são as mesmas recebem pesos diferentes.

O Imaginário

A sociedade contemporânea, mais do que todas as anteriores, é icônica. Num único dia, a criança vê centenas e milhares de imagens: cartazes nos metrôs ou nas ruas, histórias em quadrinhos, livros ilustrados, cinema, televisão.

O imaginário não funciona a partir de enunciados transmitidos oralmente ou por escrito, mas a partir da torrente- a metáfora não é excessiva- de imagens despejadas pelos meios de comunicação.

Com essas imagens que nos empanzinam, corre-se o risco de criar uma ilusão de objetividade. Ora, a imagem não é neutra: todos os artifícios do enquadramento foram elaborados por fotógrafos, editores, cineastas. A montagem, isto é, a sucessão das imagens numa determinada ordem, dá um sentido a essa cronologia visual.

O Medo.

No ombro musculoso do caminhoneiro, lê-se a famosa tatuagem: "Perdoar talvez, esquecer jamais.

Nascem novas incertezas: a duração do relacionamento, o emprego. A história da vida privada é também a história do medo, dos medos.

Os temores ingressam na era comercial. A necessidade de segurança cria profissões, e os profissionais, por sua vez, não se fazem de rogados para alimentar nossos temores. Há para todos os gostos, todos os tamanhos, todos os receios. Os negócios vão bem no mercado do medo.

O medo desempenha seu papel na preservação de segredos: "Não quero saber". A recusa, tal como a mentira, é uma simplificação.

Ainda mais angustiante é esta observação: os torturadores de hoje são muitas vezes as vítimas de ontem. Essa inversão de papéis- o mártir que vira carrasco- levanta uma interrogação ontológica extremamente banal: o que é o homem?

A Guerra Permanente.

Se um homem recebe a morte, ele se transforma em um cadáver. Se um homem dá a morte, ele se tranforma em outro homem.

Como sobreviver num campo de concentração? A negação da identidade é imediata: a tosquia, as roupas de deportado, a retirada de qualquer objeto pessoal- principalmente a aliança. Não resta um traço daquilo que determinava a situação social do indivíduo.

Em Vida e Destino, Vassili Grossman diz: "Nós elaboramos uma tese superior: não existem pessoas inocentes na Terra. Cada indivíduo merece o tribunal. É culpado todo aquele que é objeto de uma ordem de prisão. E pode-se assinar uma ordem para qualquer um. Todos os homens têm direito a uma ordem de prisão. Inclusive os que passaram a vida a assinar para os outros".

A tortura é um meio de governo: mais que a confissão, ela busca informações que permitam a perpetuação do poder.

Em Paris um colóquio sobre "Isolamento e Tortura", Nicole Lévy, médica legista, afirma que a finalidade da tortura não é fazer com que os supliciados falem, mas também- e principalmente- que calem, que percam a identidade e, por decorrência, a palavra.

A Segunda Guerra Mundial, os campos nazistas, o Gulag, os desaparecidos, as Guerras da Argélia e do Vietnan despertaram um sentimento de culpa coletivo que foi interiorizado por milhões de indivíduos. "Não fazemos o que queremos, mas somos responsáveis pelo que fazemos", escreveu Sartre.

Uma História do Segredo? (Gérard Vicent)
História da Vida Privada- da Primeira Guerra a nossos dias.