sábado, fevereiro 09, 2008

"Não Esquecer Depois".

Embora não soubesse que forma escolheria ter; mas o que um homem vê é uma realidade.
E sem sentir a moça tomou a forma que o homem percebera nela.
Assim se construíam as coisas.

Mas enquanto mantinha o rosto sufocado, e toda a sala que ela não via girava tonta, a moça parecia descobrir que não era de tristeza que ela gritara. É que não podia suportar aquela muda existência que estava sempre acima dela.
A sala, a cidade, as coisas sob a prateleira.

E bastaria começar a olhar para partí-la em mil pedaços que não saberia juntar depois.
O difícil é que a aparência era a realidade.

Se ao menos a moça estivesse fora de seus muros.
Que minucioso trabalho de paciência o de cercá-la.

Vida individual? O perigoso é que cada pessoa trabalhava com séculos.

- Felizmente tudo é impossível.
- Que me importa o mal que você me fizesse, disse ele, irritado.

Atordoada, quase recuando, perguntava-se como era possível que ele a amasse sem conhecê-la, esquecendo que ela própria só conhecia do homem o amor que ela lhe dava.

Pensava velozmente, procurando como mostrar-lhe o melhor de si mesma, contar-lhe sobre sua vida- em surpresa nada encontrava, resolvia em vão as falsas pérolas que parecia terem sido as suas únicas jóias.

Na urgência do momento lembrou-se daquelas noites na sala de visitas... E embora raramente pensasse nelas, e mal tivesse consciência de seu sentido- elas surgiram-lhe como a única realidade de sua vida?
Com os olhos aberos de espanto e atenção, esquecer era bem o seu modo de guardar para sempre.
Já se indagava se precisaria contar, que importava a forma que tinham tomado seus dias?
Também ele, também todos pareciam construir em torno de si uma coisa esquecida.

Era insuportável. E justamente ela sustentava tudo isso. Por que justamente?
Cada pessoa que via era justamente a que via.

E, nesse momento em que se olharam nus, sem espanto, pela milésima vez, pela primeira vez, ele disse: por que nunca nos conhecemos antes?
Eles se tocavam enfim.

Mas ela não tinha medo. Era "não esquecer depois" que a assustava.

No centro desse mundo pequeno, nesta desordem confortante de vida, com enjôo.
Era ameaçador. Íntimo e ameaçador.

Sou de opinião de que se fala demais, pensou obstinado.

Porque na vida real, vivida a cada dia, ficara-lhe - se não quisesse mentir- apenas a possibilidade de dizer, numa conversa de vizinhas, em mistura de longa experiência e de descoberta de última hora: sim, sim, a alma também é importante, não acha?

Contar sua "história" era ainda mais difícil do que vivê-la.
Mesmo porque "viver agora" era somente um carro andando no calor, alguma coisa avançando dia a dia como o que fica madura, hoje era o navio em alto mar.

Clarice Lispector- A Cidade Sitiada.