domingo, agosto 24, 2008

O inconsciente é o discurso do outro.

O progresso de Freud, sua descoberta, está na maneira de tomar um caso na sua singularidade.

A história não é o passado.
A história é o passado na medida em que é historiado no presente- historiado no presente porque foi vivido no passado.

O caminho da restituição da história do sujeito toma a forma de uma procura da restituição do passado.

O fato de que o sujeito revive, rememora, no sentido intuitivo da palavra, os eventos formadores da sua existência, não é, em si mesmo, tão importante.
O que conta é o que ele disso reconstrói.

Direi- afinal de contas, o de que se trata é menos lembrar do que reescrever a história.

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O que conta, quando se tenta elaborar uma experiência, não é tanto o que se compreende quanto o que não se compreende.Uma das coisas que mais devemos evitar é compreender muito, compreender mais do que existe no discurso do sujeito.
Interpretar e imaginar que se compreende, não é de modo algum a mesma coisa. É exatamente o contrário.

Na relação do imaginário e do real, e na constituição do mundo tal como ela resulta isso, tudo depende da situação do sujeito.
E a situação do sujeito é essencialmente caracterizada pelo seu lugar no mundo simbólico, ou, em outros termos, no mundo da palavra.

O que é a ligação simbólica?
É, para colocar os pingos no ii, que socialmente nós nos definimos por intermédio da lei.
É da troca de símbolos que nós situamos uns em relação aos outros nossos diferentes eus.

Que um nome, por mais confuso que seja, designe uma pessoa determinada, é exatamente nisso que consiste a passagem ao estado humano. É nesse momento em que se entra na relação simbólica.

Todos os seres humanos participam do universo dos símbolos. Estão incluídos aí e o suportam, muito mais do que o constituem. São muito mais os suportes do que os agentes.
É em função dos símbolos, da constituição simbólica da sua história que se produzem essas variações em que o sujeito é suscetível de tomar imagens variadas, quebradas, despedaçadas, e mesmo, no caso, inconstituídas, regressivas dele mesmo.


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Quando eu digo projeção, não digo projeção errada.
Há uma fórmula que, antes de ser analista, eu tinha- com meus fracos dons psicológicos- colocado na base da pequena bússola de que me servia para avaliar certas situações.
Eu me dizia, não sem gosto: - Os sentimentos são sempre recíprocos. É absolutamente verdadeiro, apesar da aparência.
Desde que se coloque em campo dois sujeitos- digo dois, não três-, os sentimentos são sempre recíprocos.

O eu é referente ao outro. O eu se constitui na relação com o outro.
Ele é o seu correlato.

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Em espelho, é o caso de dizer que a criança reveste os objetos da mesma capacidade de destruição da qual é portadora.

Assim, a equação simbólica que redescobrimos entre esses objetos surge, de um mecanismo alternativo de expulsão e introjeção, de projeção e de absorção, quer dizer, de um jogo imaginário.

A introjeção é sempre introjeção da palavra do outro, o que introduz uma dimensão muito diferente da de projeção.
É em torno dessa distinção que vocês podem fazer a separação entre o que é função do ego e o que é função do supereu.

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Imaginem que este espelho é um vidro. Vocês se vêem no vidro e vêem os objetos além. Trata-se justamente disto- de uma coincidência entre certas imagens e o real.

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Qual é o móvel concreto que determina o funcionamento da enorme mecânica sexual? Qual é o seu desencadeador?
Não é a realidade do parceiro sexual, a particularidade de um indivíduo, mas algo que tem a maior relação com o que acabo de chamar o tipo, a saber, uma imagem.

Qual é a definição da imagem em óptica?- a cada ponto do objeto deve corresponder um ponto da imagem, e todos os raios saídos de um ponto devem se recortar em algum lugar num ponto único.

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O outro tem para o homem valor cativante, pela antecipação que representa a imagem unitária tal como é percebida, seja no espelho, seja em toda a realidade do semelhante.
O outro, o alter ego, confunde-se mais ou menos, segundo as etapas da vida, com o Ich-Ideal, esse ideal do eu invocado o tempo todo no artigo de Freud.
A identificação narcísica, a do segundo narcisismo, é a identificação ao outro que, no caso normal, permite ao homem situar com precisão a sua relação imaginária e libidinal ao mundo em geral.

A estreita equivalência do objeto e do ideal do eu na relação amorosa, é uma das noções mais fundamentais na obra de Freud, e a reencontramos a cada passo.

Freud faz uma lista dos diferentes tipos de fixação amorosa, que exclui toda referência ao que se poderia chamar uma relação madura- o mito da psicanálise.
Há inicialmente, no campo de fixação amorosa, o tipo narcísico.
Ele é fixado pelo fato de que se ama- primeiramente o que se é enquanto si mesmo, quer dizer, Freud precisa isso entre parênteses, si mesmo- em segundo lugar, o que se foi- em terceiro lugar ,o que se quereria ser, em quarto, a pessoa que foi uma parte do seu próprio eu.

No homem, nós o sabemos, as manifestações da função sexual se caracterizam por uma desordem eminente.
Não há nada que se adapte.
Essa imagem em volta da qual nós, psicanalistas, nos deslocamos, apresenta, quer se trate das neuroses ou das perversões, uma espécie de fragmentação, de explosão, de despedaçamento, de inadaptação, de inadequação.
Há aí como um longo esconde- esconde entre a imagem e seu objeto normal- se é que adotamos o ideal de uma norma no funcionamento da sexualidade.

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Essa hiância faz com que haja uma diferença radical entre a satisfação de um desejo e a corrida em busca do acabamento do desejo- o desejo é essencialmente uma negatividade, introduzida num momento que não é especialmente original, mas que é crucial, de virada.
O desejo é apreendido inicialmente no outro, e da maneira mais confusa.
A relatividade do desejo humano com relação ao desejo do outro, nós a conhecemos em toda reação em que há rivalidade, concorrência, e até em todo o desenvolvimento da civilização.

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Que o ego seja um poder de desconhecimento é o fundamento mesmo de toda a técnica analítica.

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Eis o grande erro de sempre- imaginar que os seres pensam o que dizem.

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Antes que o desejo aprenda a se reconhecer pelo símbolo, ele só é visto no outro.

O desejo do sujeito só pode, nessa relação, se confirmar através de uma concorrência, de uma rivalidade absoluta com o outro, quanto ao objeto para o qual tende.
E cada vez que nos aproximamos, num sujeito, dessa alienação primordial, se engendra a mais radical agressividade- o desejo do desaparecimento do outro enquanto suporte do desejo do sujeito.

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Freud escreve que o eu é feito da sucessão das suas identificações com os objetos amados que lhe permitiram tomar forma.
O eu é um objeto feito como uma cebola, poder-se-ia descasca-lo, e se encontrariam as identificações sucessivas que o constituíram.


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A ausência é evocada na presença, e a presença na ausência.
Isso parece uma banalidade, e parece ser óbvio.
Mas ainda é preciso dizer e refletir sobre isso.
Porque é na medida em que o símbolo permite essa inversão, quer dizer,
Anula a coisa existente, que ele abre o mundo da negatividade,
O qual constitui, ao mesmo tempo, o discurso do sujeito humano e a realidade do seu mundo enquanto humano.

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Talvez eu vá um pouco depressa.
Retenham isso, que o desejo nunca é reintegrado senão numa forma verbal, por nominação simbólica- está aí o que Freud chamou o núcleo verbal do ego.

Associação livre, este termo define muito mal o de que se trata- são as amarras da conversa com o outro que procuramos cortar.
A partir de então, o sujeito encontra-se numa certa mobilidade em relação a esse universo de linguagem no qual o engajamos.
Enquanto acomoda seu desejo em presença do outro, produz-se no plano imaginário essa oscilação do espelho que permite,
A coisas imaginárias e reais que não têm o hábito de coexistir para o sujeito,
Reencontrarem-se numa certa simultaneidade, ou em certos contrastes.

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O desejo do homem é o desejo do outro.

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A palavra ou o conceito não é outra coisa para o ser humano do que a palavra na sua materialidade. É a coisa mesma.
Isso não é simplesmente uma sombra, um sopro, uma ilusão virtual da coisa, é a coisa mesma.

Se considerarmos que há um laço estreito, permanente, entre a maneira pela qual um sujeito se exprime, se faz reconhecer, e a dinâmica efetiva, vivida, das suas relações de desejo, devemos ver que só isso introduz na relação de espelho ao outro uma certa desinserção, uma flutuação, uma possibilidade de oscilações.

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Sartre faz girar toda a sua demonstração em torno do fenômeno fundamental a que ele chama o olhar.
O olhar de que se trata não se confunde absolutamente com o fato, por exemplo, de que eu vejo os seus olhos.
Posso me sentir olhado por alguém de quem não vejo nem mesmo os olhos, e nem mesmo a aparência.
Basta que algo me signifique que a outrem por aí.
Está janela, se está um pouco escuro, e se eu tenho razões para pensar que há alguém atrás, é, a partir de agora, um olhar.
A partir do momento em que esse olhar existe, já sou algo de diferente, pelo fato de que me sinto em mesmo tornar-me um objeto para o olhar de outrem.
Mas, nessa posição, que é recíproca, outrem também sabe que sou um objeto que se sabe ser visto.


O olhar não se situa simplesmente ao nível dos olhos.
Os olhos podem muito bem não aparecer, estar mascarados.
O olhar não é forçosamente a face do nosso semelhante, mas também a janela atrás da qual supomos que ele nos espia.
É um x, o objeto diante do qual o sujeito se torna objeto.

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A resistência define-se, muito bem, aliás, relacionando-a ao fenômeno da linguagem- é tudo o que freia, altera, retarda o débito, ou então o interrompe completamente. Não se vai mais longe.

Há o esquema lógico-simbólico bem conhecido em que Freud deduz as diversas formas de delírios, segundo as diversas maneiras de negar Eu o amo- Não sou eu que o amo- Não é ele que eu amo- Eu não o amo- Ele me odeia- É ele que me ama- o que dá a gênese de diversos delírios- o de ciúme, o passional, o persecutório, o erotomaníaco, etc.

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Cada vez que temos, na análise da linguagem, de procurar a significação de uma palavra, o único método correto é fazer a soma dos seus empregos.

A palavra não tem nunca um único sentido, o termo, um único emprego.
Toda palavra tem sempre um mais-além, sustenta muitas funções, envolve muitos sentidos.
Atrás do que diz um discurso, há o que ele quer dizer, e atrás do que ele quer dizer, há ainda outro querer-dizer, e nada nunca será esgotado- se não é que se chega ao fato de que a palavra tem função criadora e faz surgir a coisa mesmo,
que não é nada senão o conceito.

A palavra, tanto ensinada quanto ensinante, está, pois, situada no registro da equivocação, do erro, da tapeação, da mentira.
Admite que o sujeito mesmo que nos diz algo, muitas vezes não sabe o que nos diz, e nos diz mais ou menos o que ele quer dizer.
O lapso é mesmo introduzido.

Na análise, a verdade surge pelo que é o representante mais manifesto da equivocação- o lapso, a ação a que se chama impropriamente falhada.
Somos, pois, levados pela descoberta freudiana a escutar no discurso essa palavra que se manifesta através, ou mesmo apesar, do sujeito.

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Que o psicanalista acredite saber alguma coisa, em Psicologia por exemplo, e já é o começo da sua perda, pela boa razão de que em Psicologia ninguém sabe grande coisa, a não ser que a Psicologia seja ela mesma um erro de perspectiva sobre o ser humano.

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Essa imagem de si, o sujeito a reencontrará sem cessar como o quadro mesmo das suas categorias, da sua apreensão do mundo- objeto, e isso, por intermédio do outro.
É no outro que ele reencontrará sempre o seu eu-ideal, donde se desenvolve a dialética das suas relações ao outro.

A complementação do imaginário se realiza no outro, à medida que o sujeito assume no seu discurso, enquanto o faz ouvir pelo outro.

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Jacques Lacan- O Seminário- os escritos técnicos de Freud.