terça-feira, julho 22, 2008

Distorções

Pois realidade, tanto quanto identidade, é representação; realidade é o complemento simétrico da identidade e tão característico do sujeito como esta.
Então, a pessoa também experimenta realidades distintas e provisórias, testa mundos, prova aproximações alternativas ao real.

A identidade, enquanto representação do desejo, e a realidade, enquanto representação do real, são portanto postas entre parênteses por representações disruptivas que a análise oferece, sob forma de interpretações. Para que fazemos isso? Não apenas por sadismo, quero crer.

É que nosso paciente sofria de imobilidade.
Algumas condições peculiares de desenvolvimento haviam paralisado sua história em torno de um sentido que se congelara.
É isto o trauma para a psicanálise:
um nó do desejo que obriga a repetir.

Por interpretação não devemos entender aqui formulações verbais concretas que o analista emite durante uma sessão, a interpretação não reside nas palavras do psicanalista.
O motor do efeito psicanalítico, a interpretação, ocorre por uma acumulação temporal.

Ele me conta algo, eu escuto como se, além desse algo, outro tema se quisesse mostrar, que ainda desconheço.
Em face do campo futuro que a interpretação proporá, o assunto de meu paciente é escutado como se fora uma metáfora: leva para lá, para onde não se sabe ainda.
Creio que todo analista comete o mesmo desencontro calculado.

Não me parece inteiramente correto dizer presente.
É antes o tempo da presença dos possíveis, gramaticalmente falando, o condicional.
Aqui e agora, construíremos o sentido do passado que, alterado, modifica seu sujeito futuro.
É um futuro do pretérito a sessão analítica, tempo em que o passado se futuriza em presença possível, para ser testado, mudado, negado, por fim, recordado.

Corriqueiro engano pressupor que a análise se propõe a atender o pedido implícito do paciente que, preocupado com o aspecto assustador de seu mundo,
sugere que se lhe mostrem as coisas como de fato são.
Em primeiro lugar, não há isto de coisas como de fato são.

Procede daí a conhecida fórmula sob a qual toda a análise se dá sob o signo da frustração.

Nossa prática proíbe justamente que discutamos,
como duas pessoas sensatas,
qualquer dos dados de realidade trazidos pelo paciente,
antes, estamos condenados a tudo tomar como interpretável,
como meio de desvelamento.

Ser é perceber e ser percebido.
Assim, a psicanálise propõe uma situação sem objetos, sem acontecimentos fatuais, despida de verificação externa.

Já que na análise o discurso do paciente vale antes de mais nada como veículo de fantasias.
Há porém uma função da palavra que se impõe imediatamente como relevante.
Quando procuro organizar minha experiência presente na forma de um dizer articulado,
estou simultaneamente: comunicando, ainda que para mim mesmo, o que acredito estar sucedendo na realidade, na imaginação, na memória;
mas também faço outras coisas:
construo uma realidade insuspeitada, evoco memórias perdidas, provoco reações no interlocutor, descubro o que não sabia ainda.
Isto é, além de comunicar certos fatos já pensados, estou criando uma experiência original que deveria poder expressar.

É a constante ambigüidade da palavra, que cria muito mais do que consegue exprimir.
De tal fracasso deriva a noção de fantasia.

Não há percepção que deixe de ser emocional.
Não se conhece o ódio em si mesmo,
apenas o ódio a alguém ou a alguma coisa,
mas também não se conhece nada sem ódio, ou interesse, ou convicção, ou tédio;
não existe percepção de objeto neutra para servir de comparação à apreensão emocional do objeto,
visão correta para opor-se à distorcida.

Em essência, o psicanalista opera por rupturas de campo,
que desestabilizam as representações do sujeito.

Na prática quotidiana, o desejo é falado, é assunto, precisamente quando não tem vigência e está distante.
Quando é vigente, as palavras fogem dele:
o sujeito realiza seu desejo, satisfaz-se e mata-o.
Ou, pelo menos, mata a vontade, pois o desejo é insaciável,
o fim de um desejo é sua satisfação.

Se o desejo tem a palavra, não se realiza,
ao realizar-se, cala e passa a ser assunto inerte do dizer e do fazer.

Donde se pode interferir que o imperativo da satisfação, em nossa cultura ao menos, serve ao propósito da repressão, de maneira sutil e eficientíssima.
Aquilo de que falamos, a sexualidade, a intimidade, as emoções, e de que nos pedem que falemos sempre mais, realiza-se no dito como assunto, e morre.


Contra a palvavra do desejo é que se arma a repressão,
não contra exprimi-lo como assunto de conversa,
nem contra realizá-lo irrefletidamente.

No quotidiano, o paciente é construído, à sua revelia,
pelas regras que lhes organizam as emoções.

São regras culturais, em duplo sentido: provêm da cultura e criam cultura.
A construção do desejo, porém, como os andaimens de um edifício, não aparece:
o paciente ignora-se construído pelo desejo.
É o desejo que constrói sujeito e objeto.
O mundo aparece-me ordenado pela lógica do meu desejo,
única forma de apreensão que me é facultada:
e creio que o mundo é naturalmente assim.


Andaimes do Real- Fábio Hermann