sábado, julho 05, 2008

Vida Danificada

Em face da existência da fábrica de pão, a prece pelo pão nosso de cada dia tenha-se tornado uma mera metáfora.

O garçom não conhece mais os pratos, e se ele próprio sugerisse alguma coisa, teria que estar preparada para censuras por ultrapassar o que é de sua competência.
Ninguém se apressa para servir o freguês que está esperando há muto tempo, quando a pessoa dele incubida está ocupada:
o cuidado com a instituição, que atinge sua culminância na prisão,
passa à frente, como na clínica, do cuidado com o sujeito,
que se vê administrado como um objeto.

Ir atrás dos outros, atropelar-se, fazer filas, tudo isso substitui por toda parte as necessidades de certo modo racionais.

Sob o primado absoluto do processo de produção,
desaparece a finalidade da razão,
até ela rebaixar-se ao nível do fetichismo de si mesma e do poder exterior,
assim também ela se transforma de novo num instrumento,
igualando-se a seus funcionários,
cujo aparato intelectual serve apenas à finalidade de impedir o pensar.


É a crença de que o trabalho intelectual pode ser administrado segundo os critérios que decidem se uma ocupação é necessária ou racional.
Decide-se então hierarquizar as urgências.
Mas, quando se priva o pensamento de seu caráter involuntário, é precisamente sua necessidade que se vê cassada.
Ele se reduz a disposições substituíveis, intercambiáveis.


Como não pensar assim, quando se vê uma comissão a examinar com toda seriedade a urgência de certos problemas,
antes de soltar a equipe de colaboradores na execução de tarefas cuidadosamente designadas.

Os mesmos pais, para quem era uma questão de prestígio que a criança trouxesse para casa boas notas, eram os que menos toleravam que esta, à noite, lesse por um período longo demais ou fizesse o que, no seu entender, seria algum desperdício intelectual exagerado.

Só o astucioso entrelaçamento de trabalho e felicidade deixa aberta, debaixo da pressão da sociedade, a possibilidade de uma experiência propriamente dita. Ela é cada vez menos tolerada.
Mesmo as profissões ditas intelectuais alienam-se por completo do prazer, através de sua crescente assimilação aos negócios.
A atomização não está em progresso apenas entre seres humanos, mas também no interior de cada indivíduo, entre as esferas de sua vida.
Nenhuma realização pode estar ligada ao trabalho, que perderia assim sua modéstia funcional na totalidade dos fins;
nenhuma centelha da reflexão pode invadir as horas do lazer,
pois ela poderia saltar daí para a esfera do trabalho e incendiá-la.

Enquanto em sua estrutura trabalho e divertimento se tornam cada vez mais semelhantes,
as pessoas passam a separá-los de um modo cada vez mais rígido com invisíveis linhas de demarcação.
De ambos foram expulsos, na mesma proporção, o prazer e o espírito.
Lá como cá imperam a seriedade sem humor e a pseudo-atividade.

Enquanto as escolas adestram as pessoas no uso da fala, os alunos emudecem cada vez mais.
Eles são capazes de fazer conferências, suas frases qualificam-nos para os microfones diante do qual se vêem colocados como representantes da média das pessoas, mas a capacidade de falarem uns com os outros se atrofia.
Pois esta pressupõe ao mesmo tempo experiências dignas de serem comunicadas, liberdade de expressão, independência e, ao mesmo tempo, relacionamento.
No sistema que tudo abrange, a conversação transforma-se em ventriloquismo.

Esse determinismo linguístico por adaptação é o fim da linguagem:
a relação entre as coisas e a sua expressão está cortada,
e assim como os conceitos dos positivistas devem ser apenas as fichas de jogo,
do mesmo modo os conceitos da humanidade positivista transformaram-se literalmente em moedas.
A pessoa quer fazer o maior número possível de pontos:
não há conversação em que não se insinua como um veneno a oportunidade de competir:
Os afetos, que nas conversas dignas de seres humanos diziam respeito ao assunto tratado,
aderem tenazmente à pura vontade de ter razão,
sem nenhuma relação com a relevância do que é afirmado.


Mas, como puros meios de poder, as palavras despidas de toda a magia adquirem um poder mágico sobre aqueles que as empregam.
Eles formam uma zona de contágio paranóico e é necessária toda a razão para quebrar seu encanto.
A magia que envolve os slogans políticos grandiosos e nulos repete-se no plano privado nos objetos aparentemente os mais neutros:
a rigidez cadavérica da sociedade estende-se até a célula da intimidade, que se julgava protegida contra ela.

A pressa, o nervosismo, a instabilidade, observados desde o surgimento das grandes cidades, alastram-se hoje de uma forma tão epidêmica quanto outrora a peste e a cólera.
Todas as pessoas têm necessariamente algum projeto.
O tempo de lazer exige que se o esgote.
Ele é planejado, utilizado para que se empreenda alguma coisa,

preenchido com visitas a toda espécie de espetáculo,
ou ainda apenas com locomoções tão rápidas quanto possível.
A sombra de tudo isso cai sobre o trabalho intelectual.
Este é realizado com má consciência, como se tivesse sido roubado a alguma ocupação urgente, ainda que meramente imaginária.
A fim de justificar-se perante si mesmo,
ele se dá ares de uma agitação febril, de um grande afã,
de uma empresa operando a todo vapor devido à urgência do tempo e
para a qual toda reflexão- isto é, ele mesmo- um estorvo.

A vida como um todo deve parecer uma profissão,
devendo dissimular através dessa semelhança o que ainda não está imediatamente consagrado ao lucro.
Tudo isso é feito com muita pressa, pois nos terremotos não se toca o alarme.
A pseudo-atividade é um resseguro, é a expressão da disposição para a auto-renúncia, único meio pelo qual ainda se presume garantir a autoconservação.

O vazio psicológico é ele próprio apenas o resultado da falsa absorção social.
O tédio de que as pessoas fogem é um mero reflexo do processo de fuga no que elas há muito tempo estão envolvidas.
É por essa razão, somente, que o monstruoso aparato de diversão mantém-se vivo e se expande cada vez mais, sem que um único indivíduo dele extraia divertimento.

O duplo caráter do progresso, que sempre desenvolveu o potencial de liberdade ao mesmo tempo que a realidade efetiva da opressão,
acarretou uma situação em que os povos ficavam cada vez mais integrados no processo de dominação da natureza e na organização social, tornando-se, porém, em virtude da coerção infligida pela cultura, ao mesmo tempo incapazes de compreender em que sentido a cultura ia além dessa integração.

As forças produtivas também não são o substrato último do homem, mas representam tão somente a forma histórica do homem, adequada à produção de mercadorias.

Até mesmo o prazer seria por isso afetado, visto que seu esquema atual é inseparável da industriosidade, do planejamento, intenção de impor sua vontade, da sujeição.

Minima Moralia- Reflexões a partir da vida danificada- 2a parte.
Theodor W. Adorno.