segunda-feira, janeiro 17, 2011

Curiosidade, Sexualidade e Currículo

Nós sabemos que uma das direções da educação sexual hoje sugere que se discutam questões relacionadas à transmissão do vírus, bem como estratégias de prevenção.
Os estudantes não têm, racionalmente, outra escolha, ao discutir a questão da AIDS e do HIV com seus professores, que não a de darem as respostas esperadas, em vez de se envolverem num diálogo franco, porque o ensino está, em geral, ligado a alguma forma de avaliação. A cultura da escola faz com que respostas estáveis sejam esperadas e que o ensino de fatos seja mais importante que a compreensão de questões íntimas. Além disso, nessa cultura, modos autoritários de interação social impedem a possibilidade de novas questões e não estimulam o desenvolvimento de uma curiosidade que possa levar professores e estudantes a direções que poderiam se mostrar surpreendentes. Tudo isso faz com que questões da sexualidade sejam relegadas ao espaço das respostas certas ou erradas.
Isso fica evidente na forma como a discussão é organizada; na forma como o conhecimento é concebido apenas como a expressão de respostas certas ou erradas e, portanto, apenas como o conhecimento de fatos; na forma como docentes e estudante parecem esconder suas próprias questões e interesses com a justificativa de que têm de cumprir a matéria determinada pelo currículo oficial.

De forma mais geral, existe uma relação direta entre a liberdade para explorar novas idéias e uma pedagogia significativa. Mas, como veremos, existem muitos obstáculos, tanto nas mentes das professoras, quanto na estrutura da escola, que impedem uma abordagem cuidadosa e ética da sexualidade na educação.
Há uma estratégia chamada de “arriscar o óbvio”. A simplicidade dessa expressão é enganadora, porque quando se trata da linguagem do sexo, aquilo que é óbvio para algumas pessoas torna-se, para outras, algo a ser arriscado.

O que se torna impensável quando a sexualidade é pensada como tendo um lugar apropriado?
E, se trouxermos os locais das pedagogias do sexo seguro para o cotidiano, em vez de tratá-los como tópicos especiais, plenos de perigo e carentes de prazer, então, a informação real a ser dada nesses lugares começaria por conceber os corpos como algo que se movimenta entre espaços.
Na verdade, tudo o que temos que fazer é imaginar. Com esta ideia, podemos começar a ver que a sexualidade permite desenvolver nossa capacidade para a curiosidade. Sem a sexualidade não haveria qualquer curiosidade e sem curiosidade o ser humano não seria capaz de aprender.

As formas pelas quais nós falamos sobre a sexualidade e as formas pelas quais nós tentamos produzir significados a partir dos corpos de outros nos deveriam estimular a fazer novas questões: o que é imaginado quando o sexo é imaginado e o que é imaginado quando aquilo que é eufemisticamente chamado de “educação sexual” é imaginado? O que significa “arriscar o óbvio” e colocar o óbvio em risco, quando o inconstante tema do sexo é tão ostensivamente contestado, mascarado, avaliado, narrado, denegado e tomado como sinônimo de nossa identidade?

Quando inserida no currículo escolar ou na sala de aula universitária- quando, digamos, a educação, a sociologia, a antropologia colocam sua mão na sexualidade- a linguagem do sexo torna-se uma linguagem didática, explicativa e, portanto, dessexuada.
A ambivalência está estruturada, tais como as noções normativas de sexualidade descritas por Anna Freud como a “atitude dual dos seres humanos para com a vida sexual- uma aversão constitucional associada a um desejo apaixonado”.
A sexualidade não é o problema: ela é o lugar ao qual os problemas se afixam. Nesta discussão, estou trazendo uma curiosidade psicanalítica para a conceptualização do sexo: nem biologia nem anatomia, nem cutura nem papel social, nem escolha de objeto nem objetivo estão em jogo. O que está em jogo é a fantasia.
Será que a pedagogia pode começar com essas surpresas? Pode o sexo ser educado e pode a educação ser sexuada?

A curiosidade que Freud discute é a mesma curiosidade das ciências humanas, que mascaram o poder através de seu conhecimento?
No Canadá, os eugenistas abriram as portas da escola para a educação sexual para as pessoas “normais” ao colocarem a vida sexual sob escrutínio público. Por volta de 1910 a educação sexual estava vinculada aos esforços curriculares da escola para aperfeiçoar a linguagem racial branca. A educação sexual iria se tornar indistinguível desses esforços eugenistas do Estado em favor da propagação racial anglo-saxônica. Ao fazer um vínculo entre as teorias de degeneração racial e a degeneração sexual, nossos educadores eugenistas puderam, pois, passar de uma preocupação com a definição do desvio para uma preocupação com a constituição da normalidade.
Na psicanálise, reprimir não significa exatamente jogar fora alguma coisa. A repressão está mais próxima da nossa paixão pela ignorância do que de nossa paixão pelo conhecimento. No discurso psicanalítico, a repressão é definida como o ato de afastar-se, o ato de ignorar e esquecer uma ideia ou a tentativa para separar o afeto da ideia. O movimento da repressão é dinâmico e produtivo, um movimento de volta e retorno. O que torna o retorno do reprimido tão estranho é as novas idéias se tornam afixadas a velhos afetos. Por causa do processo de substituição, deslocamento e condensação, entretanto, o novo conteúdo ainda contém o núcleo da velha dinâmica ou do velho afeto.
Ao imaginar que a sexualidade está ligada ao desenvolvimento normal, ao insistir, na verdade, que o sexo seja inserido no discurso do desenvolvimento, o curso desse desejo de que o sexo seja uma parte estável e previsível de nossa identidade é o esquecimento necessário de que a perversidade é a base da possibilidade da própria sexualidade. Aqui, minha definição de perversidade é simplesmente “prazer sem utilidade”.
Mas na insistência de que o prazer esteja confinado à utilidade, os aparatos da educação, da lei e da medicina se tornam preocupados em confinar a sexualidade aos limites da escolha apropriada de objeto e ao sexo reprodutivo marital.
Nos modelos normativos de educação, ligados à ideia de desenvolvimento, a educação sexual se torna preocupada em colocar a especificação do objeto apropriado como um problema e em privilegiar aqueles sujeitos que devem ser vistos como “normais”.
Nessa prolongada batalha, nós ficamos com outra contradição estranha: se a educação exige a renúncia do instinto, como é até mesmo possível uma educação sexual? Ou qual pode ser o objetivo da educação sexual se o objeto da educação está na renúncia do sexo?
Mas Anna Freud (1996) oferece um outro tipo de conselho em uma obra posterior, um conselho talvez mais modesto que urgente. Ele tem a ver com sua distinção entre psicologia, vista como um discurso que estrutura a educação, e psicanálise, vista como um método que trabalha contra a progressão do desenvolvimento.

Para Foucault, a ideia de que houve um tempo em que o sexo era reprimido e que agora é tempo de descobrir o segredo do sexo, de deixar que sua verdadeira natureza fale, é uma fantasia histórica. A hipótese repressiva está na base de modelos críticos de educação sexual, modelos que vinculam o sexo com emancipação, libertação e domínio do próprio destino.
Foucault argumenta que o sexo não é o oposto da repressão: como mito, desejo e representação, o sexo tem uma historicidade. Esta historicidade diz respeito à história de como o sexo se tornou vinculado à dinâmica do aparato “saber/poder/prazer”.
Foucault lista “quatro grandes unidades estratégicas”, responsáveis pela formação de mecanismos específicos de saber/poder/prazer: a descrição dos corpos das mulheres como histéricas, a pedagogização do sexo das crianças, a socialização do comportamento procriativo e a psiquiatrização do prazer perverso. “A criança masturbadora”, “a mulher histérica”, “o pervertido” e o “casal malthusiano” são as grandes unidades estratégicas do sexo e inauguram a crença agora comum de que o sexo deve também ser equacionado como perigo.
Foucault nos propicia uma outra forma de pensar sobre a sexualidade: não como desenvolvimento ou identidade, mas como historicidade e relação.
A sexualidade não deve ser pensada como um tipo de dado natural que o poder tenta manter sob controle, ou como um obscuro domínio que o conhecimento tenta gradualmente descobrir. Ela é o nome que pode ser dado a um construto histórico: não uma realidade furtiva que é difícil de apreender, mas uma enorme superfície em forma de rede na qual as estimulações dos corpos, a intensificação dos prazeres, o incitamento ao discurso, a formação de um conhecimento especializado, o reforço de controles e resistências estão vinculados uns aos outros, de acordo com algumas poucas estratégias importantes de saber e poder.

Watney (1901) nos oferece uma surpreendente inversão da “questão comum que pergunta o que as crianças supostamente querem ou precisam da educação e pergunta, em vez disso, o que os adultos querem ou precisam das crianças, em nome da educação”. A questão é boa, eu penso, porque ela exige que os adultos se envolvam na forma como a ansiedade e o desejo adultos também estruturam os imperativos educacionais e o construto do desenvolvimento infantil.

É essa possibilidade- a insuficiência do conhecimento- que eu acho que o campo da educação ignora.
Se o conhecimento for sempre inadequado, se o conhecimento também mascara, de alguma forma, nossa capacidade para a ignorância e se nós devemos, mesmo assim, ter a ilusão do conhecimento para poder perambular pelo mundo, existe uma abordagem do conhecimento que possa nos permitir tolerar suas incertezas, surpresas e transformações?

O problema inexplicado consiste em saber como imaginar qual conhecimento possibilitará novas práticas do eu quando o conhecimento dominante da sexualidade está tão preso e constituído pelos discursos do pânico moral, pela suposta proteção de crianças inocentes, pelo eugenismo da normalização e pelos perigos das representações explícitas da sexualidade.

O que está em jogo quando enfrentamos as condições que os jovens e os adutos nos apresentam quando eles moldam suas vidas? E que ocorre se o que está em jogo são os limites de nosso conhecimento?

Por outro lado, um modelo de educação sexual baseado na ideia de informação exige o pressuposto equivocado de que a informação não será nenhum problema para o aprendiz ou para o professor. O que não se pensa é que toda aprendizagem é também uma desaprendizagem.
O que ainda está por ser feito é uma teoria da aprendizagem que possa tolerar sua própria implicação na paixão pela ignorância e no aparato que Foucault chamou de saber/poder/prazer.
Devemos começar a admitir que a paixão pela ignorância estrutura até mesmo a aprendizagem crítica?
Significa, então, insistir que as relações culturais e a informação de qualquer tipo devem ser tomadas como sintomáticas e não como curativas e finais, devem ser tomadas como sujeitas ao trabalho daqueles que discutem seus infinitos significados.
Além disso, a perspectiva normativa sobre a sexualidade, ao tentar fixar certas identidades sexuais através do saber, impede que compreendamos que nossa conduta sexual é uma prática e não uma janela através da qual estriamos limitadas a descobrir nossa verdadeira e racional identidade.

Pois, se nós quisermos levar a sério as teorias sociais sobre a historicidade e o caráter problemático das construções- vistas como relações de poder- a pedagogia poderia, então, começar com o pressuposto de que as identidades são feitas e não recebidas e o trabalho do currículo consistiria em incitar identificações e críticas, e não em fechá-las. Além disso, uma educação sexual socialmente relevante pode apenas oferecer mais questões.
A que valores, orientações e éticas deveria uma educação sexual socialmente relevante apelar se a cultura não é uma casa ordenada e segura ou se a cultura produz seu próprio conjunto de desigualdades ao longo das linhas do gênero, do status socioeconômico, das práticas sexuais, da idade, de conceitos de beleza, do poder e do corpo?
Se os adolescentes são igualmente uma construção social e não têm, portanto, nenhuma universalidade, exceto pelo fato de que nas democracias modernas a categoria assume a forma de um status extralegal de cidadania e consentimento sexual e está, portanto, sujeito aos controles dos pais e da supervisão escolar, se algumas outras construções, tais como a AIDS, as doenças sexualmente transmissíveis, a gravidez indesejável e várias formas sexualidas de violência, colocam os corpos adolescentes- seja lá de que forma- em risco, nós podemos, então, formular uma questão ética.
De que forma os educadores e os estudantes podem se envolver eticamente em uma educação sexual vista como indistinguível de uma prática de liberdade e do cuidado de si?
Para que essas questões seja importante não é suficiente que os educadores as discutam e tomem uma decisão sem os estudantes e apresentem, depois, um conhecimento estável e certo.
O que poderia acontecer se os educadores começassem suas discussões, entre eles e com seus estudantes, pelo reconhecimento de que não existe nada fácil na educação sexual e se a preocupação fosse fazer um currículo que não incitasse a curiosidade? A educação sexual continuaria, então, a significar “nossa paixão pela ignorância”?

Estou propondo um currículo que possa recusar os fundamentos do eugenismo e da higiene social.
Nós podemos ainda pensar na literatura, na poesia, no cinema, na música, nos murais de rua, nas peças de teatro e nos prazeres obtidos quando nos apaixonamos por pessoas e por ideais, pois nessas perspectivas imaginárias existe uma tolerância pelos desvios da vida, a preocupação não está em estabilizar o conhecimento, mas em como explorar suas fissuras, suas insuficiências, suas traições e mesmo suas necessárias ilusões.
Uma conversa franca não pode ser planejada antecipadamente, pois se tentamos predizer o que acontecerá estaremos nos movimentando no terreno da paixão pela ignorância.
O modelo de educação sexual aqui proposto exige muito das professoras e dos professores. Em primeiro lugar, elas e eles devem estar dispostos a estudar a postura de suas escolas e a ver como essa postura pode impedir ou tornar possíveis diálogos com outros professores e com estudantes.
Elas devem estar preparadas para serem incertas em suas explorações e ter oportunidades para explorar a extensão e os surpreendentes sintomas de sua própria ansiedade.
A sexualidade tem muito a ver com a capacidade para a liberdade e com os direitos civis e o direito a uma informação adequada é parte daquilo que vincula a sexualidade tanto com o domínio imaginário quanto com o domínio público.
É importante formular questões que possam desestabilizar a docilidade da educação.

Curiosidade, Sexualidade e Currículo.
Deborah Britzman, 2010.