terça-feira, janeiro 18, 2011

Revista Júnior

Pode-se dizer que as instituições midiáticas formam uma espécie de sistema carregado de valores e padrões de conduta que são transmitidos constantemente aos indivíduos de maneira que estes, embora sejam atingidos direta ou indiretamente, nem sempre têm consciência dessa influência em suas formas de autocompreensão, na maneira como vivem e se relacionam com outras pessoas.

Assim como a noção de “homem”, que é sempre aplicada em sua plenitude àqueles que se relacionam e se interessam sexualmente por mulheres, a de “masculinidade” é comumente tida como singular, única e heterossexual, restringindo muito a sua utilização.

Dada a complexidade das relações sociais e da forma como as categorias gênero, sexualidade, raça, geração e classe social se intersectam, o estudo busca – dentro do possível - associá-los na análise.

Afinal, as influências culturais marcam relações de autocontrole internas ao sujeito - em esforço para se adequar ao modelo tido como correto e natural. Este modelo, ou modelos, não são neutros nem passíveis de livre escolha, pois a coletividade cria – assim como a mídia dissemina - representações valorativas, articulando uma rede de hierarquias: homem x mulher, normal x desviante, hegemônico x subalterno, dominante x dominado.

Mesmo que o padrão dos modelos da maioria das revistas –tanto masculinas quanto femininas- seja dificilmente alcançado por grande parte das pessoas (principalmente com as intervenções do Photoshop, que corrigem defeitos e deixam os modelos próximos da “perfeição”), há uma ilusão de que ele é saudável, obtido através de uma conduta positiva de exercícios físicos e alimentação natural, ou seja, por meio de uma vida regrada e baseada na autoperitagem. Pessoas acima do peso estariam não apenas fora do desejável no âmbito estético, mas também muito mais propensas a doenças- ainda que remédios para emagrecer, doenças como bulimia ou anorexia e anabolizantes sejam alternativas nada benéficas, e constantemente utilizadas por quem deseja alcançar o corpo tido como ideal.

O culto à disciplina alimentar e de exercícios elude a distância socioeconômica de forma a parecer que o padrão corporal em voga é alcançável por qualquer um e sua não-obtenção a prova do “fracasso” do indivíduo, uma falha “moral” perceptível no estereótipo de preguiça e falta de autocontrole que nossa sociedade atribui a obesos em geral.

A revista Júnior, dirigida a um público gay jovem exposto a estas demandas corporais, reforça estas idéias por meio de capas, matérias e – sobretudo – anúncios publicitários em que a adesão a um corpo ideal acenasse com uma possibilidade promissora: a de alcançar aceitação social plena.

A revista Júnior, assim como o circuito de consumo de seus leitores, revela uma norma tão paradoxal quanto difícil de ser seguida à risca: a de que se deve ser gay, mas dentro de uma conformidade ou flexibilidade de gênero, de forma que a masculinidade hegemônica possa ser acionada quando seja necessário “passar por hetero”. No fim das contas, um valor dos mais altamente erotizados em todo o meio gay brasileiro, nosso equivalente do norte-americano straight-acting.

Os “culpados” são os gays veteranos, é a mídia, é o marketing, é a indústria, o mercado, mas a revista Júnior se isenta desta responsabilidade já que abre suas páginas para que esse tipo de discussão seja feita- ainda que as abra também para o mercado, o marketing e a indústria, fortalecendo a noção do gay sofisticado e consumista. Essa duplicidade é vista como uma qualidade, já que logo no editorial de estréia se explicita que a Júnior seria “assumida sem ser militante, sensual sem ser erótica, cheia de homens lindos, com informações pra fazer pensar e entreter”. O “pensar” fica por parte desses textos mais sérios, de estudiosos renomados e com questões espinhosas, enquanto o “entreter” se estende pelo resto da revista, com suas fotos sensuais, dicas de moda, festas famosas, viagens para o exterior e sugestões de artigos “indispensáveis”.

Como grupo social, em um passado não muito distante, ou seja, durante as décadas de 1960 e 1970, os gays foram avaliados por muitos como possíveis contestadores da ordem hegemônica, criando formas totalmente novas de relações e construção de subjetividade. Tal esperança não se concretizou completamente, a partir do momento em que forças do controle social moveram o grupo do gueto questionador para um âmbito mercadológico, baseado em consumo e voltado à adequação aos valores impostos pela sociedade (MISKOLCI, 2006 p.691).

Matérias sobre almas gêmeas, loucuras de amor e falas que explicitam a busca por “alguém para a vida toda” dividem espaço com questionamentos sobre a existência de relacionamentos duradouros no “mundo gay”.

Essa visão foi mantida durante um longo tempo e, embora obtivesse reações contrárias em protesto, além de uma constante busca dos homossexuais a maior reconhecimento na sociedade, só começou a ser fortemente enfrentada a partir de 1969, quando eclodiu a Revolta de Stonewall. Respondendo à costumeira repressão policial sobre o bar nova iorquino Stonewall Inn, cujo público era formado por homossexuais femininos, masculinos, travestis e drag queens, os freqüentadores se revoltaram e enfrentaram violentamente a força policial, em um confronto que durou cinco dias e, conforme foi noticiado, angariou mais e mais ativistas contra a violência e o preconceito.

Em um período ainda marcado pela contracultura, os grupos homossexuais representavam a possibilidade de uma inovação sem precedentes sendo que muitos deles pregavam mudanças do cerne da sociedade tradicional como
(...) a abolição dos papéis sexuais, a transformação da instituição familiar, a desconstrução das categorias monolíticas da homo e da heterossexualidade, o desenvolvimento de um novo vocabulário do erótico e, sobretudo, a compreensão da sexualidade como prazerosa e relacional ao invés de reprodutiva ou definidora de um status moral aceitável ou reprovável socialmente. (MISKOLCI, 2007, p.107)

Na década de 1980, entretanto, o movimento de busca por mudanças sociais foi preterido devido a um assunto mais urgente: o surgimento da AIDS. Atingindo fortemente os homossexuais, principalmente homens, a doença causou a morte de um número incalculável de pessoas. Durante esse período, a informação era escassa e a pecha de doença exclusivamente de um grupo de risco- encabeçado pelos gays, mas que contava também com a presença de usuários de drogas, africanos e haitianos (pois se acreditava que a doença tinha surgido na África ou no Haiti), hemofílicos e prostitutas- foi assimilada de modo quase irrevogável sob o título de “praga gay”. A AIDS criou um verdadeiro pânico sexual25e como tal acabou gerando como resposta um retorno aos valores tradicionais, inclusive por parte dos gays.
O movimento político nesse momento se reconfigurou de maneira a priorizar a obtenção de direitos civis para os homossexuais, voltando seus esforços à união com o Estado e rejeitando práticas consideradas “marginais”. Assim, buscando uma integração maior do grupo na sociedade - objetivo que continua sendo perseguido nos dias atuais- adotou como bandeira principal, em nossos dias, a busca pelo direito ao casamento civil. Essa luta de gays e lésbicas para alcançar os mesmos direitos concedidos aos heterossexuais é válida no que diz respeito à obtenção de igualdade, visibilidade e aceitação. No entanto, analisando o potencial modificador já creditado ao grupo, essas lutas que se dão em um âmbito conservador acabam sendo normalizantes.

Enquanto os homens são mais livres de amarras sociais no que diz respeito ao seu prazer, as mulheres ainda cultivam preocupações com a sua “honra” e “reputação”: se fala de sexo mais abertamente e existiu de fato uma maior liberação feminina, que possibilitou uma vida sexual muito mais ativa, entretanto até mesmo em revistas vistas como ousadas (Nova Cosmopolitan, por exemplo, que traz guias de sexo lacrado, com imagens gráficas) retoma questões extremamente conservadoras como “fazer ou não sexo no primeiro encontro”, explicitando o medo que a mulher tem de ser julgada por sua sexualidade. Se os homens heterossexuais muitas vezes fazem uma diferenciação entre a mulher que merece ser valorizada e a que não (mulher pra casar X mulher pra sexo), os homossexuais não parecem considerar um parceiro menos digno exclusivamente por ter aceitado fazer sexo sem compromisso, e assim estariam mais abertos a esse tipo de relação rápida e fugaz

Este chamado à “tradição” não parece mais ser motivo de dúvidas ou questionamentos como nos relatos de quem viveu o período da contracultura e os obstáculos à realização do “conto de fadas” parecem estar mais na legislação do que nas particularidades dos relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo. O ideal amoroso monogâmico, quiçá legalizado e até mesmo reprodutivo se converte ele mesmo em algo a ser “consumido”, mas ainda como um ideal enquanto predomina o suposto “hedonismo” do presente.