segunda-feira, janeiro 17, 2011

Televisão e Educação

Fundamentada sobretudo em Michel Foucault, tento mostrar de que modo a mídia participa da constituição de sujeitos e subjetividades, na medida em que produz imagens, significados, enfim, saberes que de alguma forma se dirigem à “educação” das pessoas, ensinando-lhes modos de ser e estar na cultura em que vivem.

Estudar a TV, ter a mídia como objeto de estudo, investigar, por exemplo, como se faz um anúncio publicitário ou com que linguagem se constroem matérias de jornais ou revistas ou, ainda, como as imagens e informações da mídia são compreendidas e até incorporadas pelas pessoas, propor modos de utilização desses produtos no cotidiano escolar- tudo isso constitui tarefa permanente e desejável, se nos interessa compreender mais sobre os modos de vida que produzimos e que nos produzem.

Quando assistimos à TV, pode-se afirmar que esses olhares dos outros também nos olham, mobilizam-nos, justamente porque é possível enxergar ali muito do que somos (ou do que não somos), do que negamos ou daquilo em que acreditamos, ou ainda do que aprendemos a desejar ou a rejeitar ou simplesmente apreciar. Em poucas palavras: em maior ou menor grau, nós sempre estamos um pouco naquelas imagens.
Nossa experiência com os diferentes artefatos culturais diz respeito a um aprendizado muito específico, de nos olharmos também naquilo que olhamos, e de pensar a partir do que foi visto, de tomar para nós o que alguém pensou e que tornou de alguma forma visível, público. (p. 12)


Nesse sentido, defendo a tese de que a TV, na condição de meio de comunicação social, ou de uma linguagem audiovisual específica ou ainda na condição de simples eletrodoméstico que manuseamos e cujas imagens cotidianamente consumismos, tem uma participação decisiva na formação das pessoas- mais enfaticamente, na própria constituição do sujeito contemporâneo. Pode-se dizer que a TV, ou seja, todo esse complexo aparato cultural e econômico- de produção, veiculação e consumo de imagens e sons, informação, publicidade e divertimento, com uma linguagem própria- é parte integrante e fundamental de processos de produção e circulação se significados e sentidos, os quais por sua vez estão relacionados a modos de ser, a modos de pensar, a modos de conhecer o mundo, de se relacionar com a vida.
“Imagem é tudo”- esse é o conselho que ouvimos todos os dias: é preciso não apenas ser, mas “parecer ser”; e se não pudemos ser, que nos esforcemos para parecer, e isto pode até bastar, porque cultivar a imagem (de si mesmo, de um produto, de uma idéia) mostra-se como algo tremendamente produtivo.

“Desmanchar” os materiais televisivos, através de um trabalho pedagógico sério e criativo, significa operar sobre a mídia e a publicidade; ou seja, significa trazer professores, crianças, adolescentes e jovens para uma tarefa de leitura criteriosa da esfera cultural- tarefa que certamente inclui o debate a respeito das formas de controle da sociedade civil sobre aquilo que é produzido e veiculado pela televisão.
Afinal, como cada um de nós participa dos processos de produção de sentidos na nossa sociedade? Que distância ou que proximidade há entre os modos pelos quais, por exemplo, as mulheres brasileiras de diferentes posições sociais são mostradas nos comerciais que vendem bombos, sapatos, máquinas de lavar roupa, temperos para a cozinha, computadores ou cerveja? Como se complementam ou entram em choque as conquistas de uma certa sociedade, em termos de suas relações políticas, jurídicas, econômicas, de gênero, geracionais, e as formas de sociabilidade construídas e veiculadas no espaço da mídia? De que modo os sujeitos individuais se sentem de alguma forma representados ou excluídos nas narrativas televisivas?

Falo das profundas alterações nas esferas do cruzamento entre o público e o privado, alterações que trazem para o centro das atenções alguns temas como: exposição ampla da intimidade, do corpo e da sexualidade; desejo de visibilidade pública, a qualquer preço; dificuldade de estabelecimento de fronteiras entre espaços privados e os espaços públicos; problemas de compreensão e tratamento das diversidades e das diferenças sociais e culturais, tratadas muitas vezes como um “outro” a normalizar ou a excluir.

“No momento em que a televisão e a mídia são cada vez menos capazes de prestar conta dos fatos (insuportáveis) do mundo, elas descobrem a vida cotidiana, a banalidade existencial como acontecimento mais mortífero, como a atualidade mais violente. E as pessoas ficam fascinadas, fascinadas e aterrorizadas pela indiferença do nada-a-dizer, nada-a-fazer, pela indiferença da própria existência”.

O termo privado significava literalmente privação de alguma coisa.

Júlia Kristeva pergunta se não estaríamos vivendo hoje uma espécie de redução da nossa vida interior, justamente porque intermitentemente estamos sendo imaginados por outros que não são nós: os comerciais se encarregam, por exemplo, de imaginar situações de sonho ou de humor ou de agressividade por nós mesmos; a TV, a todo momento, expõe imagens que de certa forma se apropriam de nossas angústias e desejos, às vezes com tal intensidade que até mesmo se poderia dizer que confunde o sentido que cada um de nós daria a essas mesmas angústias e desejos. É possível pensar que, enredados em tantas e tão freqüentes imagens, nossa própria vida psíquica poderia sofrer um bloqueio, inibir-se de tal, forma que viveríamos hoje uma dificuldade muito grande de “representar a nós mesmos”. Talvez isso explique por que desejamos tanto ver a intimidade do outro na TV. A dificuldade de viver nossa privacidade, de ficar talvez no silêncio de nós mesmos, nos impele para o íntimo do outro, como se nele buscássemos o que perdemos.

A diferença, termo que hoje adquire tanto relevo em diversos campos do conhecimento, espaços educacionais, práticas políticas, movimentos sociais...
Concordo com o estudioso Carlos Skliar, quando este afirma que há que se compreender as diferenças para além de uma tolerância com as pluralidades ou as diversidades culturais, uma vez que “as diferenças são sempre diferenças” e, como tal, constituem-se fundamentalmente como fato político, são diferenças políticas, diferenças que “não são facilmente permeáveis nem perdem de vista suas próprias fronteiras”; daí que existem independentemente de serem ou não aceitas ou de que algum poder as nomeie como aceitáveis ou “normais”. Elas existem e se afirmam em lutas muito concretas. Por isso, torna-se indispensável pensar o conceito de diferença do ponto de vista político e social, em relação a tempos e sociedades muito específicas, constituídas em um campo de lutas que sempre envolvem exclusões e questões de injustiça social e econômica.
Em que medida os diferentes não seriam tratados, muitas vezes, como meros detalhes, simples novidades? Ao mesmo tempo, e apesar dessa repetição do mesmo, não haveria algumas conquistas significativas no que se refere à visibilidade pública desses grupos e minorias, nomeados nesses mesmos lugares?

Hoje não haveria um lugar, um dia de nossa vida, em que não sejamos chamados a cuidar de nosso corpo ou a olhar para a nossa própria sexualidade. Corpos de tantos outros e outras nos são oferecidos como modelo para que operemos sobre nosso próprio corpo para que o transformemos, para que atinjamos (ou que pelo menos desejemos muito) um modo determinados de sermos belos, magros, atletas, saudáveis, eternos. Da mesma forma, somos chamados compulsivamente a ouvir e a falar de sexo e sexualidade, como se ali estivesse toda a nossa verdade como sujeitos. Ao tomar a TV como objeto de estudo, um dos temas imprescindíveis é justamente o da normalização de nossos corpos e mentes, de nossa sexualidade. Tal normalização é experimentada a partir de ensinamentos a que temos acesso cotidianamente e que funcionam pela redundância, pela possibilidade tecnológica quase infinita de a informação fazer-se outra e sempre a mesma, dirigida a pessoas cada vez mais ávidas de repetirem para si mesmas que um dia, quem sabe, viverão melhor, serão mais felizes, estarão mais bonitas, poderão viver mais livremente e com mais prazer sua sexualidade.
Assim o presente se torna angustiado, ansioso, eufórico, desesperançado e isso nos faz sentir-nos em débito com um prazer na verdade mais idealizado do que vivido, e com uma imagem e um corpo que não sabemos, não podemos ou não conseguimos alcançar. (p. 49)
Se é verdade que os discursos sobre como devemos proceder, como devemos ser e estar nesse mundo, o que fazer com cada parte de nosso corpo, oq eu fazer com nossa sexualidade, produzem-se e reproduzem-se nos diferentes campos de saber e práticas sociais, talvez se fossa afirmar que adquirem uma força particular quando acontecem no espaço dos meios de comunicação.
Assim, todas as “dicas” médicas, psicológicas ou até de ordem religiosa ou moral, comunicadas através de inúmeros especialistas de todos esses campos do conhecimento, a respeito daquilo que devemos fazer com nosso corpo e nossa sexualidade, ao se tornarem presentes no grande espaço da mídia, não só ampliam seu poder de alcance público como conferem à própria mídia um poder de verdade, de ciência, de seriedade.

Ao transformar a TV em objeto de estudo, estamos propondo a compreensão de que nosso olhar e o mundo não se separam, assim como ocorre com as palavras e as coisas. Um está no outro. Umas estão nas outras.

Vemos TV dispersivamente, enquanto conversamos e nos movimentamos pelas peças de nossa residência, almoçamos, atendemos o telefone, recebemos amigos. A linguagem básica da TV funda-se justamente nessa dispersão.
A publicidade e a indústria do entretenimento “não brincam em serviço”, como se diz: seus produtos são realizados para alguém concreto e real, para alguém com quem entram em relação de um modo muito particular, a fim de que este “complete” de alguma forma a história narrada, a mensagem de venda, a informação contida naquelas imagens e sons.

Ellsworth diz que estudar o modo de endereçamento de um filme fundamenta-se exatamente nessas duas questões: “quem este filme pensa que você é?” e “quem esse filme quer que você seja?” Ou seja, trata-se de um processo extremamente complexo, cheio de nuances, de tensão, e que envolve inúmeros procedimentos e técnicas de linguagem, de expressividade, de ritmos, de seleção, de imagens, de tempos, de tramas narrativas.

Entendo discurso como o conjunto de encunciados de um determinado campo de saber, os quais sempre existem como prática. Posso assim falar, por exemplo, em discurso pedagógico, discurso feminista, discurso científico...
Mas e a representação? Para Stuart Hall, a representação, em síntese, é a produção se significados através da linguagem, haveria então sistemas de representação ou linguagens, modos de representar, modos de usar signos diversos, que se referem a objetos, pessoas, ao chamado “mundo real”, mas também a sentimentos, a fantasias, sonhos, desejos.

Como delimitar com precisão os vários tipos de mídia, quando nós mesmos somos mídia, como diz Umberto Eco (1984), na medida em que nosso corpo e a camiseta que vestimos, juntos, “vendem” a gripe da loja em que foi feita a compra? Então, como distinguir gêneros de programas de TV, quando, por exemplo, se torna tão tênue a distinção entre programas de ficção e programas informativos?
O poder de síntese- comunicar uma série de sentimentos, idéias, valores em apenas 30 segundos- e o poder de dirigir-se a cada um de nós em particular, com agilidade, bom humor e muitas vezes com cuidadoso senso estético são qualidades que se prestam não somente a vender objetos e instituições, mas sobretudo modos de ser e existir neste nosso tempo.

Televisão & Educação: fruir e pensar a TV.
Fischer, Rosa Maria Vueno. – 2. ed.
Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
160p. (Coleção Temas & Educação).