segunda-feira, janeiro 17, 2011

O Corpo Educado

As múltiplas formas de fazer-se mulher ou homem, as várias possibilidades de viver prazeres e desejos corporais são sempre sugeridas, anunciadas, promovidas socialmente (e hoje possivelmente de formas mais explícitas do que antes).
Elas são também, renovadamente, reguladas, condenadas ou negadas.

Se as transformações sociais que construíam novas formas de relacionamento e estilos de vida já se mostravam, nos anos 1960, profundas e perturbadoras, elas se acelerariam ainda mais, nas décadas seguintes, passando a intervir em setores que haviam sido, por muito tempo, considerados imutáveis, trans-históricos e universais.

As novas tecnologias reprodutivas, as possibilidades de transgredir categorias e fronteiras sexuais, as articulações corpo-máquina a cada dia desestabilizam antigas certezas; implodem noções tradicionais de tempo, de espaço, de “realidade”; subvertem as formas de gerar, de nascer, de crescer, de amar ou de morrer.
Jornais e revistas informam, agora, que um jovem casal decidiu congelar o embrião que havia gerado, no intuito de adiar o nascimento de seu filho para um momento em que disponha de melhores condições para criá-lo; contam que mulheres estão dispostas a abrigar o sêmen congelado de um artista famoso já morto; revelam a batalha judicial de indivíduos que, submetidos a um conjunto complexo de intervenções médicas e psicológicas, reclamam uma identidade civil feminina para completar o processo de transexualidade que empreenderam.

Conectados pela Internet, sujeitos estabelecem relações amorosas que desprezam dimensões de espaço, de tempo, de gênero, de sexualidade e estabelecem jogos de identidade múltipla nos quais o anonimato e a troca de identidade são frequentemente utilizados.

Embaladas pela ameaça da AIDS e pelas possibilidades cibernéticas, práticas sexuais virtuais substituem ou complementam as práticas face a face.
Por outro lado, adolescentes experimentam, mais cedo, a maternidade e a paternidade; uniões afetivas e sexuais estáveis entre sujeitos do mesmo sexo se tornam crescentemente visíveis e rotineiras; arranjos familiares se multiplicam e se modificam... Todas essas transformações afetam, sem dúvida, as formas de viver e de construir identidades de gênero e sexuais.

Na verdade, tais transformações constituem novas formas de existência para todos, mesmo para aqueles que, aparentemente, não as experimentam de modo direto.

Elas permitem novas soluções para as indagações que sugeri e, obviamente, provocam novas e desafiadoras perguntas.

Talvez seja possível, contudo, traçar alguns pontos comuns para sustentação das respostas. O primeiro deles remete-se à compreensão de que a sexualidade não é apenas uma questão pessoal, mas é social e política; o segundo, ao fato de que a sexualidade é “aprendida”, ou melhor, é construída, ao longo da vida, de muitos modos, por todos os sujeitos.

Podemos entender que a sexualidade envolve rituais, linguagens, fantasias, representações, símbolos, convenções... Processos profundamente cultuais e plurais. Nessa perspectiva, nada há de exclusivamente “natural” nesse terreno, a começar pela própria concepção de corpo, ou mesmo de natureza. Através de processos culturais definimos o que é- ou não- natural; produzimos e transformamos a natureza e a biologia e, consequentemente, as tornamos históricas.
Os corpos ganham sentido socialmente. A inscrição dos gêneros- feminino ou masculino- nos corpos é feita, sempre, no contexto de uma determinada cultura e, portanto, com as marcas dessa cultura. As possibilidades da sexualidade- das formas de expressar os desejos e prazeres- também são sempre socialmente estabelecidas e codificadas.
As identidades de gênero e sexuais são, portanto, compostas e definidas por relações sociais, elas são moldadas pelas relações de poder de uma sociedade.
(mudança de sexo do governante muito questionada, enquanto de partido, posição política, propostas, não).

Frequentemente nos apresentamos (ou nos representamos) a partir de nossa identidade de gênero e de nossa identidade sexual. Essa parece ser, usualmente, a referência mais “segura” sobre os indivíduos.

Precisamos de algo que dê um fundamento para as nossas ações, construímos nossas narrativas pessoas, nossa biografias, a partir da tentativa de fixar uma identidade, afirmando que o que somos agora é o que, na verdade, sempre fomos.
Num mundo de fluxo aparentemente constante, onde os pontos fixos estão se movendo ou se dissolvendo, seguramos o que nos parece mais tangível, a verdade de nossas necessidades e desejos corporais.
O corpo é visto como a corte de julgamento final sobre o que somos ou o que podemos nos tornar. Por que outra razão estamos tão preocupados em saber se os desejos sexuais, sejam hetero ou homossexuais, são inatos ou adquiridos? Por que outra razão estamos tão preocupados em saber se o comportamento generificado corresponde aos atributos físicos? Apenas porque tudo o mais é tão incerto que precisamos do julgamento que, aparentemente, nossos corpos pronunciam. (Weeks, 1995, p. 90-91).

Nossos corpos constituem-se na referência que ancora, por fim, a identidade. E, aparentemente, o corpo é inequívoco, evidente por si; em conseqüência, esperamos que o corpo dite a identidade, sem ambigüidades nem inconstância.

O corpo se altera com a passagem do tempo, com a doença, com as mudanças de hábitos alimentares e de vida, com possibilidades distintas de prazer ou com novas formas de intervenção médica e tecnológica.
De qualquer forma, investimos muito nos corpos. De acordo com as mais diversas imposições cultuais, nós os construímos de modo a adequá-los aos critérios estéticos, higiênicos, morais, dos grupos a que pertencemos. As imposições de saúde, vigor, vitalidade, juventude, beleza, força, são distintamente significadas, nas mais variadas culturas e são também, nas distintas culturas, diferentemente atribuídas aos corpos de homens ou de mulheres. Através de muitos processos, de cuidados físicos, exercícios, roupas, aromas, adornos, inscrevemos nos corpos marcas de identidade e, consequentemente, de diferenciação.
Treinamos nossos sentidos para perceber e decodificar essas marcas e aprendemos a classificar os sujeitos pelas formas como eles se apresentam corporalmente, pelos comportamentos e gestos que empregam e pelas várias formas com que se expressam.

É fácil concluir que nesses processos de reconhecimento de identidades inscreve-se, ao mesmo tempo, a atribuição de diferenças. Tudo isso implica a instituição de desigualdades, de ordenamentos, de hierarquias, e está, sem dúvida, estreitamente imbricado com as reder de poder que circulam numa sociedade.
O reconhecimento do “outro”, daquele ou daquela que não partilha dos atributos que possuímos, é feito a partir do lugar social que ocupamos.
De modo mais amplo, as sociedades realizam esses processos e, então, constroem os contornos demarcados das fronteiras entre aqueles que representam a norma (que estão em consonância com seus padrões culturais) e aqueles que ficam fora dela, às suas margens.
Em nossa sociedade, a norma que se estabelece, historicamente, remete ao homem branco, heterossexual, de classe média urbana e cristão e essa passa a ser a referência que não precisa mais ser nomeada.
Os grupos sociais que ocupam as posições centrais “normais” (de gênero, de sexualidade, de raça, de classe, de religião, etc.) têm possibilidade não apenas de representar a si mesmos, mas também de representar os outros. Eles falam por si e também falam pelos “outros” (e sobre os outros); apresentam como padrão sua própria estética, sua ética ou sua ciência e arrogam-se o direito de representar (pela negação ou pela subordinação) as manifestações dos demais grupos.

A heterossexualidade é concebida como “natural” e também como universal e normal. Aparentemente supõe-se que todos os sujeitos tenham uma inclinação inata para eleger como objeto de seu desejo, como parceiro de seus afetos e de seus jogos sexuais alguém do sexo oposto. Consequentemente, as outras formas de sexualidade são constituídas como antinaturais, peculiares e anormais.
É curioso observar, no entanto, o quanto essa inclinação, tida como inata e natural, é alvo da mais meticulosa, continuada e intensa vigilância, bem como do mais diligente investimento.

Tal pedagogia é muitas vezes sutil, discreta, contínua, mas, quase sempre, eficiente e duradoura.

Jovens escolarizados aprendemos a suportar o cansaço e a prestar atenção ao que professores e professoras diziam; a utilizar códigos para debater, persuadir, vencer; a empregar os gestos e os comportamentos adequados e distintivos daquelas instituições.

O cinema, a televisão, a revista e a publicidade nos pareciam guias mais confiáveis para dizer como era uma mulher desejável, e tentávamos, o quanto era possível, nos aproximar dessa representação.

Não pretendo atribuir à escola nem o poder nem a responsabilidade de explicar as identidades sociais, muito menos de determiná-las de forma definitiva. É preciso reconhecer, contudo, que suas proposições, suas imposições e proibições fazem sentido, têm “efeitos de verdade”, constituem parte significativa das histórias pessoais.

Um corpo escolarizado é capaz de ficar sentados por muitas horas e tem, provavelmente, a habilidade para expressar gestos ou comportamentos indicativos de interesse e de atenção, mesmo que falsos. Um corpo disciplinado pela escola é treinado no silêncio e em determinado modelo de fala; concebe e usa o tempo e o espaço de forma particular. Mãos, olhos e ouvidos estão adestrados para tarefas intelectuais, mas possivelmente desatentos ou desajeitados para outras tantas.

As tecnologias utilizadas pelas escola alcançam, aqui, o resultado pretendido: o autodisciplinamento, o investimento continuado e autônomo do sujeito sobre si mesmo.

Para Foucault (1993) o domínio e a consciência de seu próprio corpo só puderam ser adquiridos pelo efeito do investimento do corpo pelo poder: a ginástica, os exercícios, o desenvolvimento muscular, a nudez, a exaltação do belo corpo.

A primeira menstruação passou nos últimos séculos de tema privado para público (tornando-se um interesse de mercado); o momento, antes tratado fundamentalmente como um marco de “passagem” da infância para a vida adulta, era vinculado, estreita e diretamente, à sexualidade e à capacidade reprodutiva das mulheres; mais tarde, no entanto, com o avento dos absorventes e de outros produtos industrializados e com a medicalização da menstruação, de certa forma, essas questões ficaram secundarizadas e ganharam maior destaque a higiene e a proteção do corpo, a limpeza e a aparência. A expectativa e a ansiedade pela primeira menstruação, a comparação com as colegas de escola estão entre as lembranças significativas de muitas de nós.
A extensa ladainha de cólicas, dores de cabeça e cuidados parece pouco adequada para o modelo de mulher dinâmica vendido pela publicidade.

A produção de sujeitos é um processo plural e permanente. Esse não é, no entanto, um processo do qual os sujeitos participem como meros receptores, atingidos por instâncias externas e manipulados por estratégias alheias. Em vez disso, os sujeitos estão implicados e são participantes ativos na construção de suas identidades. Se múltiplas instâncias sociais, entre elas a escola, exercitam uma pedagogia da sexualidade e do gênero e colocam em ação várias tecnologias de governo, esses processos prosseguem e se completam através de tecnologias de autodisciplinamento e de autogoverno que os sujeitos exercem sobre si mesmos. Na constituição de mulheres e homens, ainda que nem sempre de forma evidente e consciente, há um investimento continuado e produtivo dos próprios sujeitos e na determinação de suas formas de ser ou “jeitos de viver” sua sexualidade e seu gênero.

A despeito de todas as oscilações, contradições e fragilidades que marcam esse investimento cultural, a sociedade busca, intencionalmente, através de múltiplas estratégias e táticas, fixar uma identidade masculina ou feminina “normal” e duradoura. Esse intento articula, então, as identidades de gênero “normais” a um único modelo de identidade sexual: a identidade heterossexual.
Nesse processo, a escola tem uma tarefa bastante importante e difícil. Ela precisa se equilibrar sobre um fio muito tênue: de um lado, incentivar a sexualidade “normal” e, de outro, simultaneamente, contê-la. Um homem e uma mulher “de verdade” deverão ser, necessariamente, heterossexuais e serão estimulados para isso. Mas a sexualidade deverá ser adiada para mais tarde, para depois da escola, para a vida adulta.
Aqueles e aquelas que se atrevem a expressar, de forma mais evidente, sua sexualidade são alvo imediato de redobrada vigilância, ficam “marcados” como figuras que se desviam do esperado, por adotarem atitudes ou comportamentos que não são condizentes com o espaço escolar.

A evidência da sexualidade na mídia, nas roupas, nos shopping centers, nas múscias, nos programas de TV e em outras múltiplas situações experimentadas pelas crianças e adolescentes vem alimentando o que alguns chamam de “pânico moral”.
Redobra-se ou renova-se a vigilância sobre a sexualidade, mas essa vigilância não sufoca a curiosidade e o interesse, conseguindo, apenas, limitar sua manifestação desembaraçada e sua expressão franca. As perguntas, as fantasias, as dúvidas e a experimentação do prazer são remetidas ao segredo e ao privado. Através de múltiplas estratégias de disciplinamento, aprendemos a vergonha e a culpa; experimentamos a censura e o controle. Acreditamos que as questões da sexualidade são assuntos privados, deixamos de perceber sua dimensão social e política.

As coisas se complicam ainda mais para aqueles e aquelas que se percebem com interesses ou desejos distintos da norma heterossexual.
(a troca de flores entre dois homens era institucionalmente muito mais ameaçadora que a violência física de uma luta masculina).

Meninos e meninas aprendem, também desde muito cedo, piadas e gozações, apelidos e gestos para dirigirem àqueles e àquelas que não se ajustam aos padrões de gênero e de sexualidade admitidos na cultura em que vivem.
Consentida e ensinada na escola, a homofobia expressa-se pelo desprezo, pelo afastamento, pela imposição do ridículo. Como se a homossexualidade fosse “contagiosa”, cria-se uma grande resistência em demonstrar simpatia para com sujeitos homossexuais: a aproximação pode ser interpretada como uma adesão a prática ou identidade.

De modo geral, salvo raras exceções, o/a homossexual admitido/a é aquele ou aquela que disfarça sua condição, “o/a erustido/a”. De acordo com a concepção liberal de que a sexualidade é uma questão absolutamente privada, alguns se permitem aceitar “outras” identidades ou práticas sexuais desde que permaneçam no segredo e sejam vividas apenas na intimidade. O que efetivamente incomoda é a manifestação aberta e pública de sujeitos e práticas não heterossexuais.

A escola é, sem dúvida, um dos espaços mais difíceis para que alguém “assuma” sua condição de homossexual ou bissexual. Com a suposição de que só pode haver um tipo de desejo sexual e que esse tipo - inato a todos- deve ter como alvo um indivíduo do sexo oposto, a escola nega e ignora a homossexualidade (provavelmente nega porque ignora) e, desta forma, oferece muito poucas oportunidades para que adolescentes ou adultos assumam, sem culpa ou vergonha, seus desejos. O lugar do conhecimento mantém-se, com relação à sexualidade, como o lugar do desconhecimento e da ignorância.

Curiosamente, as instituições e os indivíduos precisam desse “outro”. Precisam da identidade “subjugada” para se afirmar e para se definir, pois sua afirmação se dá na medida em que a contrariam e a rejeitam.

Como articular, então, as lutas? Como “fixar” os pontos comuns? Os sujeitos deslizam e escapam das classificações em eu ansiamos por localizá-los. Multiplicam-se categorias sexuais, borram-se fronteiras e, para aqueles que operam com dicotomias e demarcações bem definidas, essa pluralização e essa ambigüidade se abrem um leque demasiadamente amplo de arranjos sociais.

O Corpo Educado
Pedagogias da Sexualidade
Guacira Lopes Louro
O corpo educado: pegagogias da sexualidade. Louro, Guacira Lopes (organizadora). Tradução: Tomaz Tadeu da Silva- 3. ed.- Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010. 176p.