quarta-feira, agosto 15, 2007

Negligências...

A psicologia clínica usa o termo "pigmalionismo" para designar
1) a conduta erótica, um pouco estranha, de quem se apaixona por estátuas e as deseja;
2) num sentido mais amplo, a paixão pedagógica e erótica do sujeito que sonha com um objeto de amor e desejo que ele mesmo moldaria.

A psicologia experimental, nas últimas décadas, confirmou e debateu o "efeito Pigmalião":
quando os professores esperam um grande progresso de seus alunos, os alunos progridem duas vezes mais rápido.
O desempenho do aluno é proporcional às expectativas do professor.

Mas a história de Pigmalião não se aplica apenas em casos de extremismo pedagógico e terapêutico.
Qualquer um de nós desejou e deseja transformar o objeto amado.
O amor é prepotente: idealizamos o outro e acreditamos firme que ele ou ela se emendarão.

Mas grandes são as chances de que a vida em comum vire, rapidamente, um inferno.

Se o outro me idealiza, carrego seu ideal como um casaco novo: modifico minha postura para que o pano caia bem no meu corpo.
De uma certa forma, tento me parecer com o ideal que o outro ama em mim.

A inconstância amorosa talvez seja a expressão imediata do desejo de mudar -não de trocar de parceiro, mas de se reinventar. a convicção e a esperança de que a paixão nos transforme.

Infelizmente, mudar é difícil: a sedução exercida pelos novos amores é uma veleidade, um pouco como as resoluções de que as coisas serão diferentes no ano que começa.
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Quando o amor é o tema principal, o que é narrado são os transtornos iniciais (com mais ou menos meleca sentimental) ou, às vezes, o trágico desfecho. A prática cotidiana do amor é, em geral, apenas objeto de farsas e comédias: risível.

A segunda categoria é a das histórias em que um casal vive uma aventura que, aparentemente, não tem nada a ver com seu amor: procuram juntos desvendar um crime, assaltar um banco, roubar um quadro, ganhar uma guerra ou encontrar o Santo Graal. Ao longo dessas façanhas, eles se amam e têm ou não o tempo de se beijar e de transar.

Com ou sem minha companheira, é raro que eu assalte bancos, roube quadros ou solva enigmas policiais. Mas essas proezas valem como exemplos de um "fazer juntos", que, na prática do amor, é um ideal mais útil do que os meandros dos primeiros encontros, propostos pelos "filmes de amor".

Em suma, concordo com a citação proverbial de Antoine de Saint-Exupéry (o autor de "O Pequeno Príncipe"): "Amar não significa se olhar um ao outro, mas olhar juntos na mesma direção" .
Fica a pergunta: o que é "olhar juntos na mesma direção"? Na falta de fortalezas para expugnar, fazer o quê?

Criar filhos deixou de ser, hoje, a experiência comum dominante na qual prospera o amor de um casal. Há traços da subjetividade moderna que exigem dos casais outras escolhas: a sede de renovação constante (reproduzir e se reproduzir não é mais suficiente para preencher nossa vida) e, sobretudo, a vontade de capitalizar experiência por conta própria (sonhar, por procuração, com a experiência futura dos filhos não nos basta mais). Essa é, portanto, a dificuldade: fora criar filhos, o que é, hoje, para um casal, "olhar na mesma direção"?

Alguns praticam o amor lendo poesia em voz alta, outros estudam juntos, outros exercem a mesma profissão ou adotam ambos uma nova religião, outros ainda se dedicam a práticas sexuais "diferentes".
Tanto faz. O que importa é que, para existir, um casal precisa inventar e compartilhar uma (longa) aventura.

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Byron (o poeta romântico) lembra que, na vida moderna,
o que importa é a intensidade e a variedade de experiências.
A fome de viver e o anseio de aventuras levam alguns a lutar pela independência da Grécia, a pular de skate quando mal sabem andar ou a perder-se nas sarjetas do mundo.
E nos levam a sonhar com o que não ousamos empreender.

Emma Bovary (a heroína do romance de Flaubert) lembra que o amor é o grande operador moderno da mudança.
Descobrimos que podíamos inventar nossa vida quando começamos a casar por amor (e não para preservar a casta, a família e o patrimônio).
Portanto, esperamos do amor que ele nos transforme e nos leve para uma "outra" vida (e toda vida tem uma "outra" vida com a qual sonhar).

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O desejo só consegue se expressar por sobressaltos. É como se, contra o nosso desejo, tivéssemos erigido um dique inútil: a água irrompe, forte, pelas pequenas falhas, mas sua massa não se transforma em energia para inventar a vida.

Em matéria de desejo, somos todos criancinhas, incapazes de encontrar a coragem de fazer o que desejamos, mas sempre (e apenas) tentados por potes de geléia.

Contardo Calligaris