terça-feira, agosto 07, 2007

Absorção...

“A vida em seu conjunto é também dividade entre ócio e trabalho e guerra e paz, e as atividades são classificadas em necessárias e úteis e belas.” (Aristóteles)

A 'primeira ciência', em que se conservam o bem supremo e o prazer supremo, constitui obra do ócio de alguns poucos, cujas necessidades já se encontram suficientemente providas por outra parte.

A unidade representada pela arte, o puro caráter humano das suas pessoas é irreal; constitui o oposto do que ocorre na realidade social efetiva. (...) Em Shakespeare, as pessoas são tão próximas entre si que entre elas não há nada em princípio indizível, inexprimível.

O Renascimento trouxe a idéia da alma como uma parcela do mundo a ser explorado e fruído. A riqueza da “vida interior”, o interesse pelas até há pouco negligenciadas “situações individuais, únicas, vivas” da alma, era parte do programa “viver sua vida profundamente e até o fim”.

Quanto mais se debilita a crença no além celestial, tanto mais vigorosa é a crença no além da alma. Na idéia do amor se assumiu a idéia pela constância da felicidade terrena, pela benção da independência, pela superação do fim. Os amantes da poesia burguesa amam contra a volubilidade cotidiana, contra as imposições do realismo, contra a morte.

O indivíduo é considerado uma mônada independente e auto-suficiente. Sua relação com o mundo é ou abstrata e imediata, o indivíduo constitui já um mundo em si mesmo (como um eu dotado de conhecimento, sentidos e vontade)- ou abstrata e mediata (é determinada pelas regras da produção de mercadorias do mercado).Em ambos os casos o isolamento do indivíduo enquanto mônada não seria superado.

Mas a idéia do amor exige a superação individual do isolamento da mônada.

Ao mesmo tempo em que na arte o amor seria alçado em tragédia, no cotidiano burguês ameça se converter meramente em obrigação e hábito. O amor contém em si mesmo o princípio individualista da nova sociedade: ele exige exclusividade. (...) Mas essa atribuição da alma aos sentidos exige deles algo que são incapazes de oferecer: eles devem ser subtraídos à diversificação e à mudança e incorporados à unidade e à indivisibilidade da pessoa.

A alma nos torna suaves, complacentes e obedientes aos fatos que, afinal, não têm importância.

A alma é então o decisivo: a vida não realizada e não satisfeita do indivíduo. Na cultura da alma foram absorvidas-sob falsas formas- aquelas forças e necessidades que não puderam mais encontrar seu lugar no cotidiano. O ideal cultural assumiu um anseio por uma vida mais feliz: por qualidades humanas, bondade, alegria, verdade, solidariedade. Mas todas elas são dotadas de uma caracterização afirmativa: a de pertencerem a um mundo superior, mais puro, não cotidiano.

“Cultura: domínio da arte sobre a vida”, eis a definição de Nietzsche.

A Beleza da arte- diferentemente da verdade e da teoria- é compatível com o mau presente: ela pode proporcionar felicidade nesse plano. A teoria verdadeira reconhece a miséria e a ausência de felicidade do que existe. Mesmo onde ela indica o caminho para a transformação, ela não oferece consolo algum que concilie com o presente. A felicidade é um consolo: o consolo do instante belo na seqüência interminável da felicidade O prazer da felicidade é confinado no instante de um episódio. Mas o instante contém em si a amargura de seu desaparecimento.

Esse é o milagre propriamente dito da cultura afirmativa. Os homens podem se sentir felizes inclusive quando efetivamente não o são. O efeito da aparência torna incorreta até mesmo a afirmação da felicidade própria. O indivíduo, remetido a si mesmo, aprende a suportar, e até mesmo a amar, seu isolamento. A cultura afirmativa reproduz e glorifica em sua idéia de personalidade o isolamento e empobrecimento social dos indivíduos.

São essas as idéias que o conceito de personalidade encerra. A harmonia privada no meio da anarquia geral, a atividade prazeroso no meio do trabalho amargo. Ela absorveu em si tudo o que é bom e rejeitou o enobreceu tudo o que é ruim. O importante não é que o homem viva a sua vida: o importante é que ele a vida tão bem quanto possível.

O espaço da realização exterior se tornou muito restrito, o espaço da realização interior, muito grande. O indivíduo aprendeu a cobrar em primeiro lugar de si mesmo todas as exigências. (...) Ele encontra sua felicidade no existente.

A singularização cultural do indivíduo em personalidades fechadas em si mesmos, portadoras de sua realização em si mesmas, afinal corresponde ainda a um método liberal de disciplina que não exige domínio sobre um determinado plano de vida privada.

Marcuse- cultura e sociedade