terça-feira, agosto 28, 2007

O Que é Real? I

como desalojar o indivíduo da unidade em que ele se representa?

face a essa instabilidade da verdade,
a essa ausência de garantia do encontro,
a essa falta de representação discernível para o acontecimento singular,

não causa surpresa que o sujeito vacile,
recue e por fim renuncie ao desejo.

E se não houver, pergunta-se ele, nada a reconhecer além do que se deixa representar?
E se o lapso nada contiver da verdade,
se ele nada mais for do que um engano, um desvio acidental, um erro grosseiro?

É bem possível — por que não dizer? —
que não haja lugar para irrupção do sentido inesperado,
visto que só se comunicam significações.

E se não existir na realidade desejo algum, mas tão-somente demandas?
E se, finalmente, não houver na verdade nenhum real?

Pois se é sabido que o encontro com o real, mesmo se acaso se der,
não tem duração definida,
que sentido faz propor para si mesmo algo que não é sequer representável,
destituído de qualquer permanência?

Adorno, em sua Minima Moralia:

"são indivíduos que, em nome da coesão coletiva,
desculpam humanitariamente qualquer infâmia
e repelem inflexivelmente toda emoção não convencional como sentimental"

Libertos da inquietude que outrora afligia,
esses funcionários do laço social se dedicam à tarefa de proclamar,
em coro, que só vale a representação coesa dos agrupamentos.

De fato não há nenhum real, afirmarão eles: há somente realidade.
O desejo é fruto de um mero sentimentalismo histérico;
é melhor se contentar com as demandas, com o que se deixa comunicar.

Quanto ao encontro amoroso, isso não passa de um devaneio obscuro de poetas, o que conta mesmo é o desempenho da sexualidade.

E já que nada se apresenta, não existem tampouco sujeitos.
Há somente indivíduos, comportamentos e condutas.

Em breve: só é digno de valor o que se deixa socialmente representar!

O nome da paixão conformista,
que assim se estabelece,
é a canalhice, a paixão da própria renúncia ao desejo:
esperteza, em nome de um realismo calculado

De todo modo, sejam quais forem seus representantes,
não há como negar que a atitude canalha nos libera da inquietude que,
conforme vimos, vem marcar o encontro do sujeito com a verdade.

Sua função de evitar, a qualquer preço, a experiência dispersiva do encontro,
fixando o sujeito na estabilidade da representação,
garante-lhe uma reputação social perene.

Por isso, ela se exprime tão comodamente no jargão,
cujo domínio não somente nos exime de dizer o que pensamos,
como também nos isenta de pensar nas conseqüências do que dizemos.

Pois a realidade, enquanto domínio das representações coesas,
é de fato o que mais resiste, por estrutura, a todo efeito de dispersão.

Woody Allen vem outra vez ilustrar nosso argumento, naquilo que se poderia chamar de uma adequação besta do sujeito à realidade.
É o que se nota, por exemplo, na trajetória da personagem Robin, de seu filme Celebridades.
De especialista solitária em poesia do século XIV, ela alcança o tão almejado sucesso abandonando sua pesquisa apaixonada para se tornar uma fútil entrevistadora de televisão.
A função que doravante lhe garante reconhecimento social é a de fazer perguntas a quem não tem absolutamente nada a dizer.
"Tornei-me o tipo que sempre detestei e estou gostando disso", confessa ela à sua melhor amiga.
Nada melhor demonstra o desespero de Woody Allen diante deste fenômeno de adesão coletiva à realidade, comenta Jorge Coli,
do que o clamoroso help escrito com fumaça, no início e no final do filme, que em poucos segundos se dispersa no céu.

A razão é que todo discurso exige, da parte do sujeito, que ele fale em nome de algum laço coletivo para se fazer entender,
anestesiando-se com relação aos cortes que poderiam dissolvê-lo.