sexta-feira, agosto 24, 2007

Reminiscências...

Se me permitem uma generalização - inevitável numa exposição tão breve -,
podemos sintetizar os conhecimentos até agora adquiridos na seguinte fórmula:
os histéricos sofrem de reminiscências.

No século XIII, um dos velhos reis plantagenetas,
que fez transportar para Westminster os restos mortais de sua querida esposa e rainha Eleanor,
erigiu cruzes góticas nos pontos em que havia pousado o esquife.
Charing Cross é o último desses monumentos destinados a perpetuar a memória do cortejo fúnebre.
Em outro ponto da cidade, não muito distante da London Bridge,
verão uma coluna moderna e muito alta, chamada simplesmente The Monument,
cujo fim é lembrar o grande incêndio que em 1666 irrompeu ali perto e destruiu boa parte da cidade.

Tanto quanto se justifique a comparação,
esses monumentos são também símbolos mnêmicos como os sintomas histéricos.

os histéricos e neuróticos: não só recordam acontecimentos dolorosos que se deram há muito tempo, como ainda se prendem a eles emocionalmente; não se desembaraçam do passado e alheiam-se por isso da realidade e do presente.

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Como não podia modificar à vontade o estado psíquico dos doentes, procurei agir mantendo-os em estado normal.
Parecia isto a princípio empresa insensata e sem probabilidade de êxito.
Tratava-se de fazer o doente contar aquilo que ninguém, nem ele mesmo, sabia.
Como esperar consegui-lo?

Não o abandonei, contudo, sem tirar, das observações feitas, conclusões decisivas. Vi confirmado, assim, que as recordações esquecidas não se haviam perdido.
Jaziam em poder do doente e prontas a ressurgir em associação com os fatos ainda sabidos, mas alguma força as detinha...

Tratava-se em todos os casos do aparecimento de um desejo violento mas em contraste com os demais desejos do indivíduo e incompatível comas aspirações morais e estéticas da própria personalidade.
Produzia-se um rápido conflito e o desfecho desta luta interna era sucumbir à repressão a idéia que aparecia na consciência trazendo em si o desejo inconciliável, sendo a mesma expulsa da consciência e esquecida,
juntamente com as respectivas lembranças.

Imaginem que nesta sala e neste auditório,
cujo silêncio e cuja atenção eu não saberia louvar suficientemente,
se acha no entanto um indivíduo comportando-se de modo inconveniente,
perturbando-nos com risotas, conversas e batidas de pé,
desviando-me a atenção de minha incumbência.
Declaro não poder continuar assim a exposição;
diante disso alguns homens vigorosos dentre os presentes se levantam,
e após ligeira luta põem o indivíduo fora da porta.
Ele está agora "reprimido" e posso continuar minha exposição.

Para que, porém, se não repita o incômodo se o elemento perturbador tentar penetrar novamente na sala, os cavalheiros que me satisfizeram a vontade levam as respectivas cadeiras para perto da porta e, consumada a repressão, se postam como "resistências". (...)

Ele já não está aqui conosco;
ficamos livres de sua presença, dos motejos, dos apartes,
mas a expulsão foi por assim dizer inútil,
pois lá de fora ele dá um espetáculo insuportável,
e com berros e murros na porta nos perturba a conferência mais do que antes.

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No emprego desta técnica o que ainda nos perturba é que com freqüência o doente se detém, afirmando não saber dizer mais nada, que nada mais lhe vem à idéia.

Uma observação atenta mostra, contudo, que as idéias livres nunca deixam de aparecer.

Para evitá-la põe-se previamente o doente a par do que pode ocorrer,
pedindo-lhe renuncie a qualquer crítica;
sem nenhuma seleção deverá expor tudo que lhe vier ao pensamento,
mesmo que lhe pareça errôneo, despropositado ou absurdo e,
especialmente, se lhe for desagradável a vinda dessas idéias à mente.

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Hão de notar que nós, os homens, com as elevadas aspirações de nossa cultura e sob a pressão das íntimas repressões,
achamos a realidade de todo insatisfatória e por isso mantemos uma vida de fantasia onde nos comprazemos em compensar as deficiências da realidade,
engendrando realizações de desejos.

Nestas fantasias há muito da própria natureza constitucional da personalidade e muito dos sentimentos reprimidos.
O homem enérgico e vencedor é aquele que pelo próprio esforço consegue transformar em realidade seus castelos no ar.
Quando esse resultado não é atingido,
seja por oposição do mundo exterior, seja por fraqueza do indivíduo,
este se desprende da realidade, recolhendo-se aonde pode gozar,
isto é, ao seu mundo de fantasia,
cujo conteúdo, no caso de moléstia, se transforma em sintoma.

O tratamento psicanalítico coloca-se assim como o melhor substituto da repressão fracassada, justamente em prol das aspirações mais altas e valiosas da civilização.

A literatura alemã conhece um vilarejo chamado Schilda, de cujos habitantes se contam todas as espertezas possíveis.
Dizem que possuíam eles um cavalo com cuja força e trabalho estavam satisfeitíssimos.
Uma só coisa lamentavam: consumia aveia demais e esta era cara.
Resolveram tirá-lo pouco a pouco desse mau costume, diminuindo a ração de alguns grãos diariamente, até acostumá-lo à abstinência completa.
Durante certo tempo tudo correu magnificamente;
o cavalo já estava comendo apenas um grãozinho e no dia seguinte devia finalmente trabalhar sem alimento algum.
No outro dia amanheceu morto o pérfido animal;
e os cidadãos de Schilda não sabiam explicar por quê.

Freud- 5 lições de Psicanálise