terça-feira, agosto 21, 2007

Vestibular

Desde cedo, pais e escolas sabem que a escola deve preparar para os vestibulares. Os vestibulares, assim, determinam os padrões de conhecimento e inteligência a serem cultivados. Mas não existe nada mais contrário à educação que os padrões de conhecimento e inteligência que os vestibulares estabelecem.

O escritor Mário Prata escreveu uma crônica sobre as meninas jogadoras de vôlei. (...)Sua crônica fora usada, na íntegra, num exame vestibular.

Para um escritor, ter uma crônica transcrita, na íntegra, num exame vestibular, equivale a uma consagração. Mário Prata estava felicíssimo.
Exceto por um detalhe: os examinadores, para transformar sua crônica em objeto de exame, prepararam uma série de questões sobre ela, cada uma com várias alternativas de resposta. Mário Prata resolveu, então, brincar de vestibulando. Tentou responder às questões. Não acertou uma!

Por que nós, professores universitários, não passaríamos no vestibular? Por termos memória fraca? Não. Por termos memória inteligente. Burras não são as memórias que esquecem, mas as memórias que nada esquecem... A memória inteligente esquece o que não faz sentido. A memória viaja leve. Não leva bagagem desnecessária.

Por que nós, professores universitários, não passaríamos no vestibular? Por termos memória fraca? Não. Por termos memória inteligente. Burras não são as memórias que esquecem, mas as memórias que nada esquecem... A memória inteligente esquece o que não faz sentido. A memória viaja leve. Não leva bagagem desnecessária.
Pense na memória como um escorredor de macarrão. Um escorredor de macarrão é uma bacia cheia de furos. A gente põe o macarrão na água fervente para amolecer. Amolecido o macarrão, é preciso livrar-se da água. Jogam-se, então, macarrão e água no escorredor de macarrão. A água escorre pelos buracos, e o macarrão fica. A memória é assim: ela se livra do que não tem serventia por meio do esquecimento. E o que é que tem serventia? Duas coisas, apenas. Primeiro, coisas que são úteis, conhecimentos-ferramentas, conhecimentos que nos ajudam a entender e a fazer coisas.
Minha amiga Vilma Clóris de Carvalho, educadora extraordinária, professora de neuroanatomia, revelou-me que seus piores alunos eram aqueles que tinham obtido as notas mais altas no vestibular. "Eu explico a complexidade do funcionamento do aparelho nervoso, mostro-lhes o caráter provisório das hipóteses de que dispomos, falo sobre uma, falo sobre outra... E aí há sempre um desses gênios que tiraram as notas mais altas que sai com a pergunta: 'Mas, professora, qual é a resposta certa?'"
De tanto serem treinados para dar as respostas certas, acabam por perder a capacidade de fazer perguntas, a essência do pensamento inteligente. O preparo para os vestibulares, assim, é um processo estupidificador, um mecanismo pernicioso para a inteligência. Acrescente-se a isso o fato de que, devido à fúria da competição, os candidatos, no seu preparo, são forçados a abandonar tudo aquilo que tem a ver com a "caixa dos brinquedos", o que provoca um embrutecimento da sua sensibilidade.

Rubem Alves- Artigos Sobre Vestibular