sexta-feira, julho 20, 2007

Sob disfarces tontos:

Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?

Como proteger-me das feridas
que rasga em mim o acontecimento,
qualquer acontecimento.

Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos
e outros acrescento aos que amor já criou.
Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso
e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.

Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia
e cansado de mim julgava que era o mundo
um vácuo atormentado, um sistema de erros.

Onde não há jardim, as flores nascem de um
secreto investimento em formas improváveis.

Seu grão de angústia amor já me oferece
na mão esquerda.
Enquanto a outra acaricia
os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura
e o mistério que além faz os seres preciosos
à visáo extasiada.

Há que amar diferente.
De uma grave paciência ladrilhar minhas mãos.
E talvez a ironia tenha dilacerado a melhor doação.
Há que amar e calar.

E sou meu próprio frio que me fecho
longe do amor desabitado e líquido,
amor em que me amaram, me feriram
amor, quem contaria?
E já não sei se é jogo, ou se poesia.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.

Hoje somos mais vivos do que nunca.
Mentira, estamos sós.
Nada, que eu sinta, passa realemente.
É tudo ilusão de ter passado.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
todos eles... e nenhum resolve.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.

Ao delicioso toque do clitóris
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.

E não queria o amor, sob disfarces tontos
da mesma ninfa desolada no seu ermo
e a constante procura de sede e não de linfa,
e não queria também a simples rosa do sexo,
como ainda não quero a amizade geométrica
de almas que se elegeram numa seara orgulhosa,
imbricamento, talvez? de carências melancólicas.

Sempre no mesmo engano outro retrato.
É sempre nos meus pulos o limite.
Sempre no meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim meu inimigo.
E sempre no meu sempre a mesma ausência.

Carlos Drummond de Andrade