terça-feira, julho 10, 2007

Dissonância

Atravessou o chão seco com os pés descalços, a camisola larga desmanchada nas pregas cuidadosamente inventadas para agradar.

Tentava reconstruir a pequena vida cujos fios ele rompera com a voz.

Ela sentiu cansaço de todo o seu jogo. Por que não ser simples, boa, compreensiva, atensiosa e natural? perguntava-se cheia de censura.
Terminou por evitar o próprio futuro, num suspiro.

De que vivera então? reunia uns pobres fatos, (...) organizava-os, mas faltava-lhes um fluido que lhes fundisse as extremidades num mesmo princípio de vida.

Sobretudo, ela sempre possuíra uma memória extraordinária para inventar.

Concentrava-se insolúvel- no resumo escapa às palavras ditas o essencial que era afinal a sensação de ter vivido o que contava. às vezes conseguia alguma coisa parecida consigo mesma.

Como eu conheço a vida, pensou com uma satisfação ávida. Sorriu.

Ela não podia se deter, tão extremamente divertido era se sentir amada.

As pessoas se preveniam para ter companhia durante todos os instantes da vida, e ela, misteriosamente despreendida, conseguira ficar só.

Aquela sensação de erro que jamais se elucidaria.

Como se encolhesse o seu existir deixando a vigília vazia.

O Lustre- Clarice Lispector