terça-feira, julho 31, 2007

Hostilidade...

É que nunca nos achamos tão indefesos contra o sofrimento como quando amamos, nunca tão desamparadamente infelizes como quando perdemos o nosso objeto amado ou o seu amor. Isso, porém, não liquida com a técnica de viver baseada no valor do amor como um meio de obter felicidade. Há muito mais a ser dito a respeito.

A vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós; proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis.
A fim de suportá-la, não podemos dispensar as medidas paliativas. ‘Não podemos passar sem construções auxiliares’.

Existem talvez três medidas desse tipo:
derivativos poderosos, que nos fazem extrair luz de nossa desgraça;
satisfações substitutivas, que a diminuem;
e substâncias tóxicas, que nos tornam insensíveis a ela. Algo desse tipo é indispensável.

Voltar-nos-emos, portanto, para uma questão menos ambiciosa, a que se refere àquilo que os próprios homens, por seu comportamento, mostram ser o propósito e a intenção de suas vidas.
O que pedem eles da vida e o que desejam nela realizar?
A resposta mal pode provocar dúvidas. Esforçam-se para obter felicidade; querem ser felizes e assim permanecer.
Essa empresa apresenta dois aspectos: uma meta positiva e uma meta negativa.
Por um lado, visa a uma ausência de sofrimento e de desprazer; por outro, à experiência de intensos sentimentos de prazer.
Em seu sentido mais restrito, a palavra ‘felicidade’ só se relaciona a esses últimos. Em conformidade a essa dicotomia de objetivos, a atividade do homem se desenvolve em duas direções, segundo busque realizar – de modo geral ou mesmo exclusivamente – um ou outro desses objetivos.

Assim, nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas por nossa própria constituição. Já a infelicidade é muito menos difícil de experimentar.
O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência;
do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas;
e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens.
O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro.


Existe ainda um fator adicional de desapontamento.
Durante as últimas gerações, a humanidade efetuou um progresso extraordinário nas ciências naturais e em sua aplicação técnica, estabelecendo seu controle sobre a natureza de uma maneira jamais imaginada.
As etapas isoladas desse progresso são do conhecimento comum, sendo desnecessário enumerá-las. Os homens se orgulham de suas realizações e têm todo direito de se orgulharem.
Contudo, parecem ter observado que o poder recentemente adquirido sobre o espaço e o tempo, a subjugação das forças da natureza, consecução de um anseio que remonta a milhares de anos, não aumentou a quantidade de satisfação prazerosa que poderiam esperar da vida e não os tornou mais felizes.
Reconhecendo esse fato, devemos contentar-nos em concluir que o poder sobre a natureza não constitui a única precondição da felicidade humana, assim como não é o único objetivo do esforço cultural.
Disso não devemos inferir que o progresso técnico não tenha valor para a economia de nossa felicidade. Gostaríamos de perguntar: não existe, então, nenhum ganho no prazer, nenhum aumento inequívoco no meu sentimento de felicidade, se posso, tantas vezes quantas me agrade, escutar a voz de um filho meu que está morando a milhares de quilômetros de distância, ou saber, no tempo mais breve possível depois de um amigo ter atingido seu destino, que ele concluiu incólume a longa e difícil viagem? Não significa nada que a medicina tenha conseguido não só reduzir enormemente a mortalidade infantil e o perigo de infecção para as mulheres no parto, como também, na verdade, prolongar consideravelmente a vida média do homem civilizado?
Há uma longa lista que poderia ser acrescentada a esse tipo de benefícios, que devemos à tão desprezada era dos progressos científicos e técnicos.

Aqui, porém, a voz da crítica pessimista se faz ouvir e nos adverte que a maioria dessas satisfações segue o modelo do ‘prazer barato’ louvado pela anedota: o prazer obtido ao se colocar a perna nua para fora das roupas de cama numa fria noite de inverno e recolhê-la novamente.

Enfim, de que nos vale uma vida longa se ela se revela difícil e estéril em alegrias?

‘Amarás a teu próximo como a ti mesmo.’
Por que deveremos agir desse modo? Que bem isso nos trará? Acima de tudo, como conseguiremos agir desse modo? Como isso pode ser possível?
Meu amor, para mim, é algo de valioso, que eu não devo jogar fora sem reflexão.

Se essa pessoa for um estranho para mim e não conseguir atrair-me por um de seus próprios valores, ou por qualquer significação que já possa ter adquirido para a minha vida emocional, me será muito difícil amá-la. Na verdade, eu estaria errado agindo assim, pois meu amor é valorizado por todos os meus como um sinal de minha preferência por eles, e seria injusto para com eles, colocar um estranho no mesmo plano em que eles estão.

Através de um exame mais detalhado, descubro ainda outras dificuldades. Não meramente esse estranho é, em geral, indigno de meu amor; honestamente, tenho de confessar que ele possui mais direito a minha hostilidade e, até mesmo, meu ódio. Não parece apresentar o mais leve traço de amor por mim e não demonstra a mínima consideração para comigo. Se disso ele puder auferir uma vantagem qualquer, não hesitará em me prejudicar; tampouco pergunta a si mesmo se a vantagem assim obtida contém alguma proporção com a extensão do dano que causa em mim. Na verdade, não precisa nem mesmo auferir alguma vantagem; se puder satisfazer qualquer tipo de desejo com isso, não se importará em escarnecer de mim, em me insultar, me caluniar e me mostrar a superioridade de seu poder, e, quanto mais seguro se sentir e mais desamparado eu for, mais, com certeza, posso esperar que se comporte dessa maneira para comigo.

E há um segundo mandamento que me parece mais incompreensível ainda e que desperta em mim uma oposição mais forte ainda. Trata-se do mandamento ‘Ama os teus inimigos’. Refletindo sobre ele, no entanto, percebo que estou errado em considerá-lo como uma imposição maior. No fundo, é a mesma coisa.

Acho que agora posso ouvir uma voz solene me repreendendo: ‘É precisamente porque teu próximo não é digno de amor, mas, pelo contrário, é teu inimigo, que deves amá-lo como a ti mesmo’.

O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que as pessoas estão tão dispostas a repudiar, é que os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. – Homo homini lupus.

Quem, em face de toda sua experiência da vida e da história, terá a coragem de discutir essa asserção?


Mal-Estar na Civilização- Sigmund Freud.