terça-feira, março 06, 2007

Sobre blogs: Os diários íntimos na Internet e a crise da interioridade psicológica- Trechos

Alain Corbin e Michelle Perrot na passagem da História da vida privada relativa a época de intenso “deciframento de si”,
o “furor de escrever” tomou conta de homens, mulheres e crianças,
imbuídos tanto pelo espírito iluminista de conhecimento racional como pelo ímpeto romântico de mergulho nos mistérios mais insondáveis da alma.

A escrita de si tornou-se uma prática habitual, dando à luz todo tipo de textos introspectivos nos quais a auto-reflexão se voltava não tanto para a busca de um certo “universal” do Homem, mas para a sondagem da natureza fragmentária e contingente da condição humana, plasmada na particularidade de cada experiência individual.

Mais do que isso, o diário tem em mira a recuperação, a guarda de todos os eventos da existência. Seguindo a tradição do direito romano, de que apenas o que está escrito tem existência legal, seria uma maneira de comprovar a existência, de atestar, de registrar o que é vivido.

Os computadores e as redes digitais surgiriam, assim, como mais um cenário para a colocação em prática da antiga “técnica da confissão”, essa modalidade de construção da verdade sobre os sujeitos que há séculos vigora em Ocidente e cuja genealogia fora traçada por Michel Foucault em seu livro A vontade de saber.

A lente incansável de uma webcam, por exemplo, que registra permanentemente cada detalhe de uma vida particular, nada mais é do que um upgrade tecnológico do velho costume de anotar toda a minúcia cotidiana em um caderninho de folhas amareladas?
Essa exposição pública é apenas um detalhe sem importância das novas práticas, que deixa intactas as características fundamentais dos antigos diários íntimos? Ou se trata, pelo contrário, de algo radicalmente novo?

Cada vez mais, a mídia reconhece e explora o forte apelo implícito no fato de que aquilo que se diz e se mostra é um testemunho vivencial: a ancoragem na “vida real” torna-se irresistível, mesmo que tal vida seja absolutamente banal – ou melhor: especialmente se ela for banal.

A vida comum transforma-se em algo espetacular, compartilhada por milhões de olhos potenciais. E não se trata de nenhum evento emocionante. Não há histórias,aventuras, enredos complexos ou desfechos maravilhosos. Na realidade, nada acontece, a não ser a vida banal, elevada ao estado de arte pura.

Se na cultura do psicológico e da intimidade o sofrimento era experimentado como conflito interior, ou como choque entre aspirações e desejos reprimidos e as regras rígidas das convenções sociais,

hoje o quadro é outro: na cultura das sensações e do espetáculo, o mal-estar tende a se situar no campo da performance física ou mental que falha, muito mais do que numa interioridade enigmática que causa estranheza.

Paula Sibilia