sexta-feira, março 23, 2007

Agonia

- Você sempre me deixou só.
- Não..., assustou-se ela. É que tudo o que eu tenho não se pode dar. Nem tomar. Eu mesma posso morrer de sede diante de mim. A solidão está misturada à minha essência.

Era uma mulher fraca em relação às coisas. Tudo lhe parcia as vezes preciso demais, impossível de ser tocado.
Ela é vaga e audaciosa. Ela não ama, ela não é amada.

Pois nela havia um medo enorme. Um medo anterior a qualquer julgamento e compreensão.

A vida sempre nos deixa intocados.

Clarice Lispector- Perto do Coração Selvagem

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Não acusar-me. Buscar a base do egoísmo: tudo o que não sou não pode me interessar, há impossibilidade de ser além do que se é- no entanto eu me ultrapasso mesmo sem o delírio, sou mais do que eu quase normalmente-; tenho um corpo e tudo o que eu fizer é continuação de meu começo.

Perco a consciência, mas não importa, encontro a maior seneridade na alucinação. É curioso como não sei dizer quem eu sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. Ou pelo menos o que me faz agir não é o que eu sinto, mas o que eu digo.

Resultado daqueles dias em que vagava de um lado para o outro, repudiando e amando mil vezes as mesmas coisas.

Vou continuar, é exatamente da minha natureza nunca me sentir ridícula, eu me aventuro sempre, entro em todos os palcos.

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Como ligar-se a um homem senão permitindo que ele a aprisione? como impedir que ele desenvolva sobre seu corpo e sua alma suas quatro paredes? E havia um meio de ter as coisas sem que as coisas a possuíssem?

A vida em comum era necessária exatamente para viver os outros momentos, pensava assustada, raciocinando com esforço.

No entanto como seria bom construir alguma coisa pura, liberta do falso amor sublimizado, liberta do medo de não amar... Medo de não amar, pior do que o medo de não ser amado...

E amava-o nesse instante. Sua feiúra não a excitava, não lhe causava pena. Simplesmente ligava-se mais a ele e com maior alegria. Alegria de aceitar inteiramente, de sentir que unia o que havia de verdadeiro e primitivo de si a alguém, independente de qualquer das idéias recebidas sobre beleza.

Olhava-o sem prestar atenção às suas palavras. Era doce e bom saber que entre ambos havia segredos tecendo uma vida fina e leve sobre outra vida, a real.

Vivia-o tanto que nunca sentira os outros senão como mundos fechados, estranhos, superficiais.

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É necessário certo grau de cegueira para poder enxergar determinadas coisas. É essa talvez a marca do artista. Qualquer homem pode saber mais do que ele e raciocinar com segurança. Mas exatamente aquelas coisas escapam à luz acesa. Na escuridão tornam-se fosforescentes.

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Clarice Lispector- Perto do Coração Selvagem